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Porque: "A vida é feita de pequenos nadas" -Sergio Godinho - e "Viver é uma das coisas mais difíceis do mundo, a maioria das pessoas limita-se a existir!"
Continuação do conto Os amantes aprovados de Agustina Bessa Luis, podem ler a primeira parte aqui
Foi ela a primeira a compreender e a revelar que a viúva tinha um amante. Era um rapaz de vinte anos, muito estranho, magrinho, e que leccionava num colégio; chamava-se David, tinha vindo das Ilhas, sem recursos, para estudar. Era interno, portanto, e passara a pagar com explicações aos primeiros ciclos as suas propinas. A viúva conhecia-o como colega dos filhos mais velhos, há bastante tempo, vira-os nas mesmas manhãs de Verão saírem juntos para o banho, com a toalha enrolada presa pelo cinto do maillot. Nos dias de aniversário, David sempre mandava um postal ilustrado às meninas - sempre garotas ricas entre flores, em áleas de jardins, e cores muito brilhantes. Ele era tristonho, quase bronco quando desconfiava de alguém ou simplesmente não conseguia adaptar-se; mas, familiarizando-se, rasgada a sua casca de timidez feroz, de orgulho mais feroz ainda, era maravilhoso. Havia nele uma coragem de sinceridade que nem era maculada pela consciência de virtude que a razão nisso podia surpreender. Na sua aceitação de tudo o que acontece, de tudo o que triunfa, de tudo o que perde, de tudo quanto é inútil ou sem estética, de tudo quanto é belo para vexame da nossa própria alma, havia paz. Às vezes sorria, quando todos se agrupavam fazendo traduções do latim, repuxando uma beiça sinistra sobre o queixo. Sorria, com o livro aberto diante dele, como se seguisse uma imagem deveras cheia de interesse e de humor.
- Em que pensa? - perguntava-lhe a viúva. Ela sorria também.
- É tão tolo viver exactamente assim - dizia David. - Dividimos o tempo e emparedamo-nos dentro dele. Mas não há tempo, o tempo não existe, o tempo é apenas memória. Olhe as violetas nessa jarra... murcharam, mas não têm a recordação da sua frescura, portanto existem num tempo único - compreende?
- Compreendo. - E ela já não sorriu. O rosto cansado estremeceu, crispou-se, e voltou a adquirir a sua fria brandura habitual. Sim, tinha compreendido. Durante muitos dias esgotou-se em imobilizar-se dentro dela própria, em rastejar em torno da sua alma, para que ela não pressentisse quanto a vigiava, vendo se dormia ou velava; durante muitos meses viveu metodicamente entre a sua pequena gente escura, questionadora, mesquinhamente ansiosa e que se atraiçoava de quarto para quarto, de prato para prato. Julgava-se sossegada e igual a outrora, surpreendia-se a rir jovialmente, porque tal libertação a exaltava e lhe dava uma espécie de febril felicidade. Depois, recaía de súbito; David obcecava-a até ao ódio, queria que ele partisse, inventava planos para o afastar, para deixar de o receber, para não o ver mais; achava-o sem importância, voltava a rir-se da sua cegueira, a acusar-se de insensatez, de malignidade, de vileza. Rezava muito, mas, na sua prece, no mais ardente voto, brotava-lhe do coração o nome dele, mergulhava numa prostração terna, exasperada e submissa por fim. Adoecia e renascia da doença como a serpente que se desprende da própria pele e se esgueira vigorosamente para fora do ninho bolorento. Assaltavam-na escrúpulos que se traduziam em manifestações de sacrifício; o seu amor pelos filhos parecia recrudescer, escravizava-se a eles, contente se dominava a própria impaciência e o juízo desfavorável que o carácter deles, as suas pegas, a sua nulidade, o seu egoísmo desamparado e impotente lhe provocavam. Matava-se lidando inútilmente, infeliz quando percorria a casa e via que todas as coisas estavam correctas nos seus lugares, que a poeira vogava no ar sem poisar; tudo era tranquilo e mesmo, sob a