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Conto - Fomes

por Jorge Soares, em 17.10.15

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A fome não é exigente: basta contentá-la, 
como, não importa. 
(Sêneca)
 
No primeiro tombo, ralou os joelhos no assoalho duro. Ganhou consolo, colo, chupeta. Viu o piso inanimado de madeira ser chamado de bobo e feio pela mãe, e receber do pai tapas insanos. Não achou graça. E chorou aos gritos, nariz escorrendo, punhos tão cerrados que arrebentou a pulseira de ouro de chapinha na qual o nome dela estava gravado em letra bordada. Esperneou, corcoveou, puxou os próprios cabelos e os da mãe, que a sujigava nos braços para que ela não caísse. Então, o pirulito. Grande, multicolorido. Entregue pelo pai como um troféu melado. E não houve mais choro ou ranger de dentes. Que gracinha! Menina linda da mamãe! Amorzinho do papai! Que belezinha!
 
Passou a infância entre doces, sorvetes, choros e elogios. Chocolates pretos, brancos, crocantes, recheados. Recebidos em momentos de dor, de aflição, de insegurança, de carência. Na adolescência, descobriu os sanduíches de dois andares, os refrigerantes, os achocolatados misturados com granulados, as casquinhas de biscoito que enfeitavam os milk-shakes e que depois passaram a ser comidas sem os milk-shakes. E como a ansiedade não passava, e como os meninos já eram ridiculamente fiéis às formas esquálidas, e como as dela eram redondas e macias como as almofadas do sofá, deixou que toda aquela fome, constante e imensa, fosse aplacada por novos sabores. Incluiu na dieta um baseado por noite e cinco dias de álcool por semana. Vodca. Retirada sem aviso do estoque do pai. A Stolichnaya era tomada em copo de plástico branco. Em casa. No quarto. Caso alguém entrasse sem bater, não daria muita atenção a um copinho descartável. Na rua, fazia vaquinha com os amigos; compravam gelo.
 
Mas a fome não passou. Não passava nunca. Além do apetite causado pela larica e pela ressaca, havia mais. E ela queria esse mais. Da primeira vez que fez sexo, sentiu-se saciada, relaxada. O banco de trás do carro era apertado para o seu corpo gordo, mas aquele aperto todo tinha excitado o parceiro. Mais atrito, mais encaixe, mais penetração, ele explicou assim que a trepada terminou. Naquela noite, ela se esqueceu do baseado e do copo de vodca, que dormiu metade cheio embaixo da cama.
 
Viciou-se naquele alívio que a fez esquecer os doces, os refrigerantes, as pizzas, o álcool. E descobriu que o que lhe dava mais prazer no sexo era enfiar na boca o membro ainda mole e senti-lo crescer ao comando da sua língua nervosa. Em pouco tempo, ganhou fama de ser a melhor na prática do sexo oral. Ela diria pênis e boquete, mas ainda não estava pronta para essas palavras tão íntimas.
 
Namorados, amantes, ficantes. Ela escolhia. Marcava e desmarcava dia e hora. E decidia quanto tempo duravam. Desejava, implicava, atraía, rejeitava. Passou a trocar o almoço por transa. O jantar, os lanches de fim de semana. Trocou de idade várias vezes, virou mulher. Gostosa, safada, experiente, esperta. Magra na medida certa. Cheia nos lugares certos. Até que cismou que precisava entender aquela fome maior do que ela. Procurou psicólogo, padre, benzedeira, astrólogo. Comprou livros que falavam de obsessão, de compulsão, de possessão, de fugas, de vícios, de complexos, de negação, de distúrbios. Nada. 
 
Então, leu sobre o controle e sobre a dominação. E teve fome de algemas, chicotes, correntes. Fome de poder. Esse pirulito grande, multicolorido.
 

Cinthia Kriemler

Retirado de Samizdat

publicado às 21:31

O fascínio de As 50 sombras de Grey

por Jorge Soares, em 12.02.15

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Por estes dias é difícil fugir ao tema, na rádio, na televisão, no facebook, nos jornais.... não me lembro de algum filme ter levantado tanta poeira mesmo antes de estrear.... 

 

Curiosamente entre todas as pessoas que ouvi falar do assunto, na sua maioria mulheres, não ouvi uma única que reconheça ter lido o livro, esta manhã na Antena 3  o máximo que se admitiu foi ter-se lido uns parágrafos, mas nunca o livro..... como é que tanta gente que não viu o filme ou leu o livro pode ter uma opinião formada? Já agora, e para não destoar, eu também (ainda) não li livro.

 

O filme estreia este fim de semana, em Portugal há muito que a maioria das sessões estão esgotadas, coisa nunca vista por cá, quem ainda não comprou bilhete vai ter que esperar algum tempo até que a coisa acalme.

 

Curioso mesmo são as noticias que vão surgindo, vejamos alguns exemplos:

No Sapo Cinema  - "As principais cadeias de salas de cinema nos EUA pedem aos seus clientes para não levarem artigos que possam fazer os outros espectadores sentirem-se «desconfortáveis»".

 

No Sol - Londres: Bombeiros prevêem aumento de ocorrências após estreia de ‘As Cinquenta Sombras de Grey’ ... "desde Abril registaram quase 400 pedidos de ajuda por causa de actividades sexuais inspiradas nos livros"

 

No Observador - “As Cinquenta Sombras de Grey”: nem chega a ser sexy, só chacha"

 

No El Pais - "'50 sombras de Grey': 14 palmadas no rabo em duas horas"

 

É incrível como apesar da passagem do tempo, da televisão por cabo, da internet, o sexo e o tabu continuam a exercer este tipo de fascínio sobre as pessoas até ao ponto de tornar um sucesso estrondoso, não só um livro mediano como um filme que  a julgar pelos primeiro comentários, vai deixar muita gente desiludida e a pensar "mas é só isto?"

 

Confesso, eu vi três vezes o "Nove semanas e meio", mas eu tenho desculpa, para além de que tinha 17 ou 18 anos na altura, a protagonista era a Kim Bassinger ....  para além de que o filme era um excelente tema de conversa com as miúdas.

 

É suposto aos trinta e muitos ou quarenta já termos passado essa fase, pelos vistos não, foi precisamente nessas faixas etárias que o livro teve mais sucesso e presumo eu que terão sido as mesmas pessoas que esgotaram os cinemas... os miúdos que  querem ver o filme não vão ao cinema, sacam da net.

