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Conto - A Constituição de Tal

por Jorge Soares, em 24.11.18

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Foto: Faces em ovos de galinha, série criada por kozyrev-vjacheslav 

 

Domingo, oito da noite. Rua pequena, cidade grande. O tropel de cinco ou seis pares de botas não tem testemunhas senão a própria vítima. Socos, pontapés, massacre. Um grito de medo, muitos de impotência. 
 
Mais tarde, no leito de um hospital público, não é a dor que enlouquece o paciente, mas as palavras que estacionaram em seus ouvidos, como mantras do mal: Viado! Viado aidético!
 
João José Manuel Raimundo de Tal tem a cabeça rachada em três lugares. Ou, para falar no jargão médico, sofreu traumatismo craniano. Sofre, ainda, da incredulidade de que tudo tenha mesmo acontecido. 
 
Esse cenário de violência homofóbica repete-se dia sim outro também nas cidades, nos jornais e na história dos que apanham por serem diferentes do que lhes tenta impor a massa obtusa. Apanham por serem o que são. Pessoas. Como a bailarina cujos dedos do pé são feios e tortos. Como o mecânico cujas unhas estão sempre negras de graxa. Como a freira cuja fé repele os homens da Terra para se entregar à Trindade dos céus. Vontades libertadas por prazer, hábito ou fé. Escolhas. 
 
Enquanto isso, no hospital público, João José Manuel Raimundo de Tal, cidadão trabalhador, filho de alguém, irmão de alguém apalpa a cicatriz que desce pela face. Vidro cortado; enterrado com sadismo em sua bochecha. Quer entender também a cusparada que levou antes do corte. Porque cuspe é mais que dor de corte. É humilhação. E compreender a dor de desespero que arde e coça dentro do peito. Mais que a cicatriz.
 
O policial de plantão cumpre o seu papel. Anota nome, endereço, detalhes e dá a queixa como prestada. Segue para o próximo caso. Um travesti de programa. Estupro seguido de esfaqueamento. Ninguém responde por ele. O traveeti foi morto e o policial com a prancheta se aborrece porque acredita que preencher a papelada é tarefa menor. Ele pega bandido. Papel é coisa de babaca. Mas tem muito crime e poucos homens para cobrir a megalópole, cada vez mais inchada. 
 
João José Manuel Raimundo de Tal consegue um advogado. Um doutor que lhe conta a que leis vai recorrer para colocar atrás das grades os agressores, capturados em razão de novos ataques a homossexuais. De Tal presta atenção às palavras bonitas da Constituição brasileira. E acredita que, perante a lei, é igual a qualquer outro homem, protegido do preconceito, da surra, do cuspe na cara. Não sabe ainda que, no Brasil, a incoerência, o deboche e o ódio não acontecem pelo texto ilibado da lei, mas pela prática diária da impunidade, pelo abrandamento das penas, pela vilania disfarçada em bons modos. 
 
No tribunal, os skinheads são julgados. Seis meses depois. E condenados a prestar serviços à comunidade. Mas João José Manuel Raimundo de Tal não se impressiona com a morosidade da Justiça. Nem com o número de crimes similares de que são acusados os nazistas de cabeças-raspadas. Nem a pena branda. O que mais lhe chama a atenção é o juiz que profere a sentença sem olhar na sua direção ao menos uma vez. O juiz que repudia a homossexualidade de João José Manuel Raimundo de Tal. Mas que se faz de imparcial, porque é um homem de leis. 
 
A dor do traumatismo passou. A da cicatriz de dentro continua. Sem previsão de passar. É dor de preconceito. 
 
Cinthia Kriemler

publicado às 19:42

Conto - A câmara pornográfica

por Jorge Soares, em 17.11.18

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Quando Lobato faleceu ninguém tinha ou sabia da chave do escritório, e evitando a janela lateral, pois situava-se o apartamento no oitavo andar, viúva e neto recorreram a um chaveiro com a finalidade de ordenar o seu espólio. Sendo ele investigador de polícia, adentraram o recinto na expectativa de relatórios, inquéritos e documentos, mas ali debateram-se com outro espetáculo: era o crepúsculo de uma quarta, e nem o sol moribundo como fonte de iluminação deixou de projetar nas muralhas daquele covil um sem número de silhuetas lascivas, concebidas a partir dos periódicos estocados em caixas e armários, tantas as revistas eróticas quanto as categorias de depravação.

A viúva, mulher franzina e apagada, cheia de hesitações, se não foi molestada pelas protuberâncias e quinas o foi pela simples existência, pelo que viu e sentiu ao defrontar-se com as obsessões do falecido. Colocou uma das mãos na testa e a segunda no peito, e acudida pelo neto, que antes enxotou o animado chaveiro, sentou-se de cócoras.
 
Ai, ciciou Helena, como dói.
 
Tamanho susto resultou no cancelamento da missa de sétimo dia e no silêncio dos familiares, e já então, graças à faxineira, conhecidos e desconhecidos discutiam o evento e os mal-intencionados atribuíam tais indecências à viúva e não ao velho. Roger, o neto, desdenhando as fofocas e servindo-se do sono barbitúrico de sua avó, com interesse técnico folheou uma ou duas, ou três ou trinta, e ao decidir livrar-se delas recorreu a um terceiro, desembolsando o triplo do acertado quando o mesmo viu as gravuras e recusou-se a trabalhar.
 
Ante o sorriso do porteiro levaram-nas dentro de caixas e despejaram-nas numa carroça, e depois de seis viagens o aposento enfim cintilava, em harmonia com o crucifixo acima da janela. Por ela ingressavam os raios da tarde silenciosa, destacando-se nos móveis um suor endurecido como cera de vela, estrias feitas à unha e, no chão, entre os ladrilhos de madeira, fios de musgo, e isso viu Helena da última leva sair. À noite sua ínfima compleição assumiu outra estatura sobre a cama, onde esparramou-se alegre, satisfeita, joelhos escancarados e ventre arejado, dir-se-ia uma vítima de atropelamento. De manhã acordou com os automóveis, e após saborear o café armou-se de esfregão e balde, decidida a tornar o escritório habitável. Para lá foi assoviando, e sua felicidade excedia, e muito, o luto, não mais expresso na escuridão dos trajes ou no cansaço do rosto, resultando esse sentimento de uma ingenuidade e devoção animalesca ao presente. Saltitante, largou os utensílios ante a porta, e de abrir a fechadura esmoreceu: o quarto, novamente, estava atulhado de revistas pornográficas.
 