mesa da sala, os gatos dormiam indiferentes a travessuras no velho tapete inglês muito rapado nas bordas como um caminho trilhado de roda dum capinzal. Sentava-se um momento, com as mãos no regaço, como alguém que espera num banco de estação; a imobilidade doía-lhe, agitava-a uma saudade de lágrimas que não podia chorar, e tudo o que até ali vivera lhe parecia importuno na sua memória. Punha-se a pensar então em David, o sangue pulsava- -lhe devagarinho nas têmporas, ela sorria como uma rapariga. Pensava nele, encontrando sofrimento e alívio porque ele lhe aparecia de repente tão distante como alguém já morto, como alguém a quem, à força de dedicar sentimentos e projectos, nos aproximou da indiferença e da erosão da alma. A vida como que estancava, ficava-se distraída a olhar pela janela o céu frio de Primavera que tão bem lhe sugeria toda a vila desenhada numa luz apática, com sombras que cresciam rapidamente pelos muros, com campos e noras, flores miniaturais balançando-se imperceptìvelmente como cabecinhas senis; e os areais onde se compunham redes, escurecidos aqui e além pelos detritos do mar, com recortes de babugem que, devagar, se evaporava. O céu frio de Primavera sobre a vila! Sobre as gavinhas tenras cheias ainda de penugem cinzenta; sobre os talos novos de roseira que, partidos, vertiam seiva doce; sobre os campos, sobre os campos... Frios, dum verde inacabado, com terra fria, fechada, hostil ainda, por debaixo. Esse arrepio agudíssimo do fim de tarde de Primavera comunicava-se-lhe. E, trémula, retomando a custo o movimento, a vontade, voltava a apropriar-se de si mesma.
Quando falaram as vozes, dizendo que David e ela eram amantes, isso apenas se explicaria pelo pressentimento de catástrofe a que são sensíveis as colectividades. Viam-se pouco, nunca se tocavam; mas havia decerto neles uma exaltação de paixão que o próprio silêncio, a própria ausência e aparência de serem estranhos, confidenciava. Os filhos passaram a abandonar mais a casa, a tratá-la com uma cerimónia constrangida. Alguns choravam um pouco pela nostalgia da simbólica mãe; de resto, fora sempre o símbolo de mãe que eles tinham amado, e não a ela. Não a ela. Outros faziam-se mais viris com essa realidade que no fundo da alma os vexava; e torturavam-na.
- É verdade? É verdade? - diziam. - Sempre fomos bons filhos, a pobreza não nos fez corar nunca, bruníamos as nossas roupas ao serão para te poupar canseira, desprezámos as raparigas para não te abandonarmos. Destruíste tudo isso. Já não podemos ter confiança, porque tu nos cuspiste na cara.
- Mãe, mãe! - diziam as moças, com trejeitos duma cólera ávida, repelente, destruidora, a cólera sem finalidade das mulheres, que é apenas pretexto duma afirmação, duma quase vingativa expansão do sexo. - É uma canalhice!...
E o próprio David, que sentenciava com uma voz em que se entrevia mais o prazer da audácia que a intenção de a poupar a ela:
- Não há acções canalhas, mas almas canalhas. A mesma acção vivida por almas diferentes não é a mesma acção.
Ela suspirava, levava a mão ao rosto como se fosse defender uma pancada. Não compreendia; não compreendiam. E, quando David encostava a cabeça nos seus joelhos, o silêncio denso os envolvia, o silêncio amassado com todo o vociferar da rua onde brincavam crianças e se descompunham peixeiras, com todos os soluços de agonia dos que morriam na solidão terrível daqueles a quem o próprio pecado abandonou, ela encontrava felicidade. Um dia, constou que se tinham matado. Ela aparecera com duas balas no peito, no soalho do seu pequeno quarto onde se respirava essa miséria estéril dos que apenas duram, apenas dormem, apenas sonham, apenas mentem. Castiçais de vidro, sobre a cómoda, diante de imagens baratas de arraial de peregrinação, tinham velhos pingos de estearina cobertos de pó. David respirava ainda.