 

Há muita gente por ai com falta de imaginação e as sex shops devem estar a fazer o seu Agosto, mas levar os brinquedos para o cinema?.. os bombeiros prevêem um aumento dos acidentes domésticos?....WTF?

 

Jorge Soares

publicado às 23:01

Conto - Maxaqunina

por Jorge Soares, em 13.12.14

 

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Imagem de aqui

 

Bem na palma da cidade de Maputo, agarra-se um subúrbio, uma selva cercada a cal e cimento; selva onde o cifrão traz crinas e jubas, e goza de um eterno reinado. Maxaquene, como quem diz - familiares, ergue-se na assombração da vida humana; entre madeira e zinco, ecoa o rugir de um clamor desnutrido pela desigualdade socializada da cidade.

 

A vida corre asfaltada de raiva e tinha, e vai latindo de lamentações como um canino ao anoitecer da convivência social; estendida à rápida metamorfose e ladra o ser suburbano aliás, sub-humano. “Elas” são sempre o sacrifício da família, o garante dos demais membros verem o amanhã; ver a mesa pelo menos uma vez ao dia. Ter filhas, ser chulo, é algo indiferente. Elas exibem-se no tropel da vida e alimentam a cidade de gemidos, gozos e delírios outrora ocultos à gente da mesma idade. Era, é, e não se sabe até quando será assim a vida, nas maxaqueninas. Essas atletas a mercê da fome, num jogo em que quem ganha o presente perde o futuro e muito mais. Mas o que fazer quando a única saída é só para boca do tubarão?

 

As bonitas vivem pela beleza, as feias procuram outro argumento para encarar a vida, não tendo outro, estas presas a fome e nada. A Maxaquenina eleita aqui, como protagonista, era reunida de uma pigmentação preconceituosa do ser (mulata), quanto mais for clara a pele, maior é o escuro do futuro. É essa a regra e a alma do subúrbio, regra não-negra, desalmada na vastidão não-branca.

 

A Maxaquenina julgava-se na sentença máxima de pertencer a cor; uma rainha (dês) coroada da cor doada violentamente. Só compatibilizava-se pelas mesmas epidermes místicas, as igualitárias oriundas de um passado comum, de mercadores árabes a colónias europeias; que a convivência suburbana esbarra ao preço do pão. Para ela, tudo valia a pena; era a cor o seu preferencial e companheirismo ideal. Vinha sempre uma alma nua, ancorada em mares mistos e místicos; independentemente da faina, labutava neste desconceituo ofício da vida. É triste quando o que achamos que nos é igual de outro, o outro não valoriza. A convivência suburbana é uma aventura sem viagem alguma; um tempo sem compromisso com a hora.

 

A Maxaqunina era, talvez pelo esforço via-se quase, linda; trazia um fogo guardado, que o mesmo afugentava os negrinhos e aquecia os homens de cor; em vivências mal concebidas. Pois, a maldade sentir-se-á triste pela tal comparação; ela passava a vida nas piores das formas que uma moça do seu porte e cor poderia passar. Engraçado, dava tudo para manter aquela aparecia barata, aquela aparência aparentada dela mesma. A preocupação era a aparência, não a essência. Uma vez, no dia em que, não se sabendo por que razão, conseguiu somas consideráveis de cifrão. Pegou e gastou, em o quê? Roupa e cabelo. Dizia a mãe:

- Você nem cama têm, mal come; porque tchunabeibes e tizagens?, coisas caras... minha filha, tenha juízo. Juízo era realmente algo que nem a binóculos a filha contemplaria. A maxaquenina pensava rápido e curto; um pensar típico e suburbano. Aliás, um pensar que qualquer um pode, desde que pense em pensar. Pensar para logo vencer! A Escola é pensar para esperar; esperar é paciência, no subúrbio paciência traz derrota, e escola serve para ter boneca; sonho de toda menina; ela, não querendo ser excepção até na quinta classe foi suficiente para concretizar o sonho, suficiente para deixar de sonhar e ter o seu boneco; um bebé malnutrido, aliás sem nutrição; mas feliz para ele, pois seus companheiros foram anulados enquanto feto, outros jogados vivos na sarjeta. - Que sobreviva assim que estás, quem sabe no futuro... os outros nem presente tiveram. Dizia a Maxaquenina, quando o bebé fazia o que bem sabia fazer: chorar, chorar e chorar.  

 

O tempo dá azo aos seus ensinamentos tardiamente. Quanto ao exemplo desses exercícios fazia-lhe frente, virou frango para os mesmos negrinhos: assado, cozido, por vezes cru. Hoje, os sem cor, os sem alma não a erotizam, ninguém por nada, mergulha neste (mar) morto que um dia foi praia quente e os coloridos navegaram-na descamisados; uma praia virgem e exploraram-na todo atractivo erótico. Hoje paisagem, somente onde o tempo faz delas histórias de uma viagem estática. Uma viagem que traz ao mundo da pequena selva (Maxaquene) dentro da já suburbana cidade de Maputo, mais sentido ao ciclo vicioso; mais índice a obscenidade.  

 

Japone Arijuane - Moçambique

 

Retirado de Literatas

publicado às 21:29

Conto - Na casa da vizinha

por Jorge Soares, em 06.12.14

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Imagem de aqui 

 

Nós aparecemos como resgate, teríamos de ficar com um quarto da casa e um quarto da sala, teríamos de dividi-la ao meio, enquanto esperávamos um pedreiro para a reforma, porém alojamo-nos mesmo assim, apenas uma cortina separávamos. Eu era nocturno caseiro, meu companheiro nem por isso, vezes eram duas por semana que dormia no seu local de trabalho. A vizinha, como meu companheiro a chamava, era um furacão, sempre em erupção, cujo fogo queimávamos ambos adentro; cautelosa vigiava-me o rosto, com dotes de fisionomista, como quem controla uma fruta prestes a amadurecer. Vinha cheia dela como uma serpente, contemplava-me primeiro e desenhava no ar com a sua voz suave a palavra – olá; eu, firme retribuía-a com um aceno, por vezes de braço, sem encara-la frontalmente, gesto de como quem nada quer. Mas via-lhe nos olhos o veneno da sedução, pronto para atirar como legítima defesa. 

 

Um dia desses, ouvi batidas carinhosas a porta; ouvi na mesma voz que ouvia entre cortinas; não descortinando o real motivo, esbocei a básica questão: quem é? A mesma voz se fez firme.

 

- Eu

- Eu quem?! Como se pelo timbre da voz não reconhecesse a portadora.