Ao vir em seu auxílio, o neto, impaciente, questionou-a, indagou se não era ela quem servia-se da ocasião com o intuito de jogar fora as suas, e só suas, imundícies, mas a velha, usando de argumentos lógicos e lúcidos, demonstrou que não teria a força exigida para movimentar tanto peso, ou mesmo que as dimensões do apartamento não comportariam tal volume.
E, de noite, não ouvi nada, assegurou.
Ríspido e nervoso Roger chamou o papeleiro, que ao ir embora em sua carroça era acompanhado por um séquito de bêbados alvoroçados, malucos desnudos e crianças peçonhentas, todos enfrentando as chicotadas do condutor e disputando as brochuras que porventura caíam. Essa madrugada Helena enfrentou desperta, virando-se e explorando os limites da cama, ouvindo os roncos do neto que, desconfiado da avó, pernoitou na sala e com a aurora redescobriu pela terceira vez o aposento atulhado de publicações, um pôster orgiástico exibindo-se num dos armarinhos.
 
Mas isso é o cúmulo, ralhou ele, e Helena lacrimejava ao seu lado.
 
Desconsolados, neto e avó sentaram-se e discutiram a ocorrência. Bebericando água com açúcar, chegaram à conclusão de que nenhuma hipótese verossímil explicaria o fenômeno, e por fim reputaram o mesmo a uma assombração. Helena prontificou-se a convocar o pastor local, Benício, e feita a ligação telefônica no mesmo dia o religioso adentrava a sala e alisava as revistas com o cuidado de quem maneja explosivos. Era um homem de noventa anos, forçado à pequena estatura pelo tempo, mas outrossim enérgico, com mãos translúcidas e compridas, desproporcionais ao corpo. Disse ele que não era aquele um caso de assombração ou possessão, era sim a mítica figura da câmara erótica, descrita no evangelho apócrifo de Rocco e nas crônicas de Zabed, o sábio, além de mencionada em numerosos episódios da história ocidental e oriental.
 
Essa câmara, essa distinção arquitetônica, disse ele, é a manifestação sexo-espacial do universo, um local destinado às múltiplas variantes carnais existentes. Secando o canto da boca com seu lencinho, também disse que alguns eruditos inferiam a possibilidade de tais recintos serem expurgados via liturgias heréticas, e a terminar seu discurso trancou-se no aposento e enfrentou a madrugada e sabe-se lá quais e quantos demônios, com as últimas estrelas assomando dali abatido, o braço direito caído e sem forças.
 
O rito falhou, confessou ele à viúva enquanto Roger encaminhava-se ao escritório. O rito falhou. Envolvia seus olhos avermelhados uma bolsa de escuridão, e trêmulo e fora de si quis tascar um beijo sulfuroso, final, em Helena. Lutaram os dois, e arranhando-o de cima a baixo, chutando-o na canela, conseguiu expulsá-lo dali. Roger, retornando do quarto, ao ver a avó perguntou se Benício fora embora, pois nada ouvira do embate. Ela nada falou, abatida, somente abraçou o neto e entreviu, no bolso de sua calça, uma revista enrolada.
 
Vou descansar, disse, soltando-o, e evitou seu rosto. 
 
Mas e a senhora não sair um pouco, esquecer esse lugar, indagou ele.
 
Helena recusou a oferta. Queria dormir, descansar, e de Roger sair, convencido, agarrou ela um frasco de álcool e uma caixa de fósforos e dirigiu-se ao escritório. Sentou-se na cadeira do falecido, rota e rasgada mas nunca rangente, e dali observou o local. Premiam-lhe os lábios a infeliz musculatura da boca e uma maçaroca de rugas acinzentadas. Suspirou a viúva, avó e mulher, e pegando do chão uma publicação intitulada ‘Colegiais Japonesas Albinas e Tentáculos de Outro Mundo’, massageou os seios combalidos e deu-se por vencida.
 
As de copas
 
Retirado de Samizdat

publicado às 20:47

Conto - A Selva

por Jorge Soares, em 10.11.18

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Há muito que os homens saíram da selva. Não lhes servia tanta incerteza, tanto perigo de vida. Aos poucos, com avanços e recuos, organizaram-se para autodefesa, assistência mútua, caça. Criaram normas de funcionamento coletivo do grupo, muitas vezes tácitas, outras bem expressas. Para evitar aproveitamentos egoístas. Para que o grupo fosse o lar de cada um. E afastaram-se da selva e das suas práticas ferozes.
 
 
Sem que o percebessem, os animais observavam-nos, curiosos, e acabaram por conseguir copiar o Conselho da Tribo. Pelo menos em alguns dos seus aspetos formais. Chamaram-lhe o Conselho da Selva e funciona desde então. Reúne-se uma vez por ano, ou a qualquer momento, em sessão extraordinária, a pedido de algum grupo. Geralmente, é apresentado um problema, levantada uma questão, feita uma queixa ou uma reivindicação. Segue-se alguma troca de ideias, muita algazarra, mas por fim o Conselho costuma concluir com uma declaração por maioria absoluta.
 
 
 
 
Joaquim Bispo
 
*
Imagem: Henri Rousseau (o alfandegário), Cavalo atacado por um jaguar, 1910.
 
Retirado de Samizdat

publicado às 21:13

Conto - Desobediência

por Jorge Soares, em 03.11.18

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Engole o choro, menina! Que coisa feia essa manha!

