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Zon TvCabo... a minha paciência tem limites

por Jorge Soares, em 31.03.09

Queixas zon

 

Primeiro foi a telenovela da transferência do contrato de uma casa para a outra em que estive prestes a descobrir que conseguia viver sem televisão, depois foram as muitas horas ao telefone a tentar convencer os senhores que o sinal era fraco, que mal conseguia ver alguns dos canais de televisão, que a internet quando não estava lenta estava parada e que o serviço de telefone...era algo de que tinha ouvido falar mas que de certeza não tinha cá chegado...   A incompetência e o mau serviço era o único que consegui obter destes senhores, passava horas ao telefone, falei com meio mundo e não havia maneira de resolverem a situação.

 

Depois de uma reclamação por escrito, lá obtive um desconto e a promessa que o problema seria resolvido.... Promessas vãs, que as palavras leva-as o vento... ou o sinal fraco.

Ultimamente os problemas da internet voltaram ... mas a semana passada a situação atingiu foros de ridículo. O meu vizinho de enfrente estava há 3 ou 4 dias sem nenhum dos serviços, depois de muitas horas ao telefone e de dias de espera, lá conseguiu que viessem resolver o problema. No dia em que ele ficou com o problema resolvido, eu fiquei sem serviços nenhuns, sem televisão, sem internet e sem telefone..... é claro que achei que aquilo era coincidência a mais. Aqui a minha paciência já estava mesmo no limite, o escabeche que armei foi de tal ordem, que no dia a seguir bem cedo estava cá o técnico.... que era o mesmo que tinha estado no dia anterior a resolver o problema do vizinho e que.... tinha cortado o cabo que alimentava a minha casa!!!!!!!

Segundo o homem, as instruções que eles têm, é para quando encontram um cabo que não está identificado, é para cortar!

Nem esperei para o dia a seguir, enviei um mail a reclamar e contratei o serviço a outra empresa! Curiosamente, no mesmo dia ligaram-me a dizer que estavam a fazer verificações e que tinham reparado que o meu modem da internet estava a devolver um sinal fraco....  Só não insultei o senhor porque ainda me resta algo de educação. Andei eu seis meses a dizer isso e nunca fizeram nada, no dia em que eu decidi que já estava bom, eles descobriram o óbvio. Disse ao senhor que estava muito bem, mas que escusava de se preocupar, eu já tinha contratado outra empresa para me resolver o problema.

É evidente que desde telefonei a perguntar o que tinha que fazer para cancelar o contrato, não me largam, já me telefonaram umas 3 vezes... uma das meninas garantia que me dava a sua palavra em como não ia ter mais problemas.... pois não, desde há dois dias que tenho outra empresa a fornecer os serviços... muitos mais serviços, com muito melhor sinal de televisão, com telefone gratuito para toda a rede fixa nacional... com internet que funciona....

 Passei seis meses a irritar-me, a gastar dinheiro em horas ao telemóvel..devia era ter mudado logo no início.

Senhores da Zon, não é com promessas e descontos que se cativam os clientes, é com qualidade de serviço, e isso... pelo menos aqui, é algo os senhores não tem.

Jorge

publicado às 22:47

Ainda a adopção em Portugal

por Jorge Soares, em 30.03.09

Adopção de crianças

 

Este mês vou saltar o meu post sobre a nossa espera, o nosso processo foi a semana passada para Cabo Verde e  diz a minha meia laranja que lá para fim do Verão, devemos ter por cá um novo membro da família. Eu não sou nada de criar expectativas, prefiro limitar-me a esperar.

 

Entretanto, no meu post sobre a adopção por homossexuais, tive um comentário que entendo merece um post como resposta. A maioria das pessoas não sabe como realmente são as coisas, e um dos objectivos deste blog, também é tentar esclarecer. Vamos lá por partes, diz a Saia Justa o seguinte:

 

"Desculpa meter a colherada, mas deparei-me com este post e não resisti."

 

Não desculpo nada, agradeço, porque eu gosto de comentários!

 

"Primeiro, a questão da adopção em Portugal é complexa hipocrita e preconceituosa...." 

 

Na verdade, o processo de adopção é bem simples, é responder a um questionário, participar em 3 reuniões com assistentes sociais e esperar. Não é nada burocrático e até é bastante simples. Os processos não são hipócritas ou preconceituosas, as pessoas é que são, principalmente as pessoas que fazem parte da segurança social, mas também muitos dos candidatos.... por muito que eu respeite as opções e decisões de cada um.

 

"......

Existem listas de espera para adopção em Portugal de mais de 5 anos.

A burocracia é tanta que existem casais que optam por países da Ásia e Africa. Em Portugal não se pensa primeiro nos interesses da criança que deveria ser o objectivo mas nos “papeis” e nas (cunhas.) Sim cunha porque para alguns é tão fácil.."

