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Os vizinhos

por Jorge Soares, em 04.07.09

Os vizinhos, todos diferentes todos iguais

 

As famílias se davam, cordiais, unha e sabugo. Não havia dia que não trocassem favores, emprestassem alegrias, esmiudaçassem conversas. Aquilo era como se não houvesse paredes. Ou que não tivessem ouvidos: digamos que uma família única distribuída em duas casas contíguas.
 
Chegavam ao ponto de partilhar o mesmo cão de guarda. O Silvester Estaline, assim se chamava o bicho, ensinado a patrulhar os espaços comuns da escadaria. Revezavam-se e vice-versavam-se nos cuidados do cão: um dia uns, outro dia outros. No meio das duas casas, o bicho apren­dera a repartir fidelidades. Ele só tinha uma única matilha.
 
As famílias se vizinhavam tanto e por tanto tempo que os filhos acabaram por se namoriscar. Ela, de um lado, ele, do outro, come­çaram por trocar melosos bilhetes. Depois, dizem as línguas, já parti­lhavam travesseiro. Sem licença dos parentes. Mas não havia prova, só o cão poderia testemunhar.
 
— Começámos vizinhos, caminhamos para compadres.
 
Assim se aceitava o entretrançar dos destinos dos clãs. Até que come­çaram as notícias. A televisão falava de conflitos étnicos. Assunto pequeno e longínquo. Mas alastrando grave como contagiosa doença. Nem as famí­lias sabiam bem o que era isso de «étnico». Num jantar em comum, o mais velho do lado de lá assegurou que o termo deveria ser «técnico» e o conflito era o que opunha o treinador aos jogadores do clube. Sendo o clube o mes­mo das duas famílias. E beberam em honra dos futuros golos, vitórias e taças.
 
Mas as notícias se adensaram, como as nuvens em Novembro. Já todos sabiam o que era isso de «étnico». E falava-se de conflitos que, para além de divisões rácicas, tinham base religiosa. Até que se começou a falar de esca­ramuças militares. As famílias deixaram de escutar em comum o noticiário televisivo. Porque sempre se degenerava em querela. Até que o vizinho da esquerda bateu à porta do outro e lhe perguntou:

— Desculpe, vizinho mas você tem raça?

O outro, pesaroso, acenou que sim. Que tinha. E era, exactamente, a outra raça, a contrária, a verdadeiramente pura. Não o disse ao outro. Para não o vexar.

— Desculpe, eu nunca reparei.

— Pois, lá em casa, nós já comentámos sobre a vossa etnia.

Descobriram, súbito, que pouco tinham a esclarecer. Em silêncio, a porta se fechou, parecia nem haver mão que a movesse. E mais que a porta, era o coração deles que se fechava.

Não houve mais visitas. Durante um tempo, os namorados ainda se encontraram no vão das escadas. Às escondidas. Mas o cão, o Silvester Estaline, denunciava a sua presença e os moços se separavam, chamados pelas vozes severas. Não tardou que fosse o último encontro. O grave foi o seguinte: ninguém lhes deu essa ordem de separação. Era coisa que eles absorveram do noticiário — a irreconciliável diferença entre suas culturas.

Os vizinhos liam, escutavam e ganhavam novos entendimentos do uni­verso. Tudo ganhava uma nova lógica: havia a História, a religião, as tradi­ções — tudo isso sempre os dividira. E as famílias se interrogavam: como puderam ter sido amigos?

Uma tarde, a moça tiquetacteou os dedos na janela do antigo » namorado. Queria saber uma última coisa: a religião dele qual era? A bem dizer, o moço nem sabia bem. Foi dentro, ao pai, para confirmar. Depois, veio a resposta: que era a outra, a única, a verdadeira. Mas qual? Isso o pai não explicara. A moça ainda tentou posterior esclareci­mento mas a cortina foi puxada, por conveniência de silêncio.

A distância foi dando lugar ao ódio. E a convicção de que a culpa dos males mundiais residia ali ao lado. Desgraças passadas e futuras só tinham uma única e fácil explicação: os outros, ali à mão de serem condenados.

Certa noite, um dos vizinhos tomou a drástica decisão — agredir os outros, apanhando-os em desprevenção. O plano era simples, tão simples quanto a raiva: matar o chefe do anexo clã. Conheciam-se os movimentos do inimigo. Bastava emboscar o outro nessa rotina, ali no obscuro pátio.

E assim foi. Matraca na mão, o vizinho matador perseguia passo-ante-passo o vizinho morredor. Mas, eis que: um súbito e inesperado vulto. Era o cão, sabotando suas intenções. O outro vizinho se virou e perguntou o que se passava. Há muito que já não se falavam. Ficaram ali trocando pequenas falas, sobre assuntos práticos. Até encontraram gosto na conversa, uma ponta de saudade dos tempos. Combinaram os turnos nas passeatas a dar ao Silvester. Despediram-se, com gesto e palavras hesitantes. Já no umbral da porta, ambos tomaram decisão de regressar atrás. E os dois acariciaram o cão, comungando um mesmo envergonhado sorriso.
 

Mia Couto. Na Berma de Nenhuma Estrada (2001)


Retirado de Contos de aula

publicado às 21:49


6 comentários

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De Óscarito a 07.07.2009 às 18:38

Porquê procurar o que nos separa, quando temos tanta coisa que nos une?
Abraço/Oscar
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De Jorge Soares a 08.07.2009 às 23:55

O ser humano é complicado mesmo... e quando passa apensar pela cabeça dos outros....
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De Fa menor a 08.07.2009 às 18:39

Pois é!... isto das raças, biologicamente, não tem fundamento nenhum. Onde é que está a diferença, para se falar em raça? Na cor da pele?
As diferenças e a diversidade é que torna rica a sociedade. Só temos de conviver pacificamente uns com os outros sem ninguém se julgar o melhor.

ainda bem que tudo acabou bem.

(Sinta-se à vontade para fazer aquela publicação do poema... afinal "nunca mais é sábado" quando à saída do livro)

Bjs
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De Jorge Soares a 08.07.2009 às 23:57

Olá

Todos diferentes todos iguais, devia ser esse o mote...sem dúvida.

Já publicarei, obrigado
Jorge
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De Duarte Augusto a 08.10.2013 às 14:22

O texto e doce com uma historia muito boa.........
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De Anónimo a 01.05.2020 às 11:15

quem era o Silvester? no texto

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