Saltar para: Post [1], Comentar [2], Pesquisa e Arquivos [3]




Conto, Uma moça feliz

por Jorge Soares, em 27.10.12
Uma moça feliz
Imagem da internet

Convenceram-na de que o Amor seria um, e para toda a vida. E a costurar esse convencimento, os laços de seda das almofadas que teriam o seu nome e o dele, em anagramas, e as colchas de babados em que ele a deitaria delicadamente, e onde lhe faria carícias em curtos ais. Havia ainda, a completar essa imagem perfumada, filhos saudáveis, uma casa com escadas, miosótis em vasinhos e longos lírios brancos plantados num jardim ensolarado de verão. Uma vida em rendas de guipûre, lavandas e rezas.

 

E ela se tornou, assim, uma moça feliz.

 

Convenceram-na de que ela deveria aguardar pelo homem certo, que chegaria de surpresa numa tarde de chuva, tomando-a em seus braços fortes para impedir que ela escorregasse na calçada molhada. Eles se olhariam com devoção incontida e, sem palavras, compreenderiam que eram duas almas entrelaçadas pelo destino. E encostariam, juntos, suas cabeças na vidraça enfumaçada pelo vapor da primavera.

 

E ela se manteve, assim, uma moça feliz.

 

Convenceram-na, mais uma vez, depois que os anos já haviam lhe trazido pequenos sulcos ao redor dos olhos, de que os ventos de outono ainda poderiam esconder encantamentos, e que ela escutaria, nas folhas amareladas e secas, os passos calmos e seguros daquele que viria para beijá-la na testa e oferecer-lhe o ombro largo e acolhedor. Falariam de livros e ela tocaria para ele Bach ou Chopin, para que ele não pensasse que era apenas uma tola a dedilhar o Pour Elise.

 

E ela prosseguiu, assim, uma moça feliz.

 

Convenceram-na, por fim, tão logo os fios brancos se alastraram atrevidos pela cabeleira longa, que era hora de fazer-se fria como os dias do inverno rigoroso, e amanhecer para cercar-se dos filhos de outras, das histórias de outras, das almofadas de outras... Com anagramas que não seriam seus. E ela faria fornadas de biscoitos enfeitados, e poderia trocar o chá por um cálice de licor de frutas, e viajar sozinha em excursões familiares, e contar às meninas sobre um futuro em rendas de guipûre, lavandas e rezas.

 

E ela não quis mais ser uma moça feliz...

 

Convenceram-na, no entanto, de que era ingrata. E que deveria conformar-se com a vida. E que deveria sentir-se agradecida ao Bom Deus por existir. E que deveria manter-se digna e honesta até o fim. Até o fim...

 

E ela pegou sua dor, seus cabelos longos, bastos e entremeados de branco, suas memórias de jardins de lírios, de vidraças com vapor de chuva, de carícias em curtos ais e de crianças que não eram suas, e lançou-se porta afora, mãos na cabeça, como a espremer da memória uma vida que também não era sua.

 

E ela entrou num bar, e fartou-se de álcool, e flertou com os homens, e viciou-se em procurar amor em lençóis baratos, em corpos suados, em bocas sem beijos.

 

Até um dia... Um dia em que seus olhos encontraram seus olhos no espelho. E neles havia anagramas, músicas, lavandas e tantas outras coisas que eram suas, só suas.

 

Convenceu-se, enfim, de que o Amor era mesmo só um. Para toda a vida.

 

E deitou a si mesma sobre a colcha de bordados. E se fez carícias.

 

Era, finalmente, uma moça feliz.

 

CINTHIA KRIEMLER

 

Retirado de Samizdat

publicado às 20:50


Comentar:

Mais

Se preenchido, o e-mail é usado apenas para notificação de respostas.

Este blog tem comentários moderados.

Este blog optou por gravar os IPs de quem comenta os seus posts.



Ó pra mim!

foto do autor


Queres falar comigo?

Mail: jfreitas.soares@gmail.com






Arquivo

  1. 2020
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
  14. 2019
  15. J
  16. F
  17. M
  18. A
  19. M
  20. J
  21. J
  22. A
  23. S
  24. O
  25. N
  26. D
  27. 2018
  28. J
  29. F
  30. M
  31. A
  32. M
  33. J
  34. J
  35. A
  36. S
  37. O
  38. N
  39. D
  40. 2017
  41. J
  42. F
  43. M
  44. A
  45. M
  46. J
  47. J
  48. A
  49. S
  50. O
  51. N
  52. D
  53. 2016
  54. J
  55. F
  56. M
  57. A
  58. M
  59. J
  60. J
  61. A
  62. S
  63. O
  64. N
  65. D
  66. 2015
  67. J
  68. F
  69. M
  70. A
  71. M
  72. J
  73. J
  74. A
  75. S
  76. O
  77. N
  78. D
  79. 2014
  80. J
  81. F
  82. M
  83. A
  84. M
  85. J
  86. J
  87. A
  88. S
  89. O
  90. N
  91. D
  92. 2013
  93. J
  94. F
  95. M
  96. A
  97. M
  98. J
  99. J
  100. A
  101. S
  102. O
  103. N
  104. D
  105. 2012
  106. J
  107. F
  108. M
  109. A
  110. M
  111. J
  112. J
  113. A
  114. S
  115. O
  116. N
  117. D
  118. 2011
  119. J
  120. F
  121. M
  122. A
  123. M
  124. J
  125. J
  126. A
  127. S
  128. O
  129. N
  130. D
  131. 2010
  132. J
  133. F
  134. M
  135. A
  136. M
  137. J
  138. J
  139. A
  140. S
  141. O
  142. N
  143. D
  144. 2009
  145. J
  146. F
  147. M
  148. A
  149. M
  150. J
  151. J
  152. A
  153. S
  154. O
  155. N
  156. D
  157. 2008
  158. J
  159. F
  160. M
  161. A
  162. M
  163. J
  164. J
  165. A
  166. S
  167. O
  168. N
  169. D
  170. 2007
  171. J
  172. F
  173. M
  174. A
  175. M
  176. J
  177. J
  178. A
  179. S
  180. O
  181. N
  182. D