- Eu vizinha… Chamou-se. Quando fui abrir, lá estava ela desprotegida exibindo pouco tecido na epiderme, antes mesmo que abrisse a matraca, - disse eu:

- Pois, não!

- Não… É que esquece-me as chaves da minha porta… posso entrar daqui?

 

- Pode! Fica a vontade. Tirou os chinelos sacudiu os pés, num saco que ali estava desempenhando função de tapete. Ao mergulhar seu tronco semi-nu na claridade a sala tornou-se mais iluminada; fingi não olhar, pois as mulheres interessam-se em homens que elas não vêem interesse deles nelas. Mas para chamar-me atenção, parou e assobio, um atrevimento pouco comum nas mulheres, - pensei eu! Quando a olhei acenou o rosto e cuspiu a mais bela frase de agradecimento que jamais ouvi em toda minha vida.

 

- Obrigada… Mantive-me na compostura machista, levantei a mão e nenhuma palavra. Ela manteve-se ali olhando-me de soslaio, eu que propositadamente estava quase de tronco nu; lancei a camiseta que vestia na cadeira ao lado; dando-lhe as costas em direcção ao quarto, senti que alguém me contempla, aliás, eu até que sabia mas fingia. Quando virei a surpreende atónita, fitava-me feito um provinciano que chega pela primeira vez na cidade grande; contemplava-me como se eu não estivesse ali.

 

- Algum problema? Continuo ali fixa e cabisbaixa, sem A nem B, muito menos C! Ganhou fôlego, como quem descansa de uma longa caminhada e disse:

 

- Você é a solução…

- Algum problema? Continuei, como quem não ouviu.

- Não! Alguém é a solução!

- Não entendi?!

 

- Não vais entender, não é para entender, nem eu entendo! Aproximou-se, bem perto olhou-me nos olhos, senti o fogo a queimar-me todo. Seus lábios prontificaram-se com tudo; quando trilharam em mim, o fogo virou uma onda no mar, calma e traiçoeira, quando molhou-me todo, já estava eu a navegar mares e mares, sem medo de nada, muito menos do fogo do mar. Eu disse para mim mesmo, - deixe que tome dianteira.

 

Mergulhei o rosto no decote, como se de um remo se tratasse, agarrei-lhe a cintura com as duas mãos. Colidimos na mesma primeira cadeira onde a minha camiseta estava pendurada. Ia eu fervendo, o furacão transformando-se em tsunami, quando a metade da sala enchia-se de esforços, as posições desfilando num cortejo de deuses. Um barulho fez sentir, quando nos demos do barulho, meu companheiro gemia, lá do lado do quarto. Olhei para o único buraco do quarto não vi, mas via-se a luz acesa reflectindo por cima da porta. 

 

Japone Arijuane - Moçambique

 

Retirado de Literatas

publicado às 21:27

Os juízes tem vida sexual?

por Jorge Soares, em 19.10.14

Justiça

 

O Supremo Tribunal Administrativo reduziu em mais de 60 mil euros a indemnização a pagar a uma mulher vítima de um erro médico, por entender que o sexo não é tão importante aos 50 anos como em idades mais jovens.

 

Sabíamos que os juízes do tribunal constitucional se reformam cedo e com a reforma completa, mas pelos vistos há outros que levam a palavra reforma um bocadinho mais longe.

 

Não é a primeira vez nem será de certeza a última que me pergunto em que leis se terão baseado os senhores que tomaram esta decisão, não percebo nada de leis mas duvido muito que exista alguma lei que decida a idade em que o sexo deixa de ser importante... até porque haverá de certeza  gente na casa dos vinte a quem lhe passa ao lado e muitos outros na casa dos cinquenta que dirão que são a idade e a experiência que dão outro sabor à vida e que poderá ser diferente, mas nunca menos importante.

 

No fim resta a dúvida, os juízes tem vida sexual?... há de certeza alguns que terão mais baixos que altos.. .depois dá em sentenças destas.

 

Update: entretanto li algures que os juízes que decidiram tem: 58 anos (uma juíza),   (64) e (66) anos.... está visto que estes já estão na reforma sexual e pelos vistos em lugar de num caso como estes usarem a lei com bom senso, julgam os outros por si próprios.

 

Jorge Soares

publicado às 22:40

Conto - Território

por Jorge Soares, em 18.10.14

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Lá, branco e preto namoram. Homem e mulher. Homem e homem. Mulher e mulher. O suor do trabalho vai para a cama sem banho. O suor da trepada escorrega os corpos na cama sem-vergonha. O gozo grita fode, grita mete, grita o dia de merda igual a todos os outros. A merda que invade as narinas a céu aberto. Merda de gente, de bicho, de viciado, de vadia. Ninguém mais sente. Nariz é pra cheirar o pó. O pó que menino vende.
 
Menino mata gente grande. Lá, mata. Mata velho dedo-duro, mata mulher que trai, puta que não rende, comerciante que não paga. Mata menino também. E morre menino no descarte do dia ou da semana. De crack, de bala achada, de desafeto, de porrada, de polícia, de saco cheio. Só não morre de rir. Nem de medo. Soldado não pode ter medo. Não pode nada. Soldado não é autoridade. Nem no tráfego, nem no quartel. Mas pensa que é. Até quando chupa o dedo pra dormir. Quando mija na cama, quando chora no sono, quando abraça a HK33, quando chama pela mãe sem abrir os olhos. 
 
Mãe é o caralho. Lá, quase sempre é. A bêbada que queima o braço do menino com brasa do cigarro. Menino de quatro anos. Porque ele pede doce, pede colo, pede rua. A noiada que vende bebês para os turistas de língua enrolada. Em troca de dinheiro pra comprar bagulho fino e enfiar no rabo dela e no dos homens dela. Os homens que arrebentam o menino de porrada e deixam ele nu do lado de fora de casa. Nos dias piores. Nos melhores, não. Nos dias bons o menino dorme na cama quente. Estuprado a noite inteira. Inteira, não meia. E a vagabunda não acredita no menino. Nunca. Mesmo acreditando. E repete que ele é ruim que nem cobra. Que ele quer que o homem dela vá embora. E arrebenta o menino de porrada e deixa ele nu do lado de fora de casa, soluçando entrecortado.
 