 

Ora lá está, não existem listas de espera na adopção em Portugal, existem é pessoas que esperam muito tempo por uma criança. Uma lista de espera implica que alguém tem um número e tem que aguardar a sua vez... e isso é algo que não existe.  Existe um mito de que existe uma lista nacional de candidatos e uma lista nacional de crianças, mas acreditem isso é um mito, na realidade cada distrito continua a tratar dos seus candidatos e das suas crianças e por vezes quando tem crianças que não se adeqúem aos candidatos do seu distrito, então enviam a informação para os outros distritos... mas isso é por vezes, porque como vimos noutro comentário ao mesmo post que já referi, existem em Setúbal 3 crianças para as que supostamente não há candidatos e existem em Lisboa candidatos que supostamente aceitariam essas crianças...mas nem em Setúbal sabem dos candidatos nem em Lisboa sabem das crianças... logo, não existe lista nenhuma, o que existe sim é muito desleixo e ineficiência.

 

Quanto às cunhas e demais esquemas,... prefiro nem me pronunciar..afinal estamos em Portugal.

 

 

"Da parte dos pais adoptantes existem também vários requisitos que para quem faz questão de adoptar por amor não fazem sentido. Tais como olhos da cor X raça Y e idade W."

 

Ora aí está um tema polémico.... eu sou da opinião de que simplesmente as pessoas não deveriam poder escolher nada, quem queria adoptar adoptava, sem escolhas, sem preferências, sem nada. Era proposta uma criança, aceitava ou não.. ponto final. O principal motivo para que as pessoas tenham que esperar anos e para que existam crianças para as que nunca se encontra pais é precisamente esse, as escolhas.

 

"Também me parece estranho, que a um familiar directo (no caso de morte dos pais da criança) não se possa propor à adopção. Assim como não pode quem recebeu a criança como família de acolhimento. Estes últimos, porque se considerar ter feito uma prestação de serviços e ter sido remunerado para o fazer."

 

Na verdade as crianças só vão para adopção se não existir algum familiar que as queira, antes de determinar que o projecto de vida de uma criança é a adopção, o tribunal pergunta sempre à família alargada se não existe alguém que fique com ela.... e só no caso de ninguém da família a querer, é que vai para adopção.

 

Quanto às famílias de acolhimento, já debati isso aqui várias vezes, mas vou-me repetir.

 

1-As crianças que vão para acolhimento são crianças cujo projecto de vida não passa pela adopção. São crianças para as que o tribunal entende que deverá ser mantida a ligação com a família biológica.

 

2-As familias de acolhimento não podem adoptar porque em primeiro lugar o acolhimento é uma profissão, as famílias de acolhimento recebem mais de 500 Euros por mês por cada criança que acolhem, em segundo lugar, para adoptar é necessário passar pela avaliação, coisa que não acontece com as famílias de acolhimento. Em terceiro lugar, o acolhimento não deve ser utilizado como uma forma de saltar o processo e a espera,..e as famílias  de acolhimento sabem tudo isto quando se propõem a acolher crianças... principalmente a parte em que se diz que aquelas crianças nunca poderão ser seus filhos... a mim custa-me entender as telenovelas que de vez em quando se armam à volta disto.

 

"Portugal trata muito mal as nossas crianças e a adopção é só uma das muitas realidades do pouco caso que por cá se faz ao nosso futuro, sim porque as crianças são o nosso futuro. E para agravar existem as tais (assistentes sociais) , que nem sim nem nim.. Na hora da verdade nunca sabem nada viram nada e a culpa morre sempre solteira."

 

Sim, Portugal trata muito mal as nossas crianças, o estado recebe as crianças ao seu cuidado e esquece a sua existência, ninguém sabe quantas crianças há institucionalizadas, ninguém sabe quantas tem projectos de vida, ninguém sabe se as instituições cumprem ou não as regras, ninguém se preocupa em fazer com que se cumpram as leis. Existem muitas instituições das que nunca saiu nenhuma criança para adopção, existem instituições que não informam o estado do abandono das crianças pelos pais. Ninguém sabe nada e ninguém parece preocupar-se minimamente.

 

Bom, quase ninguém, porque acaba de nascer a associação Missão Criança que tem como objectivo precisamente esse, as crianças que estão esquecidas pelo estado Português.. mas isso é algo de que já falarei.

 

Desculpem lá se me repeti, mas falar e esclarecer, nunca está demais.

 

Jorge

PS:Imagem retirada da internet

publicado às 21:33

A caçada

por Jorge Soares, em 28.03.09

Ave

 

Quando ao romper da manhã o Felismino, ouviu bater à porta, admirou-se da pressa do companheiro. Estava madrugador, o Leoniz. Sim, senhor!

 
Riscou um palito, acendeu a candeia e saltou da cama. A mulher, como sempre, espapaçada no seu canto, sem dar acordo de si.
 
- Joaquina!
 
- Ahn?!
 
- Raios te partam e mais ao sono! - e puxou-lhe a roupa.
 
O que a gente se faz! Que ruína de corpo! Dantes, mal a via assim descoberta, exposta, não resistia. Caía-lhe em cima como um abutre, mesmo antes de ela acordar. Agora podia olhá-la à vontade, que a natureza nem lhe estremecia. Velho também, era o que era!
 
Com um arrepio, a companheira abriu os olhos estremunhada e desceu a camisa pudicamente.
 
- O galo já cantou?
 
- Não. Mas está o Leoniz a bater. Tinha enfiado as calças e abotoava a braguilha, quando novas pancadas impacientes ressoaram no silêncio.
 
