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Destinos

por Jorge Soares, em 09.05.09

Destinos, Miguel Torga

 

Foram uns amores singulares, aqueles. No Junho, as cerdeiras punham por toda a veiga uma nota viva, fresca e sorridente. As praganas aloiravam, as cigarras zumbiam, as águas de regadio corriam docemente nas caleiras, e dos verdes maciços de folhas leves e ondulantes, emoldurados no céu, espreitavam a primavera, curiosos, milhares de olhos túmidos e vermelhos. Era domingo. E ele subira por desfastio à velha bical dos Louvados a matar saudades de menino.

 

- Não dás um ramo, ó Coiso? - perguntou do caminho a rapariga.

 

- Dou, dou! Anda cá buscá-lo. Pela voz, pareceu-lhe logo a Natália. Mas só depois de arredar a cabeça de uma pernada é que se confirmou.

 

- Não estás de caçoada? - Falo a sério!

 

Era bonita como só ela. Delgada, maneirinha, branca, e de olhos esverdeados, fazia um homem mudar de cor.

 

- Olha que aceito! - E eu que estimo... Tinha já no chapéu algumas cerejas colhidas, reluzentes, a dizer comei-me.

 

- Não teimes muito...

 

- Valha-me Deus!... A rapariga atravessou então o valado, entrou na leira e chegou-se, risonha,

 

- Segura lá na abada... Encandearam os olhos um no outro, ela de avental aberto, ele de rosto afogueado, deram sinal, e a dádiva desceu, generosa e doce.

 

Vista de cima, a Natália ainda cegava mais a gente. O queixo erguido dava-lhe um ar de criança grande; os seios, repuxados, pareciam outeiros de virgindade; e o resto do corpo, fino, limpo, tinha uma pureza de coisa inteira e guardada.

 

- Terão bicho?

 

- Têm agora bicho! Ia-te mesmo dar cerejas com bicho!

 

Sem querer,, a resposta saíra-lhe expressiva demais. O coração agitou-se um pouco, o instinto, acordado, estremeceu, e os olhos, culpados, fugiram-lhe do rosto da moça e fixaram-se sonhadoramente no céu.

 

- Bota cá mais meia dúzia. Já que comecei... À medida que se enfarruscava de sumo, a Natália ia-se tomando também num fruto que apetecia colher. Mas recusou-se a vê-la com pensamentos desejosos e atrevidos.

 

- Segura lá esta pinhoca... Era um lindo ramo que fora buscar à coroa quase inacessível da árvore. As cerejas, libertas da sombra protectora das folhas, tinham-se dado inteiramente ao sol, deixando-se amadurecer por igual, num abandono quente e ditoso.

 

- Que lindo! - É para que saibas... Concentraram a atenção um no outro, e de tal modo ficaram fascinados, que se ela não dá um grito de aviso, com a oferta vinha o doador também ao chão.

 

- Cautela!

 

- Não há perigo. No enlevo em que ficara, o desgraçado até se esqueceu do sítio onde estava.

 

- Queres mais? - Não, bem hajas... Pôs-se logo a descer, um pouco atarantado por lhe faltarem já as palavras que lhe havia de dizer cá na terra. Ela é que entretanto se escapulira. .- Adeus!...

 

O namoro, contudo, tinha começado. Sem nunca falarem daquela tarde, sabiam ambos que se amavam e que fora a velha cerdeira bical que lhes aproximara os corações. Pena elo ser o que era: uma natureza tímida, incapaz de um acto rasgado e levado ao fim.

 

Falavam ao cair da tarde, quando a fresca do anoitecer aligeirava o cansaço das cavas, sem que ninguém reparasse, pois a povoação aceitara já aquela união como um facto natural e acertado - e o rapaz ainda a meio do caminho, atarantado e reticente.

 

- Que diz vossemecê? - perguntava ele à mãe, à pobre Teodósia, que não via outra coisa na vida senão a felicidade do filho.

 

- A mim agrada-me... É boa rapariga, e limpa, é jeitosa... - Lá isso... Dizia, e ficava-se calado, indeciso entre o sonho e a realidade.