Lá, pastor anda limpinho. Roupa passada, camisa dentro da calça, o pinto dentro da calça. Difícil é o pastor fazer um fiel. Quem faz fiel é o tráfico. Os do pastor ostentam na igreja as bíblias gastas. Os outros ostentam no baile funk. Junto com os meninos que não são de lá. Mas que brincam de ser. Direitinho. Iguais, os que ficam por lá no fim do baile. Diferentes, os que descem para o asfalto quando o baile acaba. Dirigindo carro do ano. E vão para casa. Para amansar a larica com comida boa e um pouco mais de pó. Ou de pedra. Na beira da piscina com vista para o mar. Tomando scotch  cowboy servido no Baccarat da mamãe. Mamãe de menino rico não queima braço com cigarro, não dá porrada, não deixa nu do lado de fora. Põe dinheiro na conta.
 
Os fiéis do pastor dormem cedo. Nos braços de Deus e de Morfeu. Os do tráfico vão atrás das coxas. De homem, mulher, menina, menino. Branco e preto fodendo pelo resto da noite. Fazendo mais meninos pra descarte. Uns, no lixo, arrancados às pressas antes da vida. Outros, mais tarde um pouco. Só um pouco. Só o tempo de primeiro virar soldado, de virar noiado, de trepar com homem, mulher, preto, branco. E de voltar mais uma vez pra casa da mãe. Esperando um carinho na cabeça, um riso da boca de dentes tortos, podres. Boca de mãe devia rir sempre. E falar vem cá meu filho pra eu te dar um beijo, Deus te abençoe, como foi o seu dia, vai sair com quem, põe um casaco, já fez os deveres, come direito. 
 
A HK33 empinada dispara rajadas de fogos de artifício. Cachorro marcando território. 

 

Cinthia Kriemler

Retirado de Samizdat

publicado às 21:28

Conto - A pechincha

por Jorge Soares, em 11.10.14

 

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Várias coisas no marido irritavam a sra. Chase. Por exemplo, a voz: ele sempre falava como se estivesse apostando num jogo de pôquer. Ouvir aquela fala arrastada e indiferente era exasperador, sobretudo agora, que, conversando com ele por telefone, ela própria falava de forma estridente de tanta empolgação. "Claro que eu já tenho um, sei disso. Mas você não entende, querido — é uma pechincha", explicou, enfatizando a última palavra, depois fazendo uma pausa para deixar a magia dela crescer. Só ouviu silêncio. "Puxa, você podia dizer alguma coisa. Não, não estou numa loja, estou em casa. Alice Severn vem para o almoço. É sobre o casaco de Alice que estou tentando lhe falar. Você deve se lembrar dela." A memória esburacada do marido era outra fonte de irritação, e, embora ela lhe lembrasse que lá em Greenwich Village eles tinham visto com frequência Arthur e Alice Severn, chegaram até a receber o casal em sua casa, ele fingiu não conhecer aquele nome. "Não importa", ela suspirou. "Só vou dar uma olhada no casaco. Tenha um bom almoço, querido."

 

Mais tarde, ao se aborrecer com as ondas precisas de seu cabelo retocado, a sra. Chase admitiu que realmente não havia motivo para o marido se lembrar dos Severn com tanta clareza. Deu-se conta disso quando, com sucesso parcial, tentou evocar uma imagem de Alice Severn. Pois bem, quase conseguiu: uma mulher rosada e desengonçada, com menos de trinta anos, que sempre dirigia uma caminhonete, acompanhada por um setter irlandês e por duas bonitas crianças de cabelos louros avermelhados. Dizia-se que o marido dela bebia; ou seria o contrário? Além disso, eles eram considerados maus pagadores, ao menos a sra. Chase lembrou de certa vez ter ouvido falar de dívidas incríveis, e alguém, teria sido ela própria?, descrevera Alice Severn como simplesmente boêmia demais.

 

Antes de se mudarem para a cidade, os Chase mantiveram uma casa em Greenwich Village, que era um tédio para a sra. Chase, porque ela detestava os sinais de natureza dali e preferia o divertimento das vitrines de Nova York. Em Greenwich Village, em algum coquetel, na estação de trem, vez por outra encontravam os Severn, e não passou disso. Nem éramos amigos, ela concluiu, um tanto surpresa. Como costuma acontecer quando de súbito se ouve falar de uma pessoa do passado, e alguém conhecido num contexto diferente, ela fora induzida a uma sensação de intimidade. Mas, pensando melhor, parecia extraordinário que Alice Severn, a quem ela não via fazia mais de um ano, tivesse telefonado oferecendo à venda um casaco de vison.

 

A sra. Chase parou na cozinha a fim de pedir sopa e salada para o almoço: jamais lhe ocorria que nem todo mundo estava de dieta. Encheu um decantador de xerez e o levou consigo até a sala de estar. Uma sala verde-esmeralda, o mesmo gosto excessivamente juvenil das roupas dela. O vento fustigava as janelas, pois o apartamento ficava num andar alto, com uma vista de avião do centro de Manhattan. Colocou um disco do Linguaphone na vitrola e sentou-se em posição não relaxada, ouvindo a voz forçada pronunciar frases francesas. Em abril, os Chase planejavam comemorar o vigésimo aniversário de casamento com uma viagem a Paris; por essa razão, ela começara as aulas do Linguaphone, e, por essa razão também, cogitou no casaco de Alice Severn: seria mais prático, achou, viajar com um vison de segunda mão; mais tarde, poderia mandar transformá-lo numa estola.

 

Alice Severn chegou alguns minutos mais cedo, uma casualidade decerto, pois não era uma pessoa ansiosa, pelo menos a julgar por seus modos contidos e cautelosos. Usava sapatos comuns, um casaco de tweed que já vira dias melhores, e carregava uma caixa amarrada com um barbante puído.

 

"Fiquei encantada quando você telefonou esta manhã. Deus sabe, faz um tempão que não nos vemos, mas, claro, não vamos mais a Greenwich Village."

 

Embora sorrindo, sua visita permaneceu calada, e a sra. Chase, que assumira um tom efusivo, ficou um tanto sem graça. Quando as duas sentaram, os olhos dela apreenderam a mulher mais jovem, e ocorreu-lhe que, se tivessem se encontrado por acaso, poderia não tê-la reconhecido, não porque sua aparência tivesse se alterado tanto, mas porque a sra. Chase se deu conta de que nunca antes olhara atentamente para ela, o que parecia estranho, pois Alice Severn era alguém que chamava a atenção. Se fosse menos comprida, mais compacta, as pessoas poderiam ignorá-la, talvez reparando que era atraente. Mas, do jeito que era, com seus cabelos vermelhos, a impressão de distância nos olhos, o rosto sardento, outonal, e as mãos magras e fortes, havia nela certa peculiaridade difícil de ignorar.