- Lá vai! - gritou. Meteu os pés nas botas de atanado e, sem apertar os cordões., foi à janela. Abriu., pôs a cabeça de fora e chalaceou:
 
- Madrugaste!
 
O vulto, em baixo, não respondeu. - Que horas são? Via-se mal. Enevoado, o céu só à custo se deixava atravessar pelos primeiros laivos da alvorada.
 
- Hoje deu-te a espertina! Enquanto falava ia espetando os olhos na negrura- Começava a desconfiar que não era o Leoniz que chamava
 
- Quem está aí ? - perguntou, a certificar-se.
 
- Gente. Não identificou a voz. E, contudo, apenas a ouviu, o coração deu-lhe um baque.
 
- Que é gente, vejo eu. Mas que gente?
 
- Não me conhece? Agora sim, conhecia... O cabrão do Marta! Mordeu o beiço e coçou a barba.
 
- Olá! - Quer vir às perdizes? Nada mal imaginado, não senhor! Por aquela não esperava ele... Mas tinha que ser. Enterrou as unhas no lambril da janela e respondeu, sem deixar tremer as palavras:
 
- Posso ir. Tirou a cabeça para dentro, voltou-se, e viu a mulher a enfiar a saia.
 
- Torna-te a deitar. - E o farnel? - já não é preciso. - O Leoniz leva que chegue?
 
- O Leoniz não vai. Se ele aparecer, diz-lhe que tive um convite e não pude recusar.
 
- Um convite de quem?
 
- Não interessa. Acostumada a obedecer cegamente, a Joaquina meteu-se outra vez na cama e adormeceu quase logo. Calmamente,, o Felismino acabou então de se vestir foi à gaveta do pão buscar uma côdea, e quando acabou de mastigar bebeu dum trago um cálice de aguardente- Depois., pôs o cinturão, tirou a arma do prego onde estava pendurada, abriu-a e meteu-lhe um zagalote no cano esquerdo e um cartucho de chumbo cinco no direito Finalmente, desceu e destrancou a porta.
 
Mais negra que a escuridão, a figura do Marta parecia um tronco carbonizado. A noite apagava-lhe inteiramente as feições, e era uma impressão maciça e tenebrosa que vinha daquela presença. Mas pouco a pouco, ajudado pela memória dos olhos, o Felismino, foi passando para a tela da claridade o negativo que tinha em frente.
 
- Bons dias!
 
- Viva... Enquanto os dois se cumprimentavam assim, os cães rosnavam também.
 
- Onde é a caçada?
 
- Qualquer sítio serve...
 
O Felismino contraiu-se por dentro. Já sabia que não eram as perdizes que interessavam ao visitante. O bandido não lhe perdoava tê-lo enfrentado na feira da Vila e vinha vingar-se.
 
- Podemos então ir por aí fora... - disse, num tom desprendido.
 
Começaram a caminhar lado a lado, calados como velhos,,, amigos que já não têm que dizer. Quem os visse, mal diria que cada um levava às costas a vida do outro., apertada nas câmaras da caçadeira.
 
Assim atravessaram a povoação adormecida, subiram a encosta dos soutos e entraram pela serra dentro, agora a entremostrar as corcovas do lombo à teimosia de uma luz oculta. Às tantas, o Felismino ergueu a mão, num sinal de silêncio.
 
- Aí estão elas... - acrescentou em voz baixa.
 
Pararam e ficaram a ouvir. Perto deles, no seio da penumbra, um alegre e descuidado cacarejo respondia ao apelo que lhe fora feito mais adiante.
 
Apesar de já se terem olhado de soslaio por diversas vezes, não conseguiam ainda distinguir claramente a cara um do outro. Viam-se como retratos desfocados.
 
Insofridos., os cães agitavam-se à volta deles, a pedir liberdade de movimentos.
 
- Aqui, Liró!
 
- Nero, quieto! Subitamente, o perfil da montanha apareceu gravado na tela imensa do horizonte. Uma toalha de luz cinina descera do céu e pousara na terra sem eles darem conta. Mas em vez de extasiarem os olhos no mar de oiro que os rodeava, encararam-se mutuamente.
 
- Podemos começar... - disse o Marta, escarninho, ao fim de algum tempo.
 
No mesmo gesto automático, como soldados num exercício, tiraram as armas dos ombros e com elas empunhadas entraram no mato orvalhado.
 
Ia ser bonito aquilo! Com que então, um tiro à falsa-fé, e depois, claro, fora um acidente! Filho de uma porca! E o Felismino ajeitou o dedo indicador ao gatilho como se entortasse um prego sobre o encabadoiro da enxada.
 
Cautelosamente, numa recíproca vigilância, foram-se afastando até chegarem à distância regulamentar. Então, começaram a caminhar paralelamente. Adiante deles, num incansável vaivém do instinto, os cães iam farejando as urgueiras.
 
No esplendor do outono, o grande panorama da montanha escancarara-se à luz do sol. Denunciadas por um tufo de fumo que se erguia delas, as povoações circundantes surgiam milagrosamente na paisagem.
 
Em dado momento, o perdigueiro do Felismino estacou. Alguns segundos de expectativa, passos cautelosos do dono e, por fim, duas perdizes saltaram, mansas, de rabo, inocentes ainda. Uma única detonação alarmou a quietude das fragas.
 