Secando os olhos na manga do pijama e soltando fungados longos, suspirados, ela guarda a dor num lugar que ainda não sabe que se chama alma. Estica para a mãe os bracinhos pequenos. 
 
E ainda quer colo, depois dessa feiura toda?
 
Quer. Mas não ganha. Sentada no berço, agarra pelas tranças a boneca de pano e se deita sobre ela, soluçando.

Engole o choro, idiota! Aqui, ninguém chora porque apanhou na escola! Se chegar em casa chorando de novo vai apanhar é de mim! 
 
Choro guardado. Rosto lavado com água fria. A alma quase sem espaço pra ajeitar qualquer dor. Mas ela empurra até caber. No quarto, abraça as fotos dos artistas que adora. Todas compradas na banca de revistas. Autografadas e tudo. Gosta de pensar que cada autógrafo foi dado só para ela. E dorme sonhando com um beijo na boca do seu cantor predileto.
 
Engole o choro, mulher! Que merda é essa? Cala a boca! Se você não parar eu vou te quebrar todinha!
 
Quebra, não. Não tem mais pedaço inteiro. E essa coisa salgada escorrendo dos olhos é só um hábito de menina feia. Passa. É que de vez em quando a alma  expulsa uma dor que se revolta lá dentro. E a dor sai molhada. 
No banheiro, vira o rosto para cima e jura até para si mesma que as lágrimas são do chuveiro. 
 
Engole o choro, vovó! Por que é que velho chora à toa, hein?
 
É a novela. É gripe. Claridade. Cebola. Alergia. Eu posso parar, quer ver? Eu sei sorrir. Está vendo? Está vendo, sua porra de menina idiota? 
 
Engoliu todos os choros. Mas cansou de obedecer. E foi deixando vazar toda aquela água represada ao longo dos anos. Disfarçadamente. Gotejando. Até secar. 
 
Hoje, abriu a porta, desceu os degraus e sentiu a rua fria sob os pés tortos pelo reumatismo. Caminhou feito bêbada, esbarrou nas pessoas, abraçou os postes, berrou com as buzinas, dormiu com os mendigos. E estendeu os braços para o nada, essa alma enorme.
 
Cinthia Kriemler
 
Retirado de Samizdat

publicado às 22:08

Conto - Sombras de Carne

por Jorge Soares, em 27.10.18

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Lola limpou a boca no lençol, pouco se importando com o olhar magoado do rapaz ao seu lado. Aqueles encontros estavam começando a irritá-la. Rodrigo aparecia mais de uma vez por semana no Mercado Municipal, com um jeito desamparado de cachorro com fome, e ela acabava por ser deixar vencer pela piedade. Os olhos... Eram os olhos de Rodrigo que atraíam, prendiam. Não a boca, nem os gestos que não passavam de uma mão trêmula e gelada, e de um único grito abafado na hora do gozo. Seus olhos, no entanto, cuspiam sofrimento, escondiam algum segredo.
 
Havia entre os dois um comércio. Nada mais. Lola não gostava da demora do rapaz, do tempo arrastado que levava para gozar. Uma coisa tão simples essa de trepar, mas Rodrigo insistia em fazer de cada vez um ritual de afeto, como se estivessem num encontro. Ela já estivera com outros da idade dele, outros que se apaixonaram pelos seus seios e pelo seu sexo sem pelos, que a tocaram como gatos nervosos, desajeitados, arranhando, mordendo, se esfregando em sua pele lisa. Mas Rodrigo tinha aqueles olhos, só podia ser isso! E ela acabava por se deitar com ele novamente, rendendo-se a preliminares que não permitia a ninguém mais.
— Por que é que você limpou a boca? — o rapaz quis saber.
 
Sem lhe dar resposta, Lola enfiou o corpo carnudo debaixo do chuveiro. Ela tinha pressa. Sempre tinha. As coisas deveriam estar fervendo no mercado, e Xavier não gostava de ficar sozinho na banca. Reclamava da demora nas entregas e pedia a ela que não se ausentasse por tanto tempo. 
 
Não que desconfiasse dela. Não, isso nunca. Mas ficava desorientado quando a mulher não estava por perto para atender os fregueses. Embrulhava os queijos e as compotas no papel errado, amassava as frutas, e os fregueses só não iam embora por causa da amizade. Ela e Xavier mantinham a banca desde que tinham se casado, 18 anos antes. 
 
Dezoito anos atrás Rodrigo tinha três anos, pensou, se esquecendo do marido e do mercado. Mas logo afastou o pensamento e se concentrou no vaivém da toalha com que enxugava as costas.
 
Desde que Xavier tinha ficado doente, havia algum tempo, nunca mais fora o mesmo. Acabaram-se as brincadeiras prolongadas no colchão, o sexo em pé, atrás da porta, quando a urgência não permitia chegar ao quarto, e as fugas para os fundos da banca, onde se excitavam como adolescentes, escondidos atrás dos caixotes de fruta. Ela se acostumara, ano a ano, a fazer tudo com pressa. Não fosse aceitar aquela rapidez do marido, ficaria sem nada.
 
Traiu Xavier, pela primeira vez, seis anos antes. 
 
Um freguês perguntou se faziam entregas em domicílio e ela mesma se encarregou de ir levar as compras. Preferia que o marido ficasse na banca. Por mais desajeitado que fosse, Xavier era melhor do que ela nas contas, e havia ainda os fornecedores, com quem Lola preferia não ter que lidar. Quando chegou ao apartamento sofisticado, foi o próprio freguês quem lhe abriu a porta. Alto, com a pele clara e os cabelos escuros levemente ondulados, recendia a um perfume discreto, mas insinuante. Lola teve vontade, assim que o viu, de passear os dedos naquele peito largo. Deve ser bom deitar em cima dele depois do sexo, se pegou pensando. Depois, as mãos que se roçaram na entrega das compotas, o pacote que caiu, os dois corpos que se abaixaram juntos na tentativa de pegá-lo, e o perfume que se impregnou nos seus sentidos, roubando-lhe o juízo. Por fim, os olhos se provocaram. E os dois se completaram pela fome. Era assim que Lola gostava de se lembrar das coisas.
 
