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Conto - A lenda do demónio fêmea

por Jorge Soares, em 17.05.14

A lenda do demónio fêmea

 

Conta a lenda que, em épocas que repousam na neblina do passado, uma pequena comuna da região da Lombardia viu-se assolada por um mal tão voraz que homens e mulheres morriam sem tempo sequer para pedir ajuda. Um súbito revirar de olhos, um grito que ecoava nos campos e um estertor prolongado por convulsões de arrepiar os pelos. Pronto! Ia-se mais um vivente. Os sinais eram sempre os mesmos, como sacramentos macabros. E não havia beberagem ou bênção que impedisse a trajetória funesta, salvando aqueles homens de um destino tão horrendo. Tombavam em casa, nos parreirais, nas ruas, ou desabavam sobre os lombos dos cavalos que, instigados pelo grito, se empinavam, derrubando-os ou arrastando-lhes os corpos. Olhos esbugalhados e mãos esticadas como a pedir ajuda, os cadáveres mostravam em suas feições o pânico que carregavam para a eternidade.

 

Um fato curioso, no entanto, chamou a atenção dos locais: nem crianças, nem animais eram levados pela morte. A notícia cresceu mais do que a fome da praga, estimulando conjecturas e certezas.

— Isso é coisa da justiça divina! — garantiam os mais tementes.

— Ou é arte do Tinhoso... — desafiavam os mais ousados.

 

Mas nada os convencia de um motivo sem retoques. Enquanto isso, ao fim de cada dia, nunca menos que três ou quatro mortos eram preparados para o solo santo.  

 

Morava na cidade um certo Padre Baptisto, que aparecera pelas redondezas havia tantos anos que nem mesmo os habitantes mais antigos eram capazes de precisar a data de sua chegada. Viera para ser vigário, mas, homem de muita meditação e pouca pregação, durou pouco tempo à frente da paróquia. Os fiéis, necessitados de palavras que os perdoassem dos pecados revelados em confissão, e de pregações que os orientassem na missa de domingo, para que pudessem enfrentar a semana árdua de trabalho, sentiram-se indignados com os modos sóbrios do padre. Apressaram-se a solicitar à Arquidiocese de Milão que outro pároco lhes fosse enviado.

 

Apesar de substituído, Padre Baptisto já havia criado fama em toda a região pelo dom especial que possuía de conversar não apenas com Deus e com os anjos, mas também com os espíritos imundos. Pessoas vinham de muito longe pedir-lhe ajuda e livramento para dores e males, retornando às suas casas com o fardo da vida mais leve. E ele foi se deixando ficar na comuna, com as bênçãos do arcebispo, que não desejava ver aquele dom alardeado.

 

 

Para seu lugar à frente da paróquia foi trazido Padre Luiggi, homem de conversas cheias e muitos afagos, amigo do Arcebispo de Milão. Com o tempo, começou a perseguir Baptisto, porque o queria longe dos paroquianos. Condenava-o pelo que chamava de “delírios e curandeirismo”. Baptisto passou a ignorá-lo e ambos seguiram adiante evitando confrontos. 

 

 