- Dá cá! De arma pronta, o Marta ficara parado, à espera. E ao ver a segunda perdiz distanciar-se sem fogo, cuspiu fora, numa raiva mal contida.
 
Pouco depois chegou a sua vez. Logo adiante, o resto do bando ergueu-se-lhe aos pés, todo em girândola, num pavor desordenado. Mas deu-lhe também um tiro apenas.
 
- Claro... - rosnou o Felismino, com os seus botões.
 
Ambos elucidados, mal o Liró entregou a peça caída, puseram-se novamente a caminhar pela serra fora, batendo o terreno conscienciosamente, sem se perderem de vista e guardando sempre um cano carregado. Ajudavam-se como podiam, combinando os movimentos no sentido do melhor rendimento da caçada, adiantando-se ou atrasando-se conforme as revoadas e os relevos, nunca emendando, o tiro, e carregavam rapidamente o cano vazio de olhos pregados no companheiro.
 
O dia, que começara fresco, aquecia de hora a hora. E, por volta das onze, a serra parecia incendiada pelo sol a refulgir na mica das fragas. Quente, o perfume do rosmaninho aumentava a secura. Mas os dois caçadores, a suar em bica, continuavam a palmilhar o chão de Lareira, no mesmo ritmo incansável e conjugado.
 
- É preciso ir àquelas!...
 
- Vamos lá.
 
O de cima parava, o de baixo rodava, e daí a pouco, na mesma formatura impecável, mudavam de rumo e até de encosta.
 
Quando a uma da tarde chegou, os cães já mal procuravam. Esfalfados, com a língua de fora, eram máquinas vivas a arfar. Se casualmente uma perdiz se levantava perto deles, olhavam-na numa espécie de espanto resignado, e ficavam-se.
 
- Ferido! Boca lá, boca! Pois sim! O chão apenas lhes cheirava a urze queimada. E deitavam-se na primeira sombra, impotentes e comprometidos. Os donos é que pareciam invulneráveis à torreira e à fadiga.
 
- Valerá a pena entrar no giestal?
 
- Pousaram lá... Desciam e subiam incansavelmente, como bonecos a que uma secreta mão desse corda. Nem à sede torturante atendiam. Ao transpor qualquer ribeiro, olhavam-se de esguelha e passavam adiante.
 
A certa altura, uma perdiz saltou entre os dois e quando o Felismino se refez da momentânea emoção do levante e se propunha visá-la, deu com a arma do Marta apontada na sua direcção. Agachou-se com a rapidez dum raio e o tiro passou-lhe por cima.
 
- Este era para mim!... - galhofou, já com os olhos da sarrasqueta pregados no inimigo.
 
O Marta teve um sorriso amarelo. E tentou disfarçar a traição.
 
- Foi sem querer. Disparou-se-me a arma... Mesmo assim o Felismino não se afastou da linha. Manteve a distância que até ali os separava e apenas redobrou de atenção.
 
Os perdigueiros seguiam agora atrás deles, na dura disciplina de uma escravidão domesticada. E a caça, sem o radar canino a farejá-la, ferrava-se nas moitas e nos pedregulhos. Mas a penitência dos dois continuava.
 
- Tem de ser a calção! - gritou de lá o Marta., inexorável.
 
- Não há outro remédio... Apesar de alagados e de estômago vazio, nenhum dava sinais de fraqueza. E redobravam o esforço para que o terreno ficasse honradamente varrido.
 
- Caiu mais adiante. Aí. Por volta das quatro, o sol começou a perder a força tropical e uma aragem subtil acariciou-lhes as caras tisnadas.
 
Sobe-se? É melhor. Ao dobrar o cerro, o Felismino vislumbrou num gesto equívoco do Marta nova tentativa de agressão. Mas o seu instinto, numa manobra instantânea da arma,, sustou o tiro no momento preciso. O outro, comprometido, pôs-se a vasculhar um bitoiro.
 
Até que a tarde empalideceu de vez e a serra começou a cobrir-se de uma poalha de penumbra. Uma perdiz atravessou a linha e erraram-na ambos.
 
- Já se não vê. Talvez não valha a pena continuar...
 
- É consigo... - respondeu o Felismino, sem sombra de cansaço na voz.
 
Sempre a andar, como se traçassem com os pés duas rectas convergentes., foram-se aproximando. Em frente um do outro, mediram-se ainda, num último e mudo desafio.
 
- Morreram poucas... - disse o Marta, a quebrar o silêncio.
 
- Podia ser pior... Tinham doze cada um.
 
- Mas há umas perdizes. E o terreno é bom.
 
- Se quiser voltar, às ordens...
 
O Marta teve um sorriso onde o ódio se adoçava Fica longe. A brincar, a brincar, daqui a Bouças são duas léguas. Hoje é que me deu na veneta vir por aí acima... Trazia esta fisgada...
 
- Foi uma boa ideia. já com os traços do rosto esfumados no lusco-fusco, o Marta meteu um cigarro à boca e fez lume. O clarão do fósforo aceso desenhou-lhe a dureza do perfil. Tirou duas fumaças, ajeitou a bandoleira, da arma no ombro e ficou indeciso.
 
- Não sei que faça. Se desça, se meta a direito...
 
- Veja lá. A corta-mato encurta um pedaço.
 