Fizeram sexo, ela e o homem do perfume suave, por quase um ano. Ele ia até a banca, encomendava os produtos e pedia que fossem entregues em sua casa. E a entrega se fazia no suor dos corpos apressados. Lola lhe fez uma exigência: que comprasse sempre muito. Aplicava, assim, ao amante e a si mesma, um mea culpa. Ambos pagavam, a seu modo, pelo que consumiam. 
 
Quando o amante parou de procurá-la, Lola percebeu que não sentia falta dele, mas das compras que fazia em abundância. E decidiu que era preciso repor o prejuízo. Da banca e do corpo. Um a um, foram surgindo outros fregueses. No princípio, ocasionais, induzidos pela boca pintada de Lola, que parecia a polpa das frutas que vendia. Mas, em poucos meses, o plantel que a solicitava era constante.
 
Assim que Xavier quis contratar um ajudante para ajudá-la com as entregas, ela se opôs: Desse jeito, o lucro vai-se embora!, afirmou. Aos 42 anos, Lola se rendia pela primeira vez em sua vida a um vício. Viciou-se não somente no sexo diversificado, mas na urgência, no desejo pelos corpos que aliviavam os seus tremores. Nenhum dos amantes dava trabalho. Nenhum deles fazia do sexo mais do que o prazer das línguas ansiosas, das penetrações que a invadiam com mais ou menos força. Aceitava o aperto nos seios, as bofetadas ocasionais que levava ou dava, a cavalgada e a posse animal. Recusava-se, apenas, a dentes que lhe marcassem o corpo que Xavier veria, cedo ou tarde; e aos beijos na boca, que se empenhava em reservar para o marido. Negava-se, também, a se deitar com menores, e com mais de um amante ao mesmo tempo. Afora essas rejeições, fazia pouco sexo com mulheres, porque sentia falta da penetração e dos fluidos.
 
O primeiro rapaz com quem fez sexo tinha uns 20 anos. Lembrava-se sempre dele e dos outros, de mesma idade. É impressionante como são desajeitados!, pensava, observando seus gestos durante a trepada. Como muitos deles não tinham dinheiro ou renda, comprometiam-se com a obrigação de levar pais e amigos à banca no mercado. Cumpriam direito o trato, com medo de perder Lola e ter que correr atrás das jovens cheias de espinhas e regras que os afastavam por pudor ou esperteza.
 
Rodrigo tinha ido à banca, pela primeira vez, num dia frio. Primeiro, ficou olhando para o chão, com timidez, mas no momento em que seu olhar cruzou com o dela, Lola percebeu a inquietação que havia naqueles olhos que fugiam de tudo. Chegando ao pequeno apartamento do rapaz para entregar as frutas e os doces, surpreendeu-se com a arrumação e o bom-gosto do lugar. E surpreendeu-se mais ainda quando Rodrigo lhe disse que morava sozinho. Fizeram um sexo ruim sobre a cama macia e larga, mas Lola não estava interessada nas habilidades de Rodrigo. Impressionava-se era com os gestos relutantes e respeitosos do rapaz. 
 
— Primeira vez? — perguntou, curiosa.
— Não, com certeza não. Mas, de uma certa maneira, sim.
 
Apesar de intrigada, Lola decidiu que já tinham conversado demais. Coitado, não bate bem das ideias, pensou enquanto saía do apartamento de Rodrigo, logo depois.
 
Agora, já eram cinco meses que o rapaz a procurava. Procurava sempre, em excesso. E Lola concordava em se deitar com ele por pena, curiosidade, culpa. Sim, era culpa aquele sentimento que sempre a levava a fazer coisas das quais se arrependia depois. Sentia-se culpada por não conseguir dar a Rodrigo o alívio que vira em outros homens, em outros rapazes como ele. Era o mesmo sentimento que a tomava quando percebia os olhares perdidos de Xavier, o cenho franzido, as mãos apertadas como se fossem dar socos no vazio, ou como se pensamentos absurdos lhe passassem pela cabeça.
 
Chega!, pensou contrariada, descendo com barulho as escadas do prédio de Rodrigo. Enquanto caminhava de volta ao mercado, decidiu que se livraria dele. Rodrigo não lhe fazia bem ao corpo nem aos pensamentos, que se aceleravam em hipóteses que ela não conseguia entender. 
 
Que se foda com os seus segredos!, decidiu, pouco antes de chegar à banca. Resolveu que seria aquela noite mesmo que o dispensaria. Xavier estava fora, num dos cursos para comerciantes que vivia fazendo, e ela teria tempo de sair e voltar sem ser vista. O marido não era homem de controlar os seus passos, mas ela preferia não ter que se explicar, para não ter que mentir. Orgulhava-se de pensar que não mentia para Xavier. Eu omito coisas dele, eu o engano, mas não minto para ele, repetia para si mesma quando a consciência teimava em vir à tona.
 
Aprontou-se rapidamente e borrifou nos pulsos e nas orelhas o perfume que usava diariamente. Em vez do táxi que inicialmente pensou em pedir, preferiu caminhar. A distância não era muita. 
 
A noite estava um pouco fria e a falta do agasalho fez com que seus mamilos se avolumassem sob o vestido de malha decotado. Prosseguiu a passo rápido, dando-se conta de onde estava apenas quando começou a ouvir algumas cantadas pesadas e assovios que a incomodaram. O atalho pela praia não tinha sido uma boa escolha. Percebeu, tarde demais, que atravessava uma das zonas de prostituição da cidade. Nos muros, as sombras dos corpos que faziam sexo não a assustavam tanto quanto os corpos que enxergava em carne e osso consumindo-se perto dos barcos, na areia, ou nos carros estacionados ao longo do meio-fio. Correu para afastar-se daquelas Lolas multiplicadas em trepadas rápidas, daqueles espelhos incômodos. Nervosa, se encostou nas grades de uma loja fechada e vomitou.
 