Entretanto, em face dos acontecimentos presentes, Baptisto precisava intrometer-se nas coisas da comuna. Convencido de que as mortes estranhas assemelhavam-se mais aos malfeitos do diabo que aos desígnios de Deus, decidiu meditar e render-se ao mundo espiritual para conhecer um pouco mais do mistério daquelas mortes. Pensou, inicialmente, em recolher-se à pequena capela que construíra nos fundos da propriedade que ocupava em companhia de cães e porcos. Mas depois pensou que lá o Maligno e seus asseclas não se apresentariam a ele. Optou, então, por se sentar num banco de madeira na varanda da casa simples, iniciando um pedido de proteção ao Arcanjo Miguel: São Miguel Arcanjo, protegei-nos no combate, cobri-nos com vosso escudo contra os embustes e ciladas do demônio. Subjugue-o, Deus, instantemente o pedimos...
Encerradas as rezas, convocou as trevas:
— Apresenta-te criatura imunda. É o Senhor teu Pai e Deus quem ordena.
E assim prosseguiu, repetindo o comando, até que uma voz de mulher lhe respondeu:
— Controla a soberba, Baptisto. O teu Pai não ia gostar de saber que andas usando o nome dele em vão.
Assustado com a presença de um demônio feminino, Baptisto interpelou-o severamente:
— Quem és tu? Declara o teu nome agora!
— Lilith.
Confuso, Baptisto pensou que o Maligno tentava pregar-lhe uma peça.
— Não tente enganar-me, filho da escuridão! Diz-me teu nome, agora!
— Abyzou, Nahemah, Tunrida, Äiatar... Qual tu preferes, homem? Estamos todas aqui para te carregar conosco para o leito. Qual de nós irá satisfazer a tua carne, padre?
Recuperando-se do assombro, Baptisto perguntou:
— És tu que dizimas homens e mulheres em nome das podridões de Lúcifer?
Uma gargalhada chegou até ele, misturada a um hálito nauseante.
— Sim, sou eu quem os devora por dentro. Mas Aquele a quem tu chamas Pai permitiu-me a missão.
— Mentira! Cala-te! Tu és mesmo um insidioso cheio de intrigas fétidas!
— Sou? — desafiou-o a voz onde o escárnio brotava a cada frase. — Pergunta ao teu Senhor se falo ou não a verdade. Parece-me que teu Deus está mais a ter conversas comigo do que contigo, padre!
Mas eis que, subitamente, ouviu-se um grande barulho e a voz de Deus se fez ouvir, furiosa.
— Lilith, ordeno-te que pares de confundir esse homem! Diz-lhe de uma vez dos acontecimentos!
Sibilando, a mãe dos súcubos revelou a Baptisto o mistério das mortes:
— Padre, eu fiz um trato com o teu patrão. Que levaria por dia quantos lascivos encontrasse em meu caminho. Um acerto para livrar esta terra do pecado da carne. Nosso trato deu-se apenas para esta comuna, porque creio que o teu Pai não acreditou que fossem tantos. Mas a coisa vai a perder de vista! E olha que tenho livrado da foice os casados e as virgens que se entregaram por amor ou por promessas de bodas.
Vendo que o padre estava estarrecido, o demônio-fêmea provocou-o ainda mais:
— Queres que teu Deus volte atrás na palavra empenhada? É assim que o respeitas?
— Não tentarás o Senhor teu Deus! Não tentarás o...
— Sem lenga-lengas, homem! O tempo urge e a colheita é fértil! Se me deixo ficar de palração aqui contigo cai-me o número da coleta de hoje.
Baptisto considerou que Deus agira, como sempre, com justeza e princípios. E que Lúcifer, como era de sua natureza, mais uma vez tentava enganar o Criador.
— Senhor, para que tudo se dê como deve, pela justiça e pela caridade, eu gostaria de falar-te sobre algumas condições que deveriam recair sobre tal acordo, posto que nele não parece ter sido levada em consideração a imperfeição humana — disse o padre com cautela.
— Cala-te, subalterno! Não és tu que vives a repetir que tens obediência cega ao teu Senhor? — Lilith gritou.
— Cala-te tu, criatura pequena, de cuja boca só jorram sapos e escorpiões! — replicou ele.
Sem tirar os olhos do diabo, Baptisto dirigiu-se novamente a Deus:
— Falava-te, Senhor, das condições que foram esquecidas no acerto que fizeste com essa criatura maligna. A primeira delas é que é preciso que se dê aos homens a oportunidade de arrependimento; que possam ser avisados para desistir da luxúria e da devassidão. Pois que se não reconhecem que haja gravidade e perigo em tais pecados, não hão de saber que precisam e podem afastar-se deles.