- Está resolvido. Sigo por aqui. Liró, vamos embora!
 
O navarro ergueu-se nas patas doridas e deu ao rabo cordialmente.
 
- Até qualquer dia.
 
- Boa noite. Rodaram e puseram-se a caminhar, cada qual em sua direcção.
 
De repente, houve uma pausa na restolheira que o Marta ia fazendo no matagal. O Felismino, atento, aguçou o ouvido, mas não se voltou. Continuou no seu chouto sossegado.
 
E, em vez do tiro que esperava, bateu-lhe nas costas a voz grossa do Marta, quente como uma baforada de vento suão:
 
- E ouça: o que lá vai, lá vai...
 
Miguel Torga, Novos Contos da Montanha
Retirado de: Contos da Aula

publicado às 21:45

Somos do tamanho da vida!

por Jorge Soares, em 26.03.09

 

Flor da esteva

 

"...como se torna trivial gerir a avalanche da instituição familiar com todos os seus problemas e apêndices, e conciliar com a profissão e com a nossa vida própria, quando conseguimos o milagre de ter algum tempo só para nós.

 

Orientar tudo sem perder o norte, sem perder o sentido da vida, sem nos perdermos a nós mesmos, sem nos deixarmos submergir pela enxurrada e criar um mecanismo instintivo de sobrevivência em que sentimos que seremos capazes de nos adaptar a todos os desafios."

 

Retirei este trecho do post de ontem da Cigana, um post que tem um titulo sugestivo: "Apocalipse Diário" Ontem falávamos aqui de tecnologia e de solidão, há quem ache que a tecnologia nos acerca ao mundo e quem ache que ela contribui para que nos encerremos dentro do nosso casulo...  o Post da Cigana fala do resto, da vida diária, da rotina e do stress, da forma como enfrentamos o mundo... sim, porque lá fora...a vida continua!

 

Quando terminei de ler o post lembrei-me de uma época da minha vida há uns 3 ou 4 anos atrás, na altura em que decidi voltar à faculdade. Trabalhar das 8 às 17, estudar á noite e ter uma família com dois filhos... é uma tarefa complicada..... será? Bom, eu passei por isso..e sobrevivi, e a R. continuou a ir ao ballet e o N. andava no Judo.... e a P tinha dias em que dava aulas à noite.... e sabem uma coisa.... eu fui um dos melhores alunos do curso... porque era dos poucos que nunca faltava às aulas.

 

Lembro-me de na altura as pessoas perguntarem como é que conseguíamos... na verdade também não sei bem.. mas lembro-me de que houve um dos semestres em que às quarta feiras eu saía de Loures às 17, ia buscar a R à escola, levava-a ao ballet às 18, ia para casa e fazia o jantar, entretanto a minha meia laranja  terminava a ultima aula às 18:30, passava pelo infantário e trazia o N., depois passava a buscar a R ao ballet, jantávamos, e eu tinha aulas das 20:30 até às 23:30... É claro que esta era a situação extrema, a maior parte dos dias não era assim, mas lembro-me que houve um semestre em que ela terminava a aula às 20:30..a hora em que eu começava a minha.... como era na mesma faculdade, eu levava os miúdos comigo..e trocávamos de carro.....

 

Como é que conseguíamos? com muita força de vontade...e com muito boa vontade por parte de todos. A Cigana no Post dela e na resposta aos meus comentários coloca esse apocalipse diário como sendo uma tarefa eminentemente feminina.... bom, de uma coisa estou certo, se cá em casa víssemos a coisa por esse prisma...ou eu não tinha terminado a licenciatura...ou tínhamos terminado em divórcio.... Eu costumo dizer que somos do tamanho das tarefas que nos aparecem pela frente, é tudo uma questão de querermos, de nos organizarmos... de nos esforçarmos...e claro..de partilhar.......  cá em casa há só duas coisas que não partilhamos: tratar dos carros, que é da minha conta e engomar.... que não é da minha conta.... o resto, é de quem está mais à mão.... esse é o segredo.

 

Portanto, nada de Apocalipse diário... que a vida é bela e é para se viver.

 

Jorge

 

PS:Imagem minha, retirada do Momentos e olhares

 

publicado às 21:47

Estamos a ficar mais sós ou mais acompanhados?

por Jorge Soares, em 25.03.09

O post de ontem saiu um bocado estranho, mas pronto, ultimamente posts estranhos é mesmo comigo.....  mas gostei dos comentários. Dizia a Smootha neste Post, que eu sou Jovens que pensamum jovem que penso ... não sei se me deixa mais feliz o prémio ou a parte do ser um Jovem... mas pronto... a Smootha é uma daquelas amigas.... Para mim o blog só faz sentido se for um espaço de partilha de ideias, se eu e quem por aqui passa, pudermos pensar e partilhar ideias...    hummm, onde é que eu ia?... Já sei.

 

Ia falar dos comentários ao post de ontem, dizia a Iris o seguinte:

 

A minha sobrinha apenas tem 7 anos e também recebeu um Magalhães e já faz tudo só. Utilizei só por isso mesmo, porque acho que com a tecnologia de hoje, os miúdos estão cada vez mais a só, todos nós estamos mais sós, mesmo quando escrevemos em blogs, mesmo quando respondemos às mensagens uns dos outros, mesmo quando nos ligamos através de twiters , e msn's , e facebooks , e hi5 , e outros que tais... estamos desesperadamente sós. 