Pouco depois, retomou a caminhada com passos ainda mais rápidos. Virando a última esquina em frente ao porto, suspirou aliviada. Foi quando viu os dois corpos projetados numa parede mais à frente. Pensou em parar, em recuar, mas alguma coisa a atraiu, deixando-a excitada. Com tesão, procurou com pressas os próprios seios, apertando-os com força e sem parar. Devagar, gemendo baixo, aproximou-se mais e mais do muro que se contorcia. Queria ser parte daquele clímax.
 
Então, seus olhos se cruzaram com outros. Nos de Rodrigo, mais nenhum segredo. Nos de Xavier, o fogo que ela tinha perdido para sempre. 
 
Cinthia Kriemler
Retirado de Samizdat

publicado às 21:13

Conto - Por um instante, comigo

por Jorge Soares, em 16.07.16

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Por um instante, eu me lembro de mim. Grávida, sem companheiro, sem apoio nenhum. A barriga aumentando junto com as dúvidas. Se vai nascer normal; se vai ser mulher, para sofrer que nem todas as fêmeas das minhas raízes; se o dinheiro, que já não dá, vai conseguir se multiplicar na divisão por dois. Os complexos crescendo junto com o feto. A celulite exposta, as estrias brancas, os seios imensos e doloridos dos primeiros meses, a bunda caída do final. E a certeza humilhante de não ter com quem falar sobre o primeiro chute, sobre as cólicas, sobre a vontade aumentada de fazer sexo, sobre a dor nas pernas obrigando a reduzir os saltos. Ninguém a quem mostrar as camisinhas de pagão, a chupeta branca, as calças, as fraldas, os cueiros, a banheira de plástico. Quase tudo comprado aos pares ou pouco mais, para caber no orçamento. Nem pai nem mãe a quem pedir colo, conselho. Ambos mortos. A única irmã morando em Dunquerque. Tão distante quanto antes de Dunquerque. Nenhum namorado, nenhum amor. Só um reprodutor apressado. Trinta e cinco anos e uma vida na barriga. Trinta e cinco anos, uma vida na barriga e outra carregada no próprio lombo. O medo de um aborto, de um parto prematuro, da perda, clichê da humanidade. E as pessoas cobrando esse aborto, chamando de decisão irresponsável levar adiante, dizendo que é fardo. Que fardo? Alguém de quem cuidar nas noites esvaziadas de tudo. Alguém para fazer barulho no silêncio insuportável. Alguém com todas as possibilidades ainda intocadas. Sem ranço, fracasso, impotência, angústia, desistência, solidão, desespero. Que fardo? 

 

Agora, este esbarrão. Olhos que se engalfinham com os meus. Um pedido de desculpas tão intenso que extrapola o fato banal. Um rosto que copia o passado. A barriga imensa, os tornozelos inchados, o nariz alargado. A angústia estourando como ressaca nos olhos. Dúvidas iguais. O medo de ter que ser tudo, de querer ser tudo. Sozinha. Eu sei. Reconheço a mim mesma quando me encontro. Tenho vontade de abraçar essa história nossa. De dizer a ela que a incerteza rasga o afeto; de dizer que dói para sempre seguir sendo o eu e o nós; de dizer que, ainda assim, vale a pena. Mas o momento passa e eu recuo. A vida fará melhor do que eu. A vida não recua.

Ilustração: ShawlinMohd

 

Cinthia Kriemler

 
Retiradode Samizdat

publicado às 21:13

Conto - Onde devem estar os gritos

por Jorge Soares, em 25.06.16

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Sempre guardou segredos. Aprendeu a ser silêncios desde pequena. A ser apenas gritos internos. Quantos anos tinha? Quatro, cinco? Memórias incertas. A babá se perfumando com os frascos caros da penteadeira da mãe. A babá ajeitando os ca- belos no espelho oval do corredor. A babá encostando a língua na língua do moço que entregava as compras. Aquele passear de mãos pelo corpo inteiro; por cima e por dentro do uniforme. Os apertões, os tapas. Gemidos de dor quase não gemidos. Entrecortados, semitonados. E o rosto contorcido, exausto. Coitadinha. Não gostava do moço que fazia a babá gemer. E estranhava aquela dor que não pedia socorro. Quis respostas. Perguntou. Arrependeu-se. Você quer que a babá vá embora? Quer? Você quer ver a babá chorar? Não queria. Calou-se. Descobriu que o nome desse não contar era segredo. E que calar era um jeito de não perder as pessoas. Gostou de ser segredos. Cresceu silêncios.
 
 
Além dos gemidos e gritos, aprendeu como escoar para dentro também os risos de deboche que recebia na escola. A limpar pacientemente a terra jogada nos cabelos longos pelas meninas no recreio. A encapar os livros duas vezes, para protegê-los melhor das poças d’água nas quais eram jogados uma, duas vezes por semana. Silêncios.
 
 
Quando ouviu as meninas falando sobre o príncipe encantado que chegaria no meio da noite para levá-las na garupa de um cavalo branco, pensou em lhes contar que não havia cavalo nenhum. Que o príncipe suado viria do quarto ao lado e se deitaria sobre elas e passearia as mãos sobre seu corpo e lhes cobriria a boca com a mão pesada, repetindo em seus ouvidos: minha princesinha, minha princesinha. Contar-lhes sobre a invasão negociada a promessas de brinquedos e viagens. Sobre a verdade impedida por manipulações traiçoeiras. Se mamãe souber vai ficar triste com você. Você quer que a mamãe vá embora? Quer fazer a mamãe chorar? Mas não disse nada. Ela guardava segredos.
Aprendeu como limpar o sangue escuro que saía do sexo pequeno sem gemer a agonia das feridas. As dores na barriga, os calafrios, a tontura. Tudo fluindo para dentro. Sem voz. Sem alarde. Até que os seios fartos e as ancas redondas lhe disseram que era tempo de basta. Criou coragem de mulher. Contou à mãe sobre as noites de princesa. Arrependeu-se. Mentirosa! Você quer que seu pai vá embora? Que ele me deixe sozinha? Quer? Você sempre teve ciúme do seu pai comigo. Cala essa boca e some daqui.
 
