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Porque: "A vida é feita de pequenos nadas" -Sergio Godinho - e "Viver é uma das coisas mais difíceis do mundo, a maioria das pessoas limita-se a existir!"
Continuação do Conto Um rasto do teu sangue na neve de Gabriel Garcia Marquez, parte anterior aqui
- Doutor - disse. - Ela está grávida.
- Quanto tempo?
- Dois meses.
O médico não deu a importância que Billy Sánchez esperava. “Fez bem em avisar”, disse, e foi atrás da maca. Billy Sánchez ficou parado na sala lúgubre, cheirando a suores de enfermos, e ficou sem saber o que fazer olhando o corredor vazio por onde haviam levado Nena Daconte, e depois sentou-se no banco de madeira onde havia outras pessoas esperando. Não soube quanto tempo ficou ali, mas quando decidiu sair do hospital era noite outra vez e continuava a garoar, e ele continuava sem saber nem ao menos o que fazer consigo mesmo, sufocado pelo peso do mundo.
Nena Daconte internou-se às 9:30 da terça-feira 7 de janeiro, conforme pude comprovar anos depois nos arquivos do hospital. Naquela primeira noite, Billy Sánchez dormiu no automóvel estacionado na frente da porta de emergência, e muito cedo, no dia seguinte, comeu seis ovos cozidos e duas xícaras de café com leite na cafeteria mais próxima que encontrou, pois não tinha feito uma refeição completa desde Madri. Depois voltou à sala de emergência para ver Nena Daconte, mas fizeram que ele entendesse que deveria se dirigir à entrada principal. Lá conseguiram, por fim, um asturiano de plantão que o ajudou a se entender com o porteiro, e este comprovou que, por certo, Nena Daconte estava registrada no hospital, mas que só eram permitidas visitas nas terças-feiras, das nove às quatro. Quer dizer, seis dias mais tarde. Tentou ver o médico que falava castelhano, que descreveu como um negro careca, mas ninguém resolveu seu problema a partir de dois detalhes tão simples.
Tranqüilizado com a notícia de que Nena Daconte estava no registro, voltou ao lugar onde havia deixado o automóvel, e um guarda de trânsito obrigou-o a estacionar dois quarteirões adiante, numa rua muito estreita e do lado dos números ímpares. Na calçada em frente havia um edifício restaurado com um letreiro: “Hotel Nicole.”, Tinha uma única estrela, uma sala de recepção muito pequena onde não havia mais que um sofá velho e um piano vertical, mas o proprietário de voz aflautada podia entender-se com os clientes em qualquer idioma desde que tivessem com que pagar. Billy Sánchez instalou-se com onze maletas e nove caixas de presentes no único quarto livre, que era uma água-furtada triangular no nono andar, aonde chegava-se sem fôlego por uma escada em espiral que tinha cheiro de couve-flor fervida. As paredes estavam forradas de cortinados tristes e pela única janela não cabia nada além da claridade turva do pátio interior. Havia uma cama para dois, um armário grande, uma cadeira simples, um bidê portátil e uma bacia com seu prato e sua jarra, de maneira que a única forma de ficar dentro do quarto era deitar na cama. Tudo era, pior que velho, desventurado, mas também muito limpo, e com um rastro sadio de desinfetante recente.
Para Billy Sánchez, a vida inteira não seria suficiente para decifrar os enigmas deste mundo fundado no talento da mesquinharia. Nunca entendeu o mistério da luz da escada que se apagava antes que ele chegasse ao seu andar, nem descobriu a maneira de tornar a acendê-la. Precisou de meia manhã para aprender que no desvão de cada andar havia um quartinho com uma privada, e já havia decidido usá-lo nas trevas quando descobriu por acaso que a luz acendia quando passava a tranca por dentro, para que ninguém a deixasse acesa por descuido. O chuveiro, que estava no extremo do corredor e que ele se empenhava em usar duas vezes por dia como na sua terra, era pago em separado e à vista, e a água quente, controlada pela gerência, acabava em três minutos. Ainda assim, Billy Sánchez teve suficiente clareza de juízo para compreender que aquela ordem tão diferente da sua era, de qualquer forma, melhor que a intempérie de janeiro, e sentia-se além disso tão atordoado e solitário que não podia entender como conseguiu viver algum dia sem o amparo de Nena Daconte.
Assim que subiu ao quarto, na manhã da quarta-feira, atirou-se de boca na cama vestindo a jaqueta, pensando na criatura de prodígio que continuava dessangrando na calçada em frente, e muito rápido sucumbiu num sono tão natural que quando despertou eram cinco horas no relógio, mas não conseguiu deduzir se eram da tarde ou do amanhecer, nem de que dia da semana nem em que cidade de vidros açoitados pelo vento e pela chuva. Esperou acordado na cama, sempre pensando em Nena Daconte, até comprovar que na realidade amanhecia. Então foi tomar café da manhã na mesma cafeteria do dia anterior, e ficou sabendo que era quinta-feira. As luzes do hospital estavam acesas e havia parado de chover, e ele permaneceu encostado no tronco de uma castanheira na frente da entrada principal, por onde entravam e saíam médicos e enfermeiras de uniformes brancos, com a esperança de encontrar o asiático que tinha recebido Nena Daconte. Não o viu, e tampouco naquela tarde depois do almoço, quando teve que desistir da espera porque estava congelando.
Continua
Jorge
PS:Imagem minha, retirada do blog Momentos e olhares