 

"Xerez?"

 

Alice Severn assentiu com a cabeça, que, equilibrada precariamente sobre o pescoço fino, parecia um crisântemo pesado demais para seu talo.

 

"Cream-cracker?", ofereceu a sra. Chase, observando que alguém tão esguio e alongado devia comer feito um cavalo. Sua frugalidade de sopa e salada despertou-lhe um súbito receio, e ela contou a seguinte mentira: "Não sei o que Martha está preparando para o almoço. Sabe como é difícil, em cima da hora. Mas conte, querida, o que está acontecendo em Greenwich Village?".

 

"Em Greenwich Village?", ela disse, entrecerrando as pálpebras, como se uma luz inesperada refulgisse na sala. "Não tenho a menor idéia. Não moramos mais lá faz algum tempo, seis meses ou mais."

 

"Oh?", fez a sra. Chase. "Veja como estou desatualizada. Mas onde você está morando, querida?"

 

Alice Severn ergueu uma das mãos ossudas e desajeitadas e apontou para a janela. "Lá fora", respondeu, de forma estranha. Sua voz era clara, mas tinha um tom de esgotamento, como se ela estivesse pegando um resfriado. "Quer dizer, no centro. Não gostamos muito, sobretudo Fred."

 

Com a mínima inflexão, a sra. Chase perguntou: "Fred?", pois lembrava perfeitamente que Arthur era o nome do marido da visita.

 

"Sim, Fred, meu cachorro, um setter irlandês, você deve tê-lo visto. Está acostumado com espaço, e o apartamento é tão pequeno, só um quarto."

 

Dias difíceis deviam ter sobrevindo para que todos os Severn estivessem morando num único quarto. Por mais curiosa que fosse, a sra. Chase se controlou e não indagou a respeito do assunto. Provou seu xerez e disse: "Claro que me lembro do seu cachorro; e das crianças: todas as três cabecinhas vermelhas espiando pela janela da caminhonete".

 

"As crianças não têm cabelos vermelhos. São louras, como Arthur."

 

A correção, com tão pouco senso de humor, provocou na sra. Chase uma risadinha intrigada. "E Arthur, como vai?", perguntou ela, preparando-se para se levantar e conduzir a visita até o almoço. Mas a resposta levou-a a sentar-se de novo. Sem mudança alguma na expressão placidamente desornada de Alice Severn, consistiu apenas em: "Mais gordo".

 

"Mais gordo", ela repetiu após um momento. "A última vez que o vi, acho que só uma semana atrás, estava atravessando uma rua feito um pato. Se ele tivesse me visto, eu teria de rir: ele sempre foi tão preocupado com a aparência."

 

A sra. Chase pôs as mãos na cintura. ''Você e Arthur. Separados? É simplesmente incrível."

 

"Nós não estamos separados." Ela esfregou as mãos no ar como que para remover teias de aranha. "Eu o conheço desde criança, desde que nós dois éramos crianças: você acha", disse tranqüilamente, "que poderíamos algum dia estar separados um do outro, sra. Chase?"

 

O uso exato de seu nome pareceu afastar a sra. Chase; por um momento, ela se sentiu isolada, e, ao caminharem juntas até a sala de jantar, imaginou uma hostilidade circulando entre elas. Possivelmente foi a visão das mãos desajeitadas de Alice Severn tentando abrir um guardanapo que a persuadiu de que aquilo não era verdade. Exceto por algumas palavras corteses, elas comeram em silêncio, e ela começava a temer que não haveria nenhuma história.

 

Enfim Alice Severn disse abruptamente: "Na verdade, nos divorciamos em agosto passado".

 

A sra. Chase esperou; depois, entre a descida e a subida de sua colher de sopa, disse: "Que horrível. Por causa da bebedeira dele?".

 

"Arthur nunca bebeu", ela respondeu com um sorriso agradável mas espantado. "Ou melhor, nós dois bebíamos. Por prazer, não por vício. Era gostoso no verão. Costumávamos descer até o riacho, colher hortelã e preparar um coquetel de uísque com hortelã em enormes potes de frutas. Às vezes, nas noites quentes em que não conseguíamos dormir, enchíamos de cerveja gelada as garrafas térmicas e acordávamos as crianças, depois íamos de carro até a praia; é divertido beber cerveja e nadar e dormir na areia. Bons tempos; lembro que uma vez ficamos lá até o sol raiar. Não", disse, alguma idéia séria retesando sua face, "eu vou lhe contar. Sou quase uma cabeça mais alta que Arthur, e acho que isso o preocupava. Quando éramos crianças, ele sempre achou que me ultrapassaria, mas isso nunca aconteceu. Ele detestava dançar comigo, e olha que ele adora dançar. E gostava de um monte de gente ao redor, gente baixinha de voz alta. Não sou assim, preferia que ficássemos só os dois. Nesse aspecto eu não era agradável para ele. Pois bem, lembra de ]eannie Bjorkman? Aquela de rosto redondo e cabelo encaracolado, mais ou menos da sua altura".

 

"Lembro, sim", respondeu a sra. Chase. "Esteve no comitê da Cruz Vermelha. Horrorosa."

 

"Não", replicou Alice Severn, refletindo. "Jeannie não é horrorosa. Éramos ótimas amigas. O estranho é que Arthur costumava dizer que a odiava, mas tenho a impressão de que sempre foi louco por ela, com certeza agora é, e as crianças também. Eu queria que as crianças não gostassem dela, embora devesse estar feliz por gostarem, já que têm de viver com ela."

 

"Não acredito: seu marido casado com aquela horrorosa da Bjorkmanl"

 

"Desde agosto."

 

A sra. Chase, fazendo primeiro uma pausa para sugerir que fossem tomar o café na sala de estar, disse: "É deprimente você estar vivendo sozinha em Nova York. Pelo menos devia ter ficado com os filhos".

 

"Arthur quis ficar com eles", respondeu Alice Severn simplesmente. "Mas não estou sozinha. Fred é um de meus melhores amigos."

 

A sra. Chase gesticulou, impaciente: não gostava de fantasias. "Um cachorro. Loucura. A verdade é que você é uma tola: se algum homem tentasse me passar para trás, eu cortava os pés dele em pedacinhos. Vai ver que você nem exigiu", hesitou, "uma pensão."