 
Descobriu que falar era um jeito de afastar as pessoas. As piores pessoas. Que falar tinha sabor de alívio. Transbordou. Vomitou segredos e silêncios. Jogou tudo para fora. Para fora, onde devem estar os gritos.
 
Cinthia Kriemler
 
Retirado de Samizdat

publicado às 21:13

Conto - viúva

por Jorge Soares, em 18.06.16

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Gertrudes Patrício costuma dizer: enviuvei de dois maridos. Mas ela sabe que, com bênção da igreja, assim mesmo casados, foi apenas com Juvenal, o pai da mais nova.
 
Tinham combinado dar o nó mal terminassem as ceifas, e seria boda com o senhor Prior abençoando e as alianças e o véu rojando a pedra vermelha do chão da capela da Senhora das Dores.
 
Mas o destino tem linhas que a gente treslê e, nesse entretanto, ao rapaz deu-lhe um mal de peito. Uma coisa de repente e ainda assim tão grave, que o médico achou por bem enviá-lo para o sanatório. Que o rapaz se tratasse. Que tomasse os ares da serra e depois de curado voltasse.
 
Ficou Gertrudes Patrício, nem casada, mas presa de um descuido ao despedirem-se. Saber-se-ia prenha, já Matias andava por terras de frios e de gelos, e haviam de casar pelo registo por via de uma procuração que Gertrudes pediu. Cartas demoradas na ida e na vinda, mas ficaram casados.
 
E no entretanto de já serem mulher e marido, vieram, entremeadas, outras cartas. Escrevia-as Matias numa caligrafia perra, que a escola dele tinha sido a cuidar dos rebanhos, e o mais fora o senhor padre Honório aos domingos à tarde, a seguir à catequese.
 
Dizia ele, em caracteres a cheirarem a remédio: isto aqui é o inferno. E pedia, numa letra tremida: manda-me umas meias, pela tua saúde, que por estas bandas faz um frio do demo. Gertrudes Patrício teceu-lhas, no esmero das cinco agulhas, de um fio de lã de ter desfeito um casaco que lhe tinha minguado. Junto, havia de enviar-lhe uns figos secos. Nunca os roeria o pai da criança que lhe crescia no ventre, e nem nunca meteria os pés naquelas meias, que quando chegou a encomenda, já os senhores da secretaria tinham dado ao Senhor Director um papel escrito e que o assinasse. No envelope, que seria lacrado, alguém escreveria o nome da aldeia e o nome dela, e colocaria dentro a carta onde o Senhor Director rabiscasse uma assinatura. A carta que Gertrudes receberia uma semana depois, demorada de vir de lá tão longe.
 
Um envelope a cheirar cheiros que não eram dali e nem dos arredores, percebeu o moço que distribuía o correio, e pasmou-se na porta de Gertrudes Patrício, mas ela demorou a abrir o subscrito, e Felisberto pisgou-se que tinha ainda correio na sacola. Teria andado o que valesse a duas moradias, e já ele ouvia o alarido que era Gertrudes clamando. Tinha decerto rasgado o envelope e lá dentro estariam más notícias. Mas Felisberto apressou o passo a sentir assim uma espécie de culpa e nem sabendo que, num papel muito lisinho e muito bem escrito, Gertrudes Patrício tinha lido: faleceu às presumíveis seis horas e trinta e cinco minutos do dia vinte e cinco de Outubro. E ainda mal ela lia o nome completo de Matias e mais o número de inscrição que lhe tinham atribuído no sanatório, e já aquele urro imenso lhe saía, assim como que num alívio que ela fizesse ao peito que lhe tinha ficado num aperto mal lera o remetente.
 
Não acorreu Felisberto, mas acorreu meio mundo aos gritos de Gertrudes.
 
Pobrezinha! Viúva sem quase ter sido esposa, comentavam, de umas às outras, as mulheres.
 
Mas Gertrudes Patrício, ainda que gritando, nem sentia assim uma tristeza desmedida. O que ela clamava era o receio, aquele como que fosse mal que caísse sobre a menina por ter sido a morte de Matias no preciso dia, e na mesma hora, em que, há uns escassos dias, a clamar mais alto que o latir dos cães, pusera Iracema neste mundo.
 
Coisas do acaso que ela dava como coisas do demónio, e Gertrudes Patrício soluçava disso, muito mais do que ela chorava a morte do Matias.
 
E no entanto, logo na tarde desse dia, carregou-se de um negro completo até no lenço que colocou sobre o castanho claro dos cabelos. Um tecido opaco e liso que lhe descaia sobre a testa e lhe ensombrava o rosto.
 
Tinha dezoito anos e sentia o sangue a pulsar-lhe intenso a cada vinte e quatro dias, o período certo e ela, despudorada daqueles vermelhos que se espalhavam no corpo e a afogueavam, carregava-se do negro das mulheres sem marido.
 
E passou um inverno chuvoso, e veio Abril. E passaria ainda aquele Agosto de inferno e chegaria outro dia vinte e cinco de Outubro. Nesse dia de a sua menina completar um ano, Gertrudes Patrício levou Iracema a baptizar.
 
De uso, Gertrudes usava o cabelo atado numa trança que deixava dependurada sobre a nuca e, a cobria-la, por inteiro, a ponta estiraçada do lenço negro.
 
Mas, naquele domingo, ela mudou-se.
 
E nem o fez no propósito de aliviar o luto.
 
Sentou-se em frente do espelho e apeteceu-lhe.
 
E foi assim, num descuido, que ela prendeu a trança no alto da cabeça como nem era seu costume e, por cima daquele chinó quase loiro de ser o cabelo dela de um castanho tão claro, deitou um véu rendado: um tule negro e muito fino onde resmalhavam, bordadas num tecido aveludado, umas florinhas miúdas, elas também negríssimas. Do transparente do véu, soltava-se o branco muito alvo que era a sua pele no arqueado elegante do pescoço, e desvendavam-se-lhe as orelhas que ela tinha, maneirinhas, um tudo nada salientes; nelas dependurou, vagarosa, umas arrecadas  pequenas em oiro de lei.
 