Iludimo-nos que vivemos numa sociedade de comunicação e esquecemos simplesmente que essa comunicação é virtual, um conjunto de monólogos que se tentam fazer ouvir, porque não existe algo básico e primordial, o contacto humano, o toque...

 

Mundo virtualSim e não, sim, a tendência é a centrar cada vez mais a nossa vida à volta dos computadores e das tecnologias, como dizia ontem, a vida mudou muito nos ultimos anos, a forma como vemos e vivemos o mundo mudou radicalmente, e não me parece que a mudança fique por aqui ou tenda a abrandar... mas não acho que isso signifique mais solidão ou isolamento.

 

A tecnologia é como tudo na vida, irá influenciar-nos até ao ponto em que cada um de nós o permita. Ao contrário do que diz a Iris, eu não acho que estejamos cada vez mais sós, pelo contrário, estamos cada vez mais próximos. A comunicação pode ser tão real ou virtual como o desejemos, eu tenho conhecido excelentes pessoas por aqui, pessoas que valem porque pensam.... mas acredito que exista quem se refugie atrás das palavras e se esconda debaixo delas.

 

É claro que se não tivermos cuidado, as  coisas podem-se descontrolar, eu  já não tenho paciência para mais redes sociais, chegou um ponto em que disse basta. São os blogs, o messenger, o Hi5, o facebook, o netlog, o Linkedsis, o twiter, e vários mais... chega a um ponto em que temos que decidir.... eu decidi que ficava pelo messenger... não há pachorra para mais.... nem pachorra nem tempo... mas estou longe de me sentir só.

 

Quanto ao resto do Post, estou mais de acordo com  a Zaka, quando ela diz que só abrimos a porta da nossa vida até onde queremos, que com o Oscarito.... não sou assim tão pessimista, a natureza tem sempre tendência para o equilibrio e cada acção tem como resposta uma reação, mais tarde ou mais cedo o ser humanos tem tendência ao equilibrio...a sociedade está longe da decadência.

 

Ou seja, há que ser optimistas e aproveitar para pensar

 

Quanto á parte do tema SEXO, amiga Flor... pois, és uma querida 

 

Jorge

PS:O problema das comunicações cá em casa foi devido a que alguém decidiu desligar um cabo porque não estava marcado...e o contrato com o novo fornecedor de serviços já está tratado...e a carta para a Netcabo a explicar porquê...também.

PS2:Todas as pessoas que costumam comentar por aqui.... são jovens que pensam...sintam-se à vontade para levar o prémio.

 

publicado às 22:07

Somos uma sociedade voyeur

por Jorge Soares, em 24.03.09

Crianças e computadoresHoje dei por mim a pensar na velocidade a que as coisas mudam na nossa civilização. Ontem ao fim do dia cheguei a casa e encontrei a R. com o seu novo Magalhães que finalmente chegou. Ela chegou a casa, tirou o bichinho da caixa, ligou-o à corrente, escolheu o Linux, seguiu as instruções e instalou...tudo. Quando cheguei já estava nos finalmente e o que me perguntou foi como punha a internet a funcionar..... ela não conseguiu porque o dono das passwords para o wireless, sou eu.

 

A R. tem 10 anos.... há 30 anos atrás quando eu tinha 10 anos, a minha maior diversão era andar descalço pelos campos, ir aos ninhos na Primavera e tomar banho nos tanques e presas de rega no verão, a televisão abria às 18:30 e uns minutos antes lá estava eu a olhar para a mira técnica à espera dosMira técnica RTP desenhos animados.... o computador era uma coisa que havia no Espaço 1999, ciência ficção... Hoje a minha filha com 10 anos domina completamente a tecnologia e utiliza-a em seu proveito.

 

O Acesso rápido e barato à informação deveria tornar-nos uma sociedade culta e informada.... deveria, porque eu acho que na realidade nos tornou numa sociedade voyeur, e podemos ter a noção disso aqui na blogosfera, quem tem blogs no SAPO rapidamente descobre que utilizar a tag Sexo é garantia de duplicar ou triplicar as visitas diárias, o tema sexo continua a ser um tabu e está visto que somos atraídos pelo fruto proibido, mas há pior.

 

Há umas semanas atrás escrevi um post sobre a Jade Goody,  A História da vida real ..até à morte, o certo é que na semana seguinte a média de visitantes aqui no sitio passou dos habituais 300 para mais de 600 por dia.... e onde ia parar toda essa gente?... ao post que falava da senhora.  Convenhamos que é um bocado triste, a senhora morreu no inicio desta semana e o que vou dizer até vai parecer mal...mas é a verdade. A Jade Goody foi uma pobre coitada que teve a sorte de ser escolhida num casting para o Big Brother, que mais não é que um dos exemplos do pior que se faz na televisão de hoje... mas vejam lá, bastou a senhora ficar doente, para se tornar no objecto de interesse até ao ponto de destronar a

Jade Goody

 adopção, as receitas, deus e os poemas do Fernando Pessoa, como a mais procurada aqui no blog.