 

- Fala à gente! Era sempre a Natália a começar, como no dia das cerejas. Por mais que fizesse, nunca ele se atreveria a dar o primeiro passo. Só quando a rapariga quebrava a distância é que o coitado se abria num contentamento sem medida., tonto e novo como um cabrito. Mas nunca passava de coisas vagas e enternecidas. As palavras concretas magoavam-lhe a boca.

 

- Ainda não lhe falaste em nada? - Indagava a Teodósia, insárida.

 

- Não. Mas amanhã... - Ou quererás tu antes que eu lhe diga... ? - Melhor fora! Valha-a Deus! Isso até era uma vergonha!

 

Lá conhecer os pontos de honra de um homem, conhecia-os ele. A coragem é que não chegava à altura do entendimento.

 

Infelizmente, a vida não podia parar naquela lírica indecisão. Os meses passavam, as folhas caíam, e outros renovos vinham povoar a terra.

 

- O João Neca esperou-me ontem à entrada do povo... - começou a Natália, à saída da missa.

 

- Ah, sim? E depois? - perguntou ele, a sentir o sangue subir-lhe à cara.

 

- Pediu-me namoro... - deixou ela cair com melancolia.

 

Era justamente altura de lhe dizer tudo, que a não podia tirar do pensamento, que só quando a levasse ao altar teria paz, que não seria nada no mundo sem os seus olhos verdes ao lado. Mas ainda desta vez o ânimo lhe faltou.

 

- Bem, tu é que vês... Ele não é mau rapaz... Rasgava-lhe conscientemente o coração com semelhante aquiescência, porque tinha a certeza que desde a primeira hora o amava também. A coragem é que não era capaz doutra coisa.

 

- Eu queria lá um farçola daqueles! Estou muito bem assim...

 

Puras palavras de desespero. Tanto ela, que despeitada as dizia, como ele, que culpado as provocara, sabiam que eram o fruto de uma revolta impotente e destinada a morrer.

 

A pobre Teodósia é que lutava às claras. E dias depois já estava a picar o filho:

 

- Sabes o que me disseram hoje na fonte? - Que a Natália tem namoro com o João Neca... - respondeu, vencido.

 

- Nem mais. - Pois tem...

 

- Já sabias?! Então... e tu? Não a queres? Ou foi ela que te deixou ?

 

- Eu sei lá o que foi... Dali em diante parecia viver de alma viúva. E a alegria do rosto da rapariga cobriu-se também de um negro véu de desilusão. Passavam um pelo outro e comiam-se com os olhos. Mas nem ele lhe falava no seu amor, nem ela rasgava já a frágil teia de separação.

 

- Casam-se para a semana... - ia esclarecendo a Teodósia, como um remorso.

 

- Já sei. - O padre leu hoje os banhos... - Pois leu... Era uma resignação que quebrava a gente, e desarmava. E a velha não encontrava outro alivio senão chorar.

 

- Morria por ti! - disse-lhe numa manhã, que podia ser de felicidade para os três., e se transformara num pesadelo.

 

Os sinos tocavam festivamente, ia por toda a aldeia um alvoroço de noivado, e só naquela casa a tristeza se aninhava sombria e desamparada a um canto.

 

- Também eu gostava dela... Era outra vez Junho, as searas aloiravam já, e nas cerdeiras, polpudas, rijas, as cerejas tomavam uma cor avermelhada e levemente escarninha.

 

 

Miguel Torga, Novos Contos da Montanha

 

Retirado de :Contos de aula

 

publicado às 21:31


2 comentários

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De Júlia a 13.05.2009 às 10:18

Como é belo e triste este conto... escolheste bem - estamos na época das cerejas. :)
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De Jorge Soares a 13.05.2009 às 23:21

Olá

Sim, o conto tocou-me... principalmente porque olhei para trás.. lá muito para trás no tempo e fiquei a pensar que dada a minha enorme timidez na adolescência, aquilo podia perfeitamente ter-me acontecido a mim........

Ainda bem que gostaste.
Jorge

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