Gertrudes Patrício, que apenas na alvura da roupa debaixo se livrava do negrume daquele luto de viúva, ia baptizar a sua filha e não sabia que entraria quase nua na igreja.
 
Os homens cumprimentaram-na no adro: muito bom dia Senhora Dona Gertrudes. E descobriam as cabeças do chapéu ou da boina, mas era como a viam: Gertrudes Patrício a entrar descomposta na igreja.
 
Assim a viam eles e assim também a viam as mulheres. As que ficavam ao fundo da Igreja, e as senhoras de lugar cativo na fila da frente. Umas e outras cochichavam entre si disfarçando as falas como se dissessem mais um Padre-Nosso ou uma Ave-Maria: que vergonha! E benziam-se como que a exorcizarem um mal do demo.
 
Gertrudes Patrício despida da sua condição de viúva por via daquele chinó que trazia no alto da cabeça, descobertas as orelhas, desnudado o alvo do pescoço no transparente daquele véu.
 
Assim a terá visto Juvenal a servir-se de água para o sinal da cruz na pia da entrada: Gertrudes Patrício mais nua que vestida. 
 
Ele a poisar os olhos no tom leitoso do seu pescoço e Gertrudes Patrício a rodar o corpo no banco em que se sentava. 
 
Um gesto sem remédio, dirá ela a recordar o cruzar de olhos que fizeram na Igreja onde estava para baptizar Iracema, a filha do Matias.
 
Maria de Fátima Santos
 
Retirado de Samizdat

publicado às 21:13

Conto - As seis notas

por Jorge Soares, em 11.06.16

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Não sabia o que vestir, então deixou que sua mãe a ajudasse. Reviraram as roupas do velho baú até encontrarem algo apropriado para a ocasião daquela tarde: um velho vestido de tafetá, mas de um azul bonito e lustroso.

 

— Teu pai ficava doido quando me via socada nesse aqui. Eu faço um arranjo ligeiro e tu vai entrar nele como se tivesse sido feito pra tu — diz a mãe, visivelmente orgulhosa.

 

— Anda, Veralda, avia! Vai te assear que eu vou dar uns ponto no vestido, depois a gente pinta a tua cara pra te livrar dessa cor de cera, minha filha.

 

Coordena os serviços, a mãe. Tem ela o pé nu e de unhas feias posto sobre o pedal da máquina de costura. Uma mão acaricia o tecido que fede à barata enquanto a outra busca por tesoura e linha.

 

Veralda apressa-se em não decepcioná-la e corre até a cozinha, onde apanha sobre o jirau um pedaço de sabão de coco e uma toalha. Caminha aos pulinhos até o banheiro improvisado com palhas de carnaúba, posto estrategicamente ao lado da cacimba. A água fresca banha seu corpo e Veralda se esquece do calor e das obrigações, pensa nas belas bonecas que ganhará e esfrega a cara com força, como se quisesse se tornar outra. Experimenta o cheiro bom do sabão e lambe sua espuma. Não parece coco.

 

Quer estender o banho, mas seus braços finos não aguentam puxar mais que três baldes. A aspereza da toalha quase fere sua pele marcada pelas surras e quedas do cajueiro.

 

— Mãe, bota mais — suplica Veralda diante do espelho, ao ver seu rosto, pela primeira vez, maquiado. — Eu tô bonita, num tô? — Pergunta a filha.

 

A mãe responde com um muxoxo e se ocupa em desembaraçar os cabelos cheios de piolhos e carrapichos.

 

— Nem teus irmão homem tem uma cabeça sebosa como a tua, cunhã. E para de se bulir senão eu te dou um cascudo, desinfeliz — repreende a mãe.

 

Mas Veralda nada escuta. Mira-se no espelho e sonha em ser a princesa que um dia vira em uma revista que sua irmã mais velha trouxera de Fortaleza. Jamais fora à capital do estado. Nem ela, nem seus pais ou seus outros irmãos. Pareciam todos condenados a morrer ali, entre Brejo Santo e São José do Belmonte. Mas, a sorte de Veralda estava fadada a mudar ainda naquela tarde. Teria um quarto só seu e dois bambolês, um amarelo e outro azul. Seria mais rica que qualquer menina.  

 

— É essa aqui? — pergunta o estranho, de aspecto repugnante.

 

O homem segura a menina por um dos braços e verifica atrás das orelhas, também dentro da pequenina boca. Talvez procure por feridas, como faria o comprador de um animal.

 

— É essa aí sim, é bonita, num é? — cintilam os olhos da mulher, orgulhosa por ser boa parideira.

 

— Essa menina tem mesmo só onze ano? Seu Dosinho só gosta das novinha. A sua cabrocha aqui parece mais velha. — desconfia da mercadoria, o atravessador. Sabia o que lhe aguardava caso pagasse mais caro por algo que não valesse cada centavo.

 

— Tem mais de onze não, Juarez. É que essa aí come demais. Ou me livro dela ou não crio as outras três pra ficarem assim, vistosa que nem ela. E tá aqui a certidão de nascimento — apresenta a mãe o papel carcomido, o que abona sua retidão em transações comerciais. — Se quiser, pode levar pro Seu Dosinho em pessoa conferir o documento.

 

Após guardar o papel no bolso de sua calça brim encardida, o homem retira a carteira — cuidadosamente posta entre o cós da calça e seu púbis — e sorri para Veralda.

 

— O acertado foi seiscentos reais, num foi, Dona Verbênia? Pois tá aqui cada centavo, a senhora já tinha visto uma nota de cem? É bonita, num é?

 

A mulher acaricia cada uma das cédulas, enquanto seu cliente traz para junto de si o resultado de sua compra.