 

O que nos vale é que daqui a uns dias, ninguém se vai lembrar da senhora, o blog vai voltar ao seu nível normal de visitas e Fernado Pessoa, a adopção e as receitas, vão continuar por aqui. Somos ou não somos uma sociedade voyeur?

 

Jorge

PS:A Netcabo resolveu pregar mais uma partida, estou sem internet, sem televisão e sem telefone,... vai ser complicado visitar e comentar blogs... sorry amigos, até arranjar um novo fornecedor dos serviços, isto vai andar mais lento.

publicado às 21:38

Adopção por homossexuais

por Jorge Soares, em 22.03.09

Adopção por homossexuais

 Imagem retirada da internet

 

Em Janeiro passado quando estive na reunião na Segurança Social em  Setúbal, falaram-me de 3 crianças que estão num dos centros de acolhimento do distrito e para os quais não há candidatos a nível nacional, 3 irmãos, o mais velho tem 6 anos, 3 crianças que já foram entregues a um casal e que foram devolvidas ao centro de acolhimento, 3 crianças para as que não há pais e que possivelmente irão crescer sem conhecer o carinho e o amor de uma família. Quando vi por primeira vez o vídeo que coloquei no post Adopção:O que é necessário para que 4 crianças sejam felizes?, não pude deixar de me lembrar dessas crianças. Reparem, estas 3 crianças foram entregues a um casal que as devolveu. Quem já adoptou uma criança sabe que não é fácil, é preciso muita força de vontade e muito amor para adoptar uma criança, imagino que adoptar 3 seja muito mais complicado.... adoptar 4... nem imagino como seja. Aqueles dois seres humanos retratados no vídeo são dignos da minha mais profunda admiração.

 

A adopção é antes que mais um acto de egoísmo, as pessoas adoptam porque tem o desejo de ser pais, é em segundo lugar um acto de amor. É necessário muito amor para se conseguir receber uma criança, um perfeito estranho em nossa casa, passar por cima dos problemas, dos preconceitos, e fazer  dessa criança que tantas vezes tem problemas de saúde, psicológicos ou ambos, um ser humanos feliz e normal. É claro que para mim, esta capacidade de amar uma criança não tem nada a ver com raças, com credos, com gostos ou com preferências sexuais. Ou se tem ou não se tem a capacidade de amar as crianças e isso é válido para filhos biológicos ou adoptados.

 

Quando fiz o post na semana passada, preparei-me psicologicamente para esgrimir argumentos, tenho lido sobre o assunto em vários blogs e há sempre polémica, a maioria das pessoas é contra a adopção por homossexuais...bom, os meus leitores devem ser especiais.....  ou isso, ou a Dona Flor tem razão e as pessoas tem medo de mim!

 

Quanto às questões colocadas pelo amigo Rolando do Entremares, (um blog que vale a pena visitar)... vamos ver se me consigo explicar:

 

1-Um casal heterossexual tem um filho. Um dos progenitores decide mudar de sexo. Após a operação, o casal decide adoptar uma criança. Pergunta: A educação da segunda criança ( supondo a adopção concretizada ) será idêntica e comparável à primeira ?

 

Não, é claro que não, eu tenho 4 anos de diferença do meu irmão, ele trata os meus pais por tu, eu trato por você, a educação que me foi dada a mim é diferente da que lhe foi dada a ele, porque o ser humano adapta-se, e nós não tratamos duas pessoas da mesma maneira, mesmo que sejam dois filhos. É claro que uma mudança de sexo tem influência na maneira de ser de alguém, e de uma forma ou outra tem influência em quem está à sua volta. Mas será que algum de nós é capaz de dizer que a educação dada antes é melhor que a dada depois da mudança de sexo?.. claro que não.

 

2. Um casal homossexual ( dois homens ) adopta uma criança ( suponhamos que do sexo masculino ) . A criança ao crescer poderá experimentar todas as sensações características do relacionamento tradicional entre filho-pai e filho-mãe que existiria numa adopção por parte de um casal heterossexual ?

 

Na sociedade em que vivemos, a probabilidade de uma criança passar pelo divorcio dos pais ou simplesmente já nem conhecer um dos progenitores é bastante elevada, a percentagem de famílias monoparentais é cada vez maior, ou seja, existe neste momento uma grande percentagem de crianças para quem o "tradicional" é ver só a mãe, ou só o pai. Imagino que todos conheceremos casos destes, serão essas crianças menos felizes, ou menos normais? Se vamos falar de família tradicional, teríamos que colocar em causa muitas coisas, teríamos que perguntar se uma mãe solteira é capaz de educar o seu filho de forma tradicional, ou se os pais divorciados o são...

 

Para adoptar só deveria ser necessário um requisito, capacidade de amar... de vez em quando dou por mim a lembrar-me daquelas 3 crianças que estão algures no Distrito de Setúbal, crianças que estão à espera de alguém que as ame, alguém que as queira, crianças que foram institucionalizadas, entregues e devolvidas...será que no dia em que alguém esteja disposto a dar-lhes uma família, elas vão perguntar qual a orientação sexual dos seus futuros pais?

 

Jorge

publicado às 21:53

A Saia almarrotada

por Jorge Soares, em 21.03.09

Beleza africana

 

O estar morto é uma mentira. O morto apenas não sabe parecer vivo. Quando eu morrer, quero ficar morta.