 

"Você não entende, Arthur não tem dinheiro algum", disse Alice Severn com o desânimo de uma criança que descobriu que os adultos, afinal, não são muito lógicos. "Teve até de vender o carro, e vai e volta a pé da estação. Mas, sabe, acho que está feliz."

 

"O que você precisa é de um bom beliscão", disse a sra. Chase como se estivesse pronta para realizar o serviço.

 

"É Fred que me preocupa. Está acostumado com espaço, e, com uma única pessoa, não sobram muitos ossos. Você acha que, quando terminar meu curso, consigo arrumar um emprego na Califórnia? Estou estudando administração, mas não sou muito rápida, sobretudo na máquina de escrever, meus dedos parecem detestar aquilo. Deve ser como tocar piano, você tem de aprender quando é jovem." Ela olhou curiosa para suas mãos, suspirando: "Tenho aula às três; importa-se se lhe mostrar o casaco agora?".

 

A festividade de coisas saindo de uma caixa em geral alegrava a sra. Chase, mas, quando ela viu a tampa ser retirada, um mal-estar melancólico dominou-a.

 

"Pertenceu à minha mãe."

 

Que deve ter usado essa tralha durante sessenta anos, pensou a sra. Chase, encarando um espelho. O casaco dava nos seus tornozelos. Ela passou a mão pela pelagem opaca, quase sem pêlos: estava mofada, fedida, como se tivesse permanecido num sótão à beira-mar. Fazia frio dentro do casaco, ela estremeceu, ao mesmo tempo um rubor aqueceu-lhe o rosto, pois foi aí que notou que Alice Severn olhava sobre seus ombros e na expressão dela havia uma expectativa tensa, humilhante, antes inexistente. Quanto à solidariedade, a sra. Chase praticava a parcimônia: antes de oferecê-la, tomava a precaução de amarrar um barbante nela para, em caso de necessidade, pegá-la de volta. Quando ela fitou Alice Severn, porém, foi como se o barbante tivesse sido cortado, e dessa vez ela se confrontou com as obrigações da solidariedade. Hesitou mesmo assim, procurando uma escapatória, mas seus olhos colidiram com aqueles outros olhos, e ela percebeu que não havia nenhuma. A lembrança de uma palavra das aulas do Linguaphone facilitaram uma pergunta: "Combien?".

 

"Isso não vale nada, não é?" Havia confusão na pergunta, não franqueza.

 

"Não, não vale", ela respondeu, cansada, quase irritada. "Mas pode ter alguma utilidade." Não repetiu a pergunta; estava claro que estipular o preço fazia parte de sua obrigação.

 

Ainda arrastando o incômodo casaco, dirigiu-se a um canto da sala onde havia uma escrivaninha e, com movimentos nervosos e ressentidos, preencheu um cheque da sua conta pessoal: preferia que o marido não soubesse. Mais que a maioria, a sra. Chase detestava o sentimento de perda; uma chave fora do lugar, uma moeda caída, despertavam sua consciência do roubo e das trapaças da vida. Sensação semelhante acompanhou-a quando entregou o cheque a Alice Severn. Esta, dobrando-o sem olhar para ele, enfiou-o no bolso do traje. Era um cheque de cinqüenta dólares,

 

"Querida", disse a sra. Chase, carrancuda com a falsa preocupação, "você tem de telefonar e contar como andam as coisas. Não deve se sentir solitária."

 

Alice Severn nem agradeceu, e na porta não disse "tchau". Em vez disso, segurou uma das mãos da sra. Chase e deu um tapinha nela, como se estivesse delicadamente recompensando um animal, um cachorro. Fechando a porta, a sra. Chase fitou sua mão, aproximou-a dos lábios. A sensação da outra mão ainda perdurava, e ela continuou ali, esperando que passasse: logo sua mão ficou bem fria de novo.

 

Truman Capote

Retirado de Trapiche dos outros

publicado às 21:22

Conto - Penitência

por Jorge Soares, em 20.09.14

Penit~encia

 

Quando os meus olhos se perderem em voos sem pouso, será hora de não ficar. Mas, antes, o deteriorar-se lento.

 

Primeiro, os fracassos, se instalando gradualmente. As mãos se tornando inúteis, sem saber para que sirvam. A boca esquecendo o mastigar. O corpo se repuxando em reflexos descoordenados. As fraldas colhendo um descontrole indigno. Os cabelos ralos enfeando o rosto inexpressivo. As pernas paralisadas. O banho dado por mãos alheias. Os nomes dos filhos e dos amigos embaralhando-se em idas e vindas cada vez mais idas. As histórias inventadas, as assombrações à luz do dia, os afetos irreconhecíveis. Longas horas de sono ruim. Outras tantas de olhos no teto. As mesmas frases, repetindo-se várias vezes. Um feto encolhendo-se em involução. 

 

Assim será. Quando tudo em mim for cansaço e desespero, e eu me desintegrar como um corpo estraçalhado por feras. A cada pedaço arrancado, existirei menos pessoa, desfigurada, agonizante. A cada nesga mirrada de lucidez, invocarei um choro. Por mim. Por vocês. Para os deuses. Mas eles não ouvirão. 

 

Antes, as tentativas. Comprimidos, lâminas, janelas abertas. Opções à inexistência vegetativa. Impedidas por vocês. Como se fosse melhor gastar o dinheiro que não têm, o tempo que não têm, o amor que não têm numa agonia que transforma em raiva e frustração as sobras de sentimento. 

 

Depois, o afastamento. No quarto, nenhum de vocês culpando-se ou desculpando-se. Apenas uma mulher estranha, sentada a um canto, cuidando de mim. Fim dos hiatos cruéis. Da realidade escassa que aparecia para brincar de adeus. Nevoeiro. Eu já não estarei morando em mim.

 

Mas até que a impotência aconteça, há coisas bobas a cometer. Como a vida.

 

Escrever no vidro embaçado das janelas de chuva. Mudar a cor do cabelo. Tomar sorvete de pistache com castanhas. Tropeçar os olhos na lua, contar os paralelepípedos, tomar banho gelado no verão, balançar na rede.

 

Como mais tarde não haverá lembranças, quero sentir agora tudo o que ainda está em mim. Os abraços que me devo, as madrugadas de conversas estúpidas, as viagens desastradas com amigos imperfeitos. A melancolia dos natais e das páscoas e dos aniversários barulhentos. As bochechas dos bebês, o rabo dos cachorros. As comidas calóricas, a água com bolhas de gás. O chope com dois dedos de colarinho. O uísque com quatro pedras de gelo. Quero falar sobre sexo às gargalhadas. Fazer sexo às gargalhadas. Rezar. Pedir mais tempo para pecar desejos inconfessáveis.

