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A vida num hospital português perto de si

por Jorge Soares, em 22.01.14

A vida num hospital Português perto de si

 

Há quem diga que Portugal é um país desenvolvido, do primeiro mundo, pena que isso seja só no papel, porque quem no dia a dia tem que sofrer a realidade não é isso que sente, há coisas que acontecem por cá que mais parecem retiradas de um filme de terror do século passado.

 

O seguinte relato foi escrito em primeira pessoa pela Golimix no Eu tento, mas meu tento não consegue! e é o segundo capítulo, o primeiro pode ser lido aqui.

 

Esta é a segunda fase dos meus relatos das experiências passadas com meus pais. Deixei este para último porque é o mais difícil de escrever e o mais difícil de recordar, já que não é só uma recordação mas algo que ainda sobrevive ao dia-a-dia.

 

Em  agosto de 2012, e depois de muitas peripécias que qualquer dia contarei, foi diagnosticado ao meu pai, nos Hospitais de Coimbra, uma Demência de Corpos de Lewy, que qualquer pesquisa simples na net vos elucidará do que se trata. Menos frequente que o Alzheimer e com progressão mais rápida e igualmente difícil, quer para o portador da doença quer para os seus familiares. E chega a um ponto que sobretudo para os seus familiares.

 

Podem dizer-me "Faço ideia do que estás a passar". Eu respondo a esta frase, não. Não fazem a mínima ideia do que é ver o nosso pai (neste caso) ser portador de uma demência. Do que é vê-lo a não ser ele, do que é vê-lo a ir-se e o seu corpo ainda estar presente. Dói mais do que a morte. Porque é uma morte lenta e insidiosa. Leva-o todos os dias. Tira cada dia um pouco e cada dia o leva para mais longe. Não é ele que está ali...

 

Alguém me dizia aqui há uns tempos. Não digas isso, ainda o podes abraçar. É verdade. Ainda o posso abraçar, ainda tolera os abraços que nunca me deu e agora dá, porque agora não tem o travão mental de não demonstrar carinho. Ainda tolera abraços porque ainda me conhece, ainda não está agressivo. Mas que preço tem este abraço? Um preço que não vale a pena pagar... Estarei a ser crua ou realista de mais? Vejo as coisas de dentro e não de fora. Tão simples quanto isso.

 

Este tipo de Demência está associada a sintomas Parkinsónicos. Ambas as doenças são de cariz neurológico e associadas a geriatria mas como exibem alterações de comportamento levam a um internamento na psiquiatria. Se tem ou não lógica não sei. O certo é que o serviço de neurologia não está preparado para receber estes doentes e não existe outro serviço adequado para pessoas que necessitam de uma vigilância constante, quer pelo seu sentido de orientação alterado, quer pela sua parte cognitiva já com muitas falhas. E é deste serviço, da psiquiatria de um Hospital em Trás-os-Montes, um grande Hospital considerado de "qualidade", onde o meu pai esteve internado que vou falar o que muitos calam. Calam por vergonha de dizer que estiveram lá internados, por vergonha de ter tido um familiar lá internado, por pruridos de uma sociedade hipócrita e mesquinha.

 

Ao entrar naquele serviço parece que recuamos no tempo. Depois de questionar algumas pessoas, nomeadamente profissionais de saúde que trabalham em outros locais e nesta área, pude constatar que felizmente não é frequente a existência de locais que funcionam como aquele serviço em particular, género psiquiatria de há um século atrás. Ali as mulheres e homens estão no mesmo espaço físico, à noite estão em dormitórios separados mas de dia não. Outra particularidade é que os doentes durante o dia não têm acesso à sua enfermaria, o que dificulta o acesso aos seus pertences, como roupa e produtos de higiene. Ali não se lava os dentes a menos que se ande com a escova e pasta à tiracolo. Não se tem roupa própria, porque nem sei se existe onde a guardar, já que não vi as enfermarias, e me disseram para não levar a roupa dele. Disseram que tinham pijamas no serviço e fatos de treino e tudo o que fosse preciso. Ok...

 

O que se vislumbra são pijamas a cair pelas pernas abaixo dos utentes, e se há os que conseguem ir puxando a roupa atempadamente, há os que, por força da lentidão produzida pela medicação não o conseguem fazer, portanto estão a ver o aspecto que dá pessoas com as calças a cair e com ar de que não estão bem neste mundo?

Além disso, todas as patologias também estão juntas, é tudo ao molhe e fé em Deus. Quem é internado por uma depressão sai dali mais deprimido, isso é certo. Terapeuticamente controlado, mas mais deprimido. Como não se podem deitar, porque as enfermarias estão fechadas se bem se lembram, e a medicação dá pedrada vemos pessoas deitadas pelos cadeirões num desconforto que dá dó. O ar andrajoso que transmitem é gritante. Cheguei a ver um senhor no chão do corredor a bater com a cabeça na parede e ali esteve um bom bocado.