 

— Deseje felicidade pro Seu Dosinho, viu, Juarez. E Diga pro Sargento Cardoso que Valfredo não vai poder ir no sábado porque ainda tá cum dor. Mas mando o Valter no lugar dele e faço um abatimento.

 

A mulher ri satisfeita ao sentir as seis notas de cem reais roçarem-lhe o mamilo rijo. Molha-as de leite.

 

— Mãe, eu não quero ir — diz a menina ao libertar-se das mãos de seu comprador e correr até sua cachorra. Abraça a cadela prenha como quem procura o carinho de uma boa amiga. — Eu quero ver os cachorrinho da Pidoga nascer. Depois que ela parir, a senhora pode me mandar pro Seu Dosinho.

 

Nervosa, a cachorra balança o rabo. Seus olhinhos castanhos molhados pelo choro da menina que ama, ficam apertados. Se soubesse o que se passa, morderia esses dois infelizes que as separarão para sempre, Veralda e ela, e que também se livrarão de seus filhotes antes mesmo que eles desmamem.

 

A mãe, extremamente constrangida, toma a filha para si. Paciente, como só as mães sabem ser, seus olhos reluzem enquanto ela diz:

 

— Deixe de besteira, Veralda. Vá logo com o Juarez. Pra que tu quer ver os filhote da Pidoga? Que serventia tem isso? Se preocupa em fazer logo um teu, pensa direito, ou tu num é minha filha?

 

Muito séria, Veralda para de chorar e entrega sua mão a de Juarez.

 

— Eu preferia ser filha da Pidoga — diz, vingada, antes de partir.

 

 

Emerson Braga

 

Retirado de Samizdat

publicado às 21:13

Conto - O fogo do Inferno

por Jorge Soares, em 04.06.16

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Era assim que ela pensava nele. Com o sexo pulsando dentro da lingerie recém-comprada e os bicos dos seios em riste, dois olhos varando o tecido leve do vestido. As entranhas se repuxando e se esticando num clímax de veias e órgãos; o suor escorrendo pelo corpo, formando alagamentos onde as curvas e desvios e orifícios permitissem. 
 
Um ano antes e nada era assim. Nem a vida em estado de graça, nem a respiração acelerada, nem a vagina depilada para sentir a pele dele encostando-se à dela. Um ano antes e ela não sabia como era esse calor que consome como o fogo do inferno. Não contava com nada além dos próprios dedos acanhados dentro da calcinha larga, e com o orgasmo silencioso no quarto escuro, e com a moleza do corpo que a deixava dormir um sono pesado.
 
O único homem com quem tinha dormido já fazia tempo. Um bêbado estúpido que lhe concedia duas horas por semana, enquanto a esposa perfeita acreditava que ele estava com os amigos. No começo, se arrumava e se enchia de cremes e perfume. Fazia jantar e sobremesa para esperar por ele. Comprava flores para a jarra de cristal. E soltava os cabelos para vê-los se agitar numa cavalgada que nunca aconteceu. O que aconteceu foi a certeza de que somente as garrafas de uísque precisavam ser renovadas a cada duas semanas. 
 
Mas, um ano antes, tudo havia mudado. Quando ela já não esperava por nada. Não que ter trinta e seis anos a incomodasse. O que arrebentava por dentro era o medo de só ler nas revistas aquelas carícias e sensações incríveis. Não precisava de homem para pagar as contas, para trocar as lâmpadas, para carregar peso, para conversar. Queria um homem de cama, devasso, com pegada forte e cheiro de toda hora. Nada de companheirismo ou de jantares. Cama. 
 
Foi o que teve. É o que tem. Há um ano, um mês e doze dias. 
 
Nada demais, quando se conheceram. Aliás, tudo de menos. Um segurança vulgar de boate, fazendo pose de policial americano dentro de um terno preto surrado. Uma briga qualquer que saiu do controle, o salto do sapato quebrado e ela no chão, sentindo a dor de cada pisada sem conseguir se levantar. Até que tudo parou. E ela se sentiu no ar, naquele colo imenso. O braço dele, rijo, sob as suas coxas; o suor daquele peito que a acolhia, protegia.
 
No elevador, mais tarde, sem se importar com os pontos no rosto e com os hematomas doloridos, ela se entregou a ele como um bicho. Nenhuma delicadeza. Nenhum pudor. Apossou-se dele com os dentes, com a boca, com as mãos, com as pernas entrelaçando-lhe a cintura. Gemendo num tesão enlouquecido. 
 
Nunca mais parou de gritar durante o sexo. Na hora do almoço, em casa, sobre a cama grande e perfumada; no fim da tarde, na cama estreita do quarto barato em que ele morava. Tudo para esperar a noite, em que qualquer canto escuro e sujo perto da boate servia para o coito rápido. Dois intervalos para fumar. Era o que ele tinha. Duas trepadas em pé. E ela, sem freios, imaginando o logo mais, quando o arrastaria, no fim da madrugada, para o apartamento dela. E fariam sexo mais uma vez, na garagem, no chuveiro, no corredor ainda escuro do prédio.
 
Um ano antes e nada era assim. Agora, a urgência insaciada agoniando o corpo. Ele dizendo que ela precisa parar, que ela está doente. Ela não querendo se curar dessa doença, dizendo que não é doença, que é vontade de cama. Desconfiando que ele arrumou outra e quer se livrar dela. Que ele e a outra transam, às escondidas, enquanto ela está no trabalho se acariciando no banheiro apertado sem poder gritar; ou enquanto ela ainda está em casa, à noite, esperando pela hora do intervalo dele. Tendo certeza de que ele e a outra estão, neste instante, rindo, mordendo, gemendo feito bichos. Olhando para a arma que pegou no armário dele e pensando que, antes de matar e de morrer, ela quer transar mais uma vez, só mais uma vez.

Ilustração: Escultura em mármore O Rapto de Proserpina, de Gian Lourenzo Bernini (Séc. XVII)
 
Cinthia Kriemler
 
Retirado de Samizdat
 

 

publicado às 21:13


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