Só então a penitência. Que será longa e minha. Incerta como os olhos perdidos em voos sem pouso. 

 

Retirado de Samizdat

publicado às 22:01

A estupidez não é deficiência

 

Imagem de As coisas do mundo 

 

É uma daquelas coisas que me deixa irritado, mesmo, tanto que andava à espera da oportunidade para falar aqui do assunto... foi hoje.

 

Foi por volta da hora do Almoço no Pingo Doce da Luísa Tody em Setúbal, feitas as compras e arrumadas na mala do carro, enquanto esperava que a minha meia laranja arrumasse o carrinho vazio, reparei como uma senhora após alguma indecisão e troca de ideias com quem ia ao lado, decide estacionar o carro no lugar reservado a deficientes que fica mesmo ao lado da entrada na loja.

 

Puxei do telemóvel e preparei-me para tirar uma fotografia para ilustrar o post, entre o pegar no telemóvel, desbloquear e encontrar o botão certo para disparar, já ela não estava ao lado do carro e até terminei por não tirar a fotografia. Entretanto a senhora e a sua acompanhante, que evidentemente não mostravam sinais de qualquer deficiência física e que até já tinham entrado na loja, foram avisadas por alguém do que eu estava a fazer.

 

Ela voltou para trás e o diálogo que se seguiu foi mais ou menos assim:

 

- O senhor estava a tirar uma fotografia ao meu carro?

- Por acaso estava.

- Então espere aí que eu vou tirar o carro dali e já conversamos.

 

Reparem, havia montes de lugares vagos no parque e ela sabia isso e também sabia que não podia estacionar ali, resta saber se teria retirado o carro se eu tivesse dito que não tinha tirado a fotografia. Foi estacionar a cinco metros dali e voltou cheia de genica.

 

- O senhor estava a tirar fotografias ao meu carro, tem que as apagar, se elas aparecerem em algum lugar eu meto-lhe um processo.

- A senhora é deficiente?

- Não, não sou, mas o senhor não pode tirar fotografias ao meu carro.

- Se não é deficiente sabe que não pode estacionar ali, além de uma questão legal, é uma questão de civismo.

- Eu meto-lhe um processo!

- Minha senhora, chame a policia que a gente resolve já o assunto da denuncia.

- O senhor não tem nada de fazer isso!

- E a senhora sabe perfeitamente que não pode estacionar ali!

- Olhe, o seu problema é falta de sexo, vá dar uma volta que isso passa!

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- Pois, falta de sexo, arranje mulher que isso passa!

- No seu caso é falta de civismo mesmo, ou isso ou a senhora é deficiente mental e por isso estaciona ali.

 

Entretanto a senhora voltou para dentro da loja e eu continuei à espera da minha meia laranja.

 

Passado um minuto voltou, acompanhada do segurança da loja... achei aquilo tão surreal que passei a cancela do parque e parei, só para ouvir o que me ia dizer o segurança.

 

- Está aqui o segurança da loja, ele quer falar consigo.

- Então diga lá??!!

- O parque tem câmaras de vigilância e o senhor tirou fotografias

- Sim tirei, porque a senhora estacionou no lugar de deficientes e isso além de ilegal é uma enorme falta de civismo, o senhor quer o quê de mim?

- Eu nada, só vim porque a senhora me chamou 

 

Entretanto a senhora não se calava e continuava com a ladainha de que eu não podia tirar fotografias...  o vigilante ameaçou com chamar o gerente da loja e eu pedi que chamasse também a policia, como aquilo não nos ia levar a lado nenhum, meti-me no carro e vim-me embora, mas depois fiquei a pensar que devia ter esperado pelo gerente da loja, sempre ficava a saber qual era a posição do Pingo Doce sobre clientes que estacionam nos lugares reservados a deficientes mesmo quando há muitos lugares vagos no resto do parque de estacionamento.

 

Infelizmente em centros comerciais ou em qualquer outro parque de estacionamento, os lugares reservados a deficientes raramente estão livres, há muita gente que prefere estacionar ali que caminhar mais meia dúzia de metros, mesmo quando o parque é pequeno como acontece no Pingo Doce de Setúbal.

 

A senhora do caso que conto, para além de uma enorme falta de civismo tinha muita falta de educação e a julgar pela quantidade de vezes que ela repetiu a palavra sexo, das duas uma, ou se estava a oferecer, ou estava ela com muitíssima fome.

 

Evidentemente não podemos todos ser policias uns dos outros, mas há coisas que puxam pelo meu mau feitio,  tal como no caso dos cãezinhos  de que já aqui falei (ver aqui), se calhar se todos reagíssemos aos abusos viveríamos num mundo muito melhor e com mais civismo.

 

