
Continuação do conto O ultimo amor do principe, escrito por Marguerite Yourcenar, podem ver a primeira parte aqui
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A Dama seguiu-o, tendo o cuidado de imitar o andar simplório de uma camponesa. Acocoraram-se os dois junto ao lume quase morto. Genghi estendia as mãos para o calor, mas a Dama escondia os dedos, demasiado delicados para uma rapariga do campo.
-Estou cego -suspirou Genghi ao cabo de um instante. -Podes despir sem pejo a tua roupa molhada, menina, e aquecer-te nua junto à lareira.
A Dama despiu docilmente o seu vestido de camponesa. O lume rosava-lhe o corpo esguio, que parecia talhado no mais pálido âmbar. De repente, Genghi murmurou:
-Enganei-te, menina, pois não estou ainda completamente cego. Adivinho-te através de uma névoa que talvez mais não seja do que o halo da tua própria beleza. Deixa-me pousar a mão no teu braço ainda tremuroso.
Foi assim que a Dama-da-aldeia-das-flores-que-caem voltou a ser a amante do príncipe Genghi, que humildemente amara durante mais de dezoito anos.
E não se esqueceu de imitar as lágrimas e as hesitações de uma rapariga no seu primeiro amor. O seu corpo mantivera-se surpreendentemente jovem, e a vista do príncipe era demasiado fraca para distinguir os seus parcos cabelos grisalhos.
Chegados ao fim das carícias, a Dama ajoelhou-se aos pés do príncipe e disse-lhe:
-Enganei-te, príncipe. Sou realmente Ukifune, a filha do rendeiro So-Hei, mas não me perdi na montanha. A glória do príncipe Genghi espalhou-se até à aldeia e vim por minha vontade, para descobrir o amor nos teus braços.
Genghi levantou-se cambaleante, como um pinheiro vacila ao embate do Inverno e do vento. Com voz sibilante, gritou:
-Maldita sejas, que acabas de trazer-me a lembrança do meu pior inimigo, o belo príncipe de olhar aceso cuja imagem me traz desperto todas as noites... Vai-te daqui...
E a Dama-da-aldeia-das-flores-que-caem afastou-se, lamentando o erro que acabava de cometer.
Durante as semanas que se seguiram, Genghi ficou só. Verificava com desalento que continuava enleado nos enganos deste mundo e bem pouco afeito ao despojamento e à .renovação da outra vida. A visita da filha do rendeiro So-Hei despertara nele o gosto pelas criaturas de pulso esguio, de longos peitos cónicos, de riso patético e dócil. Depois que começara a cegar, o sentido do tacto era o seu único meio de captar a beleza do mundo, e as paisagens onde fora refugiar-se já não dispensavam qualquer consolo, pois o barulho de um regato é mais monótono que a voz de uma mulher e as curvas das colinas ou as madeixas das nuvens são feitas para quem as vê e pairam demasiado longe para se deixarem afagar.
Decorridos dois meses, a Dama-da-aldeia-das-flores-que-caem fez segunda tentativa. Desta feita vestiu-se e perfumou-se com esmero, mas teve o cuidado de dar ao corte dos tecidos qualquer coisa de acanhado e tímido em toda a sua elegância, e de deixar que o perfume discreto, mas banal, sugerisse a falta de imaginação de uma mulher jovem saída de um honrado clã da província e que nunca viu a corte.
Desta vez, alugou carregadores e uma liteira imponente, mas à qual faltavam os últimos aperfeiçoamentos da cidade. E arranjou maneira de alcançar as proximidades da cabana de Genghi já de noite cerrada.
O Verão chegara à montanha antes dela. Sentado ao pé do bordo, Genghi ouvia os grilos cantar. Ela aproximou-se, escondendo um pouco o rosto por detrás de um leque, e murmurou embaraçada:
-Eu sou Chujo, a mulher de Sukazu, fidalgo de sétima ordem da província de Yamato. Vou em peregrinação ao templo de Isê, mas um dos meus carregadores acaba de torcer um pé e não posso prosseguir caminho antes da aurora. Indica-me uma cabana onde possa hospedar-me sem receio de calúnias e dar descanso aos meus criados.
-Onde estará uma mulher nova mais abrigada das calúnias do que na casa de um velho cego? -disse o príncipe amargamente.
- A minha cabana é demasiado pequena para os teus servos, que poderão instalar-se debaixo desta árvore, mas ceder-te-ei o único colchão do meu retiro.
Levantou-se tacteando para lhe ensinar o caminho.
Nem uma única vez ergueu os olhos para ela, que por este sinal reconheceu que ele estava completamente cego.
Depois que ela se estendeuno colchão de folhas secas, Genghi retomou o seu lugar melancólico à entrada da cabana. Estava triste, e nem sequer sabia se aquela mulher jovem era bela.
A noite estava quente e luminosa. A lua despejava um clarão no rosto erguido do cego, que parecia esculpido em jade branco. Ao cabo de um longo momento, a Dama deixou o seu leito campestre e foi também sentar-se à entrada. E disse com um suspiro:
-Está uma noite bonita e não tenho sono. Deixa-me cantar uma das canções de que trago o peito cheio.
E sem esperar pela resposta entoou uma romança de que o príncipe gostava muito, pois muitas vezes a ouvira, em tempos, nos lábios da sua mulher preferida, a princesa Violeta. Perturbado, Genghi aproximou-se insensivelmente da desconhecida:
-Tu donde vens, jovem mulher que sabes canções que tanto afeiçoávamos na minha juventude? Harpa onde se dedilham árias de antigamente, deixa-me passar as mãos nas tuas cordas.
E acariciou-lhe os cabelos. Ao fim de um instante, perguntou-lhe:
- Ai de mim! Pois não é o teu esposo mais belo e mais jovem do que eu, jovem mulher do país de Yamato?
- O meu esposo é menos belo e parece menos jovem -respondeu simplesmente a Dama-da-aldeia-das-flores-que-caem.
Assim se tornou a Dama, sob novo disfarce, a amante do príncipe Genghi, a quem em tempos pertencera. De manhãzinha, ajudou-o a preparar umas papas quentes e o príncipe Genghi disse-lhe:
- És terna e hábil, jovem mulher, e creio que nem o príncipe Genghi, que tão feliz foi no amor, jamais teve amante mais doce do que tu.
- Nunca ouvi falar do príncipe Genghi -disse a Dama sacudindo a cabeça.
- Quê? -exclamou Genghi amarga mente. -Pois tão depressa o esqueceram?
E todo o dia se manteve sombrio. A Dama compreendeu então que se enganara pela segunda vez, mas Genghi não falava em mandá-la embora e parecia feliz de ouvir o sussurro do seu vestido de seda na erva.
Continua