 

A única casa de banho que serve todos os utentes tem o papel higiénico fora da proteção, exigida num estabelecimento público, que estava ausente e pelo que constatei há muito partida. A figura em que estava o papel higiénico, que andava nas mãos de todos, estava indescritível! O aspecto físico degradante do serviço era notório! E era notório que era um serviço esquecido há muito pela administração do Hospital que sabe que doentes psiquiátricos não se queixam e se o fazem ninguém lhes dá crédito. Triste, mas a pura realidade. E triste que a própria sociedade também parece forçar a esse esquecimento. Pois bem, ninguém está livre, isso assusta não é? Não fujam porque o que têm medo ainda vos pega!

 

Num dos dias quem que visitei meu pai ele estava vestido com um roupão que tenho a sensação que nem o meu cão se deitaria ali! Aliás, tenho a sensação quem nem um cão de rua se aproximaria daquilo! Se o roupão lhe tirou o frio e providenciou o conforto necessário? Acho que sim. Mas e a dignidade humana? Mesmo sujeita a perder um roupão vesti-o com outra coisa que não aquilo! Soube depois que outros doentes se encarregavam de ajudar o meu pai a não perder o acessório.

 

E agora o que mais me custou. Estive uns dias sem realizar a visita. Habito longe e tive que trabalhar. Quando fui lá constatei o que a minha prima me dizia pelo telefone. O seu estado era deplorável! Ele necessita de ajuda para realizar as actividades mais básicas como o cuidar da sua higiene. Fá-lo, mas precisa de ajuda. Precisa de ajuda até para lavar a cara e escovar os dentes. Que se lhe diga "agora lave a cara", e ele lava. "Agora escove os dentes". Embora tenhamos que colocar a pasta e dizer quando bochechar e cuspir fora. A cara dele não era lavada há séculos!!! Estava cheia de crostas, unhas sujas, dentes cheios de comida,... a descrição pode estar a ser nojenta, mas foi com esse aspecto mal cuidado que o encontrei!

 

No dia da alta para o vestir mandaram-nos para a tal casa de banho usada por todos os utentes (foi aí que eu vi o estado da coisa) para vestir um senhor de idade, com dificuldades motoras, que não tinha onde se sentar para se vestir e que tinha dificuldade em estar de pé. E nem que não tivesse! Felizmente levava companhia para nos ajudar. Penoso... custava ter-nos levado a uma enfermaria? A um lugar mais aprazível do que aquele?

 

Trabalhar ali não deve ser fácil. Num serviço rejeitado e com rejeitados pela sociedade. É o que vi. Se há bons e maus profissionais, claro! Como em todo o lado. Não me esqueço, no entanto, de uma situação em específico numa das minha deslocações para a visita. Não esqueço da cara da besta, desculpem o termo, mas não tenho outro melhor e que descreva tão bem a energúmena, que ao me abrir a porta do serviço sempre fechado à chave, se apercebe que o meu pai está atrás dela, e ela não sabia que aquele era o significado da minha presença, se vira para ele com ar agressivo e diz "Chegue para lá quero abrir a porta!" depois olha para as suas calças pingadas de sopa, que faz notar a sua falta de destreza, e diz com ar arrogante "Olhe para aí todo sujo e pingado! Que vergonha!". Não vou dizer o que me apeteceu fazer àquela não-pessoa, que fez meu pai olhar com ar confuso para as calças e ansioso para mim. O que fiz foi entrar, passando pela cavalgadura, segurar o meu pai e levá-lo até à entrada da casa de banho de onde tirei um papel e lhe limpei as calças. Podem imaginar o ar com que a peça ficou ao ver que era por "aquele" a razão que eu estava ali.  

 

Ele detestava estar ali e eu detestava que ele ali estivesse. Dizia que o tratavam mal, mas não conseguia explicar as situações.

Espero não voltar a precisar daquele serviço mas sei que poderei vir a precisar... O que fazer? Escrever? Falar? Não sei. As minhas energias não dão para todas as lutas.

 

Neste momento tenho que lidar com o meu pai institucionalizado, e que não sabe que é ali que vai ficar... Que pensa que um dia irá voltar à sua casa que fez com as suas mãos. Como lhe explicar o que ele não entende? Como lhe dizer que ali é onde ele está melhor? Ali tem a vigilância que precisa, os cuidados que necessita e até o carinho que lhe faz bem. Até agora nisso parece que tivemos sorte... Alguma há que tentar chegar até ele.

 

Só tenho pena que ela não tenha escrito o nome do hospital, porque este tipo de coisas só pode acabar se forem denunciadas e não há crise ou cortes nos orçamentos que possam explicar coisas como estas, isto é uma vergonha que não tem explicação nem desculpa

 

Jorge Soares

publicado às 23:40


2 comentários

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De DyDa/Flordeliz a 22.01.2014 às 00:58

Cada um de nós se revê.
Embora custe aceitar que é com os nossos familiares e no nosso país.

É mau demais para ser verdade.
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De golimix a 22.01.2014 às 08:36

Mas é a verdade. Que tal como te disse ainda fica muito aquém da realidade.

A psiquiatria é um serviço difícil, é certo, mas que a Administração daquele Hospital e as chefias ainda tornam mais difícil!
E depois há o básico. Obrigar um idoso, com demência, dificuldades motoras,... a despir-se numa cada de banho? Pertence ao básico do que não se deveria fazer!

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