Jorge Soares

publicado às 21:38

Conto - O anjo purificador

por Jorge Soares, em 26.07.14
O anjo Purificador Paula Rego
A mulher esperou, encoberta, que Abílio saísse, antes de subir as escadas para o estúdio e tocar. Lucília veio abrir, convencida de que o modelo, que já não ia para novo, se esquecera de algo, mas não; era Judite, uma sua ex-empregada doméstica, que ultimamente usara como modelo, e que já não via há uns quatro meses.
– Entra, Judite – convidou, sem reparar no olhar duro da mulher. – Estava a ver que já não me vinhas visitar.
– Olá, Dona Lucília – respondeu Judite, fria. – O que cá me traz é do seu máximo interesse e agradecia que me ouvisse com atenção.
– Que se passa, Judite?, não me assustes! Senta-te.
Contornaram uma grande tela, num cavalete a meio da divisão, em que se podia ver Abílio, de kilt e olhar sério, meio pintado, reclinado num sofá. No sofá verdadeiro se sentou a pintora. Judite manteve-se de pé, em atitude decidida.
– O que se passa, Dona Lucília, é que a senhora tem ganho bom dinheiro à minha custa e eu continuo pobre como dantes – disparou a mulher, de olhar alterado. – A senhora usou-me para as suas pinturas, ganhou milhares de contos com elas, e eu não tenho sequer uma casa minha.
– Ó, Judite – estranhou a pintora – eu não te reconheço; o que se passa?
– Ainda bem que não me reconhece, que eu não sou a mesma. Acabou-se a boazinha que ficava horas e horas, feita parva, em posições ridículas, a fazer de urso, ou de galinha – que agora as pessoas até se riem – e a senhora na lua, a olhar para anteontem. E, no fim do mês o que é que eu via? – uns reles contos a mais. Eu já não tenho idade para continuar a trabalhar. Quero a minha reforma!
– Reforma, como, Judite? Não sou eu que dou as reformas. Sempre fiz os descontos a que tinhas direito. Se lá fores, lá devem estar na Segurança Social.
– Eles dizem que ainda me faltam doze anos para pedir a reforma. Ora, eu não aguento mais. Eu vou ser muito direta, Dona Lucília; ou a senhora me dá vinte mil contos por estes dias, ou o patrão vai ficar a saber que a senhora anda enrolada com o Abílio. Tenho os mails todos, sabe? Tanto os que a senhora envia, como os que recebe. Levei a password da sua caixa de correio e fiz cópias de ecrã de todos. Agora, a senhora escolha; quer continuar a sua boa vida de sonsa, com menos uns trocos, ou quer ver como acaba o seu casamento?
– Eu não te mereço isto, Judite! Como podes? – desapontava-se Lucília. – Depois de tudo o que fiz por ti, que eras uma rústica… E que história é essa do Abílio? Enrolada? Tu não estás bem. O Abílio é um bom amigo e um bom modelo, tal qual como tu. Só isso!
– Sim, sim! Pensa que eu não via o seu olhar a lambê-lo de alto a baixo? Depois, quando li os mails, descobri tudo. Agora está tramada, minha santa!
– Estás louca, mulher! Nunca hás de perceber um artista. O pintor olha, com olhos de ver. Mira, sim, completa e exaustivamente o corpo do seu modelo. Conhece-lhe cada centímetro, melhor que ele próprio. E, às vezes, perturba-se, que a intimidade a tanto chega! Sempre se falou da relação ambígua entre pintores e modelos: já ouviste falar em Balthus? Às vezes, mais explícita que ambígua – Rodin, Toulouse-Lautrec… Mas isso, que te interessa!?; pareceu-te ver luxúria onde havia apreensão estética. E isso dos mails, nem quero tentar perceber que bizarros enredos de alcova engendraste. Só te digo que leste mal. E a desfaçatez de entrares na minha caixa de correio. Que cabra me saíste!
– Não adianta negar, Dona. O Senhor Jorge vai perceber muito bem o que lá está escrito. Por isso, pense bem.
– Não percebes nada, mulher! – impacientava-se a artista. – Vieste lá das berças e pensas que este mundo tem alguma coisa que ver com o teu. Isto não é um romance do Eça de Queiroz. Aqui não há primos sabidos, nem eu sou uma cândida esposa imatura. Convence-te, Judite, o mundo dos artistas é mais solto, mais liberal. Também não gostamos de ser preteridos, às vezes choramos, mas não entendemos os maridos e as mulheres como propriedade, nem lhes limitamos demasiado a liberdade. Mas sempre com transparência. Já estive com outros homens, sim, mas o Jorge foi sempre o primeiro a saber. E ele também já teve os seus arrebatamentos. Chegou a viver lá em casa uma de quem ele gostava muito. Depois de algum tempo, como eu previa, acabou-se a chama, e ela foi-se embora. Não ando com o meu modelo, mas se andasse, o Jorge estaria ao corrente. Percebes, Judite? Agora, vai-te embora, que não me apetece olhar para ti.
Antes de sair e bater com a porta, Judite, visivelmente confusa, ainda articulou, sem convicção:
– Se é assim que quer, assim terá! Vaca!
Dois dias depois, Judite voltou.
– Que queres, Judite? – perguntou Lucília, segurando a porta, ao ver o olhar injetado da outra.
Esta empurrou Lucília e entrou, fechando a porta sem olhar para trás. Depois, retirou da malinha uma faca de cozinha e apontou-a à ex-patroa:
– Não te vais livrar assim! Deste-me a volta, deram-me a volta, cambada de badalhocos, mas eu não vou desistir. Se não dás a bem, dás a mal – vociferava a ex-chantagista convertida à extorsão.
A pintora hesitou por um momento, ao ver a faca no braço em riste da outra. Depois, recuou calmamente, de olhar perscrutador. Quem a visse a avaliar a agressora, não demonstrando medo, antes curiosidade, suspeitaria de alguma quebra momentânea de siso, provocada pela situação traumática. Também Judite pareceu surpreendida com a reação da ex-patroa. Mantinha-se parada a três passos de Lucília, faca levantada, atitude expectante. Foi a pintora que quebrou a rigidez da composição:
– Judite, escuta, se me agredires, estragas a tua vida. Vais presa, deixas de estar com o teu filho. Deves estar desesperada para fazer isto. Posso ajudar-te, mas não da maneira que dizes.
– Quero o meu dinheiro! – insistia Judite.
– Ouve, estou-te reconhecida pelos trabalhos que fizeste para mim, não o esqueço. As minhas pinturas vendem-se por muito dinheiro? Nem sempre foi assim. Mesmo então, cumpri o combinado com os meus modelos; paguei sempre no dia certo, não foi? Também um construtor vende os prédios por muito dinheiro, e não é por isso que o pedreiro muda de carro. Às vezes, lá tem um prémio pelo Natal. Queres comparticipação? Vamos fazer o seguinte: posas para mim com essa faca, nessa atitude. Interioriza-a bem: zangada, ressentida, vingativa. Gostei da imagem, é forte. Acho que dá para uma nova série de pastéis. Pago-te o mesmo que te pagava, mas, além disso, quando as obras se venderem, recebes uns três por cento do que eu receber. Parece-te bem?
Judite estava confusa e indecisa. Tentava calcular quantos contos representariam três por cento de, talvez, duzentos mil euros, depois de deduzida a parte da galeria. Nesse momento, ouviu-se uma chave a rodar na fechadura e Abílio entrou. Surpreendido por ver Judite de faca na mão e face afogueada, indagou, em prontidão:
– Há algum problema?
– Não, Abílio, entra! – contemporizou a pintora. – A Judite veio outra vez visitar-me e combinámos uma nova série de telas com anjos justiceiros femininos – uma mistura de Arcanjo São Miguel e empregada doméstica: numa mão, a espada; na outra, o pano do pó. Vou-me rir com as interpretações que a crítica vai fazer.

 

Joaquim Bispo

Retirado de Samizdat

publicado às 21:22


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