Enquanto Lilith praguejava, o Senhor aprovou e acatou a primeira condição de Baptisto.
— Que mais queres impor a Deus, seu trapaceiro bajulador? — gritou o demônio-fêmea.
— A segunda condição é que a tua fome seja regrada, mulher-besta, e que a velocidade da tua colheita seja reduzida a uma alma por dia!
Desesperada, Lilith berrou:
— Então, Deus, tu não vês que teu padrezinho está querendo ensinar aos homens a falsidade? Eles pecarão muito mais, agora que podem arrepender-se!
— És tu a dissimulada, criatura do mundo inferior!  — repeliu-a o Criador — És tu que tentas mais uma vez o Senhor teu Deus! Puno-te, agora, com as consequências! Permito-te, sim, que colhas os lascivos. Não porque te faça favores, mas porque é de tua obrigação carregá-los contigo para as profundezas de Satanás! Mas permito igualmente a Baptisto que alerte os homens sobre a ceifa. E ordeno-te, por fim, que não te atrevas a arrancar da vida mais de uma alma por dia.
Os protestos irados de Lilith se fizeram ouvir. Baptisto sabia que Deus encurralara a criatura e cutucou a fêmea de Lúcifer:
— Desistes de tudo? Este é um bom momento para recuares.
— Nunca! Aceito os termos desta vergonhosa barganha, mas peço ao Senhor teu Deus que me conceda algumas contrapartidas — disse a demônio-fêmea em dissimulada humildade.
— A que mais achas que tens direito? — irritou-se Deus.
— Peço-te, Senhor, uma pequena mudança. Insisto em que me permitas tombar dois homens por dia. Um mau, que será meu eternamente. Um bom, que irá contigo para o céu. Duas almas apenas. Colhidas a cada nascer ou pôr do sol. E não se fala mais nisso. A mim caberá executar as mortes. Porque eu creio que o Criador tem mais com o que se ocupar. E digo mais, mato os dois discretamente, sem revirar-lhes os olhos, sem provocar-lhes gritos de dor ou fazê-los passar por estertor prolongado. Silêncio e rapidez.
— Não vejo problema no pedido. É justo. Concedido. Duas almas, uma para cada lado. Agora, posso voltar despreocupado ao Paraíso — retrucou o Senhor.
— Espera, Deus! Só mais um minutinho, mais um minutinho! Quero pedir um último favor. Coisa à toa. Que imputes a Baptisto a obrigação de rezar pela salvação da alma de um dos mortos, e apenas de um, visto que seria trapaça rezar pelos dois. Mas que o proíbas de tentar saber antecipadamente qual das duas almas merece mais que a outra, para que não haja nenhum ludíbrio.
Vendo que ainda havia astúcia em Lilith, mas compreendendo que não podia furtar-se a mais esse pedido, sob pena de ser acusado de desonesto e ser desmoralizado pelo Maligno, Deus conclamou novamente Baptisto a cumprir o trato com o demônio-fêmea. Em seguida, retirou-se. 
Naquela noite, o padre foi dormir angustiado, convencido de que havia se deixado envolver em mais um embuste de Lúcifer. No dia seguinte, e nos outros que vieram, as mortes passaram a acontecer aos pares, conforme o acerto entre a Luz e as Trevas. Baptisto usava das manhãs e das tardes para pregar a homens e mulheres sobre os perigos da lascívia e sobre as almas que eram entregues à escuridão eterna. Ao anoitecer, dirigia-se à capela em sua propriedade, escolhia a alma de um dos mortos daquele dia e rezava por seu descanso eterno. Em seguida, pedia a Deus que lhe permitisse sempre enxergar a alma mais virtuosa de cada dia, reconhecendo-a sem titubear no momento da escolha.
Por essa ocasião, e a convite do Padre Luiggi, o Arcebispo de Milão veio ter à comuna para abençoar os fiéis e regozijar-se com eles pelo fim de tantas e tão dolorosas mortes, embora ambos não entendessem como se dera o fim daquele mal. Mas, tão logo a autoridade eclesial pôs os pés na cidade, o céu fechou-se subitamente em tempestade. E sem que ninguém soubesse como, dois raios iguais caíram no mesmo exato instante, lançando ao solo da Lombardia os cadáveres de Padre Luiggi e do arcebispo. De uma só vez, estava feita a coleta do dia. 
A voz e as gargalhadas de Lilith ecoaram por toda a comuna: “Escolhe agora, Baptisto, escolhe!” É assim que conta a lenda.

 

 

 

Cinthia Kriemler

 

 

Retirado de Samizdat

publicado às 20:46



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