O caso, muito abafado, passou depressa, pois o mundo gosta de resgatar a sua responsabilidade com o esquecimento. Sim, com o esquecimento que antecede sempre a redenção. Tudo passou depressa; portanto, poucos anos depois, a vizinhança só banalmente se referia à viúva, aos filhos que tinham partido ou porque casavam, ou porque os vitimara uma febre, um desastre, ou porque a província os devorara como pequenos burocratas. Só quem fielmente se lembrava de tudo era a loira mestra de meninos, que continuava a corrigir problemas na sua mesa iluminada pelo candeeirinho que o tempo entortara e cujo abat-jour ficara sujo e pingão como um saiote de bailarina de guignol. A luz amarela fazia resplandecer os seus cabelos, e ainda os frequentadores do cinema olhavam, com um interesse logo extinto, o recorte da sua cabeça na vidraça. Mas já não faziam comentários.
- Raça! - murmurava a mulher, riscando ferozmente de vermelho os cadernos cheios de borrões cor de violeta e onde a tripa da tinta se desenhava. Loló engordara e já não tinha olhos verdes, já não usava sombrinhas japonesas; já não tinha pretendentes vestidos de flanela branca como Conrad Nagel, como o Barrymore; casara com não sei quem, desia aos tropeções a sua escada estreitinha, agarrando-se de lado ao corrimão, com uns velhos sapatos debruados de pelúcia e que ganhavam pulgas - oh, esses sapatos de lã que criavam pulgas alimentavam a comunicabilidade calaceira, morosa, feliz, com mais do que uma vizinha! -, ia escolher papos-secos na padaria, fazendo-lhes estalar a crosta entre os dedos, espremendo razões de protesto em todas as coisas que aconteciam.
- Raça! - dizia ela também. A mãe, ainda oxigenada, corajosa ainda porque se pintava sobre as rugas, sobre as feições desfeitas, desprendera-se muito dela. Às vezes pensava na viúva, em David, no seu amor que sentia vivo, penetrado no próprio céu frio de Primavera, fluindo de todas as coisas, mesmo as mais ingratas e inexpressivas coisas do mundo. Tinham-se amado - eles. Naquela casa de sobreloja onde habitara a viúva, não podia ver ninguém correr um estore, abrir uma janela, atirar fora os restos dum cinzento, sem que julgasse que tudo estava a acontecer ainda. Que, no quarto, que recebia luz duma clarabóia do corredor, dois seres tão verdadeiros como só podem ser os que compreendem que a morte participa da vida e a completa, agonizavam, sem tragédia, sem veemência, porque a tragédia, a veemência, não é dos que cumprem, mas dos que apenas os imitam. Os cartazes expostos no passeio do cinema, as mulheres serpentinas de olhar vidrado ou fulgurante, as paixões estereotipadas dum mundo senil, esgotado, impaciente! E aquela criatura, sem juventude, que vestia batas de chita, que era talvez um tanto estúpida e sem importância, mas cuja fealdade, limitação, pobreza, mereciam uma aprovação através do amor! Assim sentia a mestra de meninos que continuava a distribuir aos domingos pacotinhos de pastilhas Naval, reclamando o dinheiro certo na palma da mão para a dispensarem dos trocos. Os garotos apinhavam-se, repeliam-se, esmagavam-se contra o balcão, ela dizia "raça!", entediada e, apesar de tudo, lírica, porque não abdicava dos seus cabelos loiros, da sua solenidade, e porque, enfim, em cada esteta falhado há um lírico que se procura.
Esta é a história simples dos que chamamos os amantes aprovados. Esquecíamo-nos de dizer que David sobreviveu. Que lhe aconteceu depois, não sabemos. Ou antes, na última vez que fomos à cidade, encontrámos na rua um homem que se lhe assemelhava muito; os cabelos eram mais raros e usava óculos. De resto, caminhava muito depressa e não o pudemos observar muito. Parecia um desses eruditos pobres que vivem num saguão, dormem sobre uma arca e eles próprios cozinham um arroz esturrado numa máquina de petróleo. Era bem ele, com o seu olhar retraído, fino, persistente, mas não podemos jurar. O mundo está cheio de pessoas que se parecem e todas se continuam, sim, todas se continuam. De qualquer modo, o David que nós conhecemos há muito... Mas nada temos já a acrescentar a esta história.
In BESSA-LUÍS, Agustina. A brusca, Lisboa, Livros RTP, pp. 89-102.
Retirado de Ficcões