(Confissão da mulher incendiada)
 
Na minha vila, a única vila do mundo, as Mulheres sonhavam com vestidos novos para saírem. Para serem abraçadas pela felicidade. A mim, quando me deram a saia de rodar, eu me tranquei em casa. Mais que fechada, me apurei invisível, eternamente nocturna. Nasci para cozinha, pano e pranto. Ensinaram-me tanta vergonha em sentir prazer, que acabei sentindo prazer em ter vergonha.
Belezas eram para as mulheres de fora. Elas desencobriam as pernas para maravilhações. Eu tinha joelhos era para descansar as mãos. Por isso, perante a oferta do vestido, fiquei dentro, no meu ninho ensombrado. Estava tão habituada a não ter motivo, que me enrolei no velho sofá. Olhei a janela e esperei que, como uma doença, a noite passasse. No dia seguinte, as outras chegariam e me falariam do baile, das lembranças cheias de riso matreiro. E nem inveja sentiria. Mais que o dia seguinte, eu esperava pela vida seguinte.
Minha mãe nunca soletrou meu nome. Ela se calou no meu primeiro choro, tragada pelo silêncio.
 
Única menina entre a filharada, fui cuidada por meu pai e meu tio. Eles me quiseram casta e guardada. Para tratar deles, segundo a inclinação das suas idades. E assim se fez: desde nascença, o pudor adiou o amor. Quando me deram uma vaidade, eu fui ao fundo. Como o barco do Tio Jonjoão que ele construiu de madeira verde. Todos teimaram que era desapropriado o material. Um arco nos ombros, foi sua resposta. Jonjoào convocou toda a vila para assistir à largada do barco. Dessa vez, até eu desci aos caminhos. Mal se barrigou nas águas do rio, a barcaça foi engolida nas funduras.
- Maldição - propalou meu pai, gritando com as nuvens.
Mas eu sabia que não. O barco estava ainda muito cru, a madeira tinha ainda vontade de raiz. Nosso tio não tinha feito um barco para flutuar. Isso fazem todos, disse, é tudo barcos, uns iguais e os outros também. E acrescentou:
- Quando secar o rio, o meu barco ainda estará aqui.
Agora, a saia de roda era o barco na fundura das águas. Uma tristeza de nascença me separava do tempo. As outras moças, das vizinhanças, comiam para não ter fome. Eu comi a própria fome.
- Filha, venha sentar.
Não diziam “comer” que era palavra dispendiosa. Diziam “sentar”. E apontavam uma estreiteza entre cotovelos em redor da mesa. Os braços se atropelavam, disputando as magras migalhas. Em casa de pobre ser o último é ser nenhum. Assim eu não me servia. Meu coração já me tinha expulso de mim. Estava desalojada das vontades. E esperava ser a última, arriscando nada mais sobrar. Mas havia essa voz que sobrepunha minha existência:
- Deixem um pouco para a miúda.
Afinal, sempre eu tinha um socorro. Um pouco para a miúda: assim, sem necessidade de nome. Que o meu nome tinha tombado nesse poço escuro em que minha mãe se afundara. E os olhos da família, numerosos e suspensos, a contemplarem a minha mão, atravessando vagarosamente a fome. Não tendo nome, faltava só não ter corpo.
A meu tio, certa vez, ousei inquirir: quando secar o rio estarei onde? E ele me respondeu: o rio vive dentro de si, o barco é que secará.
Na minha vila, as mulheres cantavam. Eu pranteava. Apenas quando chorava me sobrevinham belezas. Só a lágrima me desnudava, só ela me enfeitava. Na lágrima flutuava a carícia desse homem que viria. Esse aprincesado me iria surpreender. E me iria amar em plena tristeza. Esse homem me daria, por fim, um nome. Para o meu apetite de nascer, tudo seria pouco, nesse momento.
As outras moças esperavam pelo domingo para florescer. Eu me guardava bordando, dobrando as costas para que meus seios não desabrochassem. Cresci assim, querendo que o meu peito mirrasse na sombra. As outras moças queriam viver muito diariamente. Eu envelhecendo, a ruga em briga com a gordura. As meninas saltavam idades e destinavam as ancas para as danças. O meu rabo nunca foi louvado por olhar de macho. Minhas nádegas enviuvavam de assento em assento, em acento circunflexo.
Chega-me ainda a voz de meu velho pai como se ele estivesse vivo. Era essa voz que fazia Deus existir. Que me ordenava que ficasse feia, desviçosa a vida inteira. Eu acreditava que nada era mais antigo que meu pai. Sempre ceguei em obediência, enxotando tentações que piripirilampejavam a minha meninice. Obedeci mesmo quando ele ordenou:
- Vá lá fora e pegue fogo nesse vestido!
Eu fui ao pátio com a prenda que meu tio secretamente me havia oferecido. Não cumpri. Guiaram--me os mandos do diabo e, numa cova, ocultei esse enfeitiçado enfeite.
Lancei, sim, fogo sobre mim mesma. Meus irmãos acorreram, já eu dançava entre labaredas, acarinhada pelas quenturas do enfim. E não eram chamas. Eram as mãos escaldantes do homem que veio tarde, tão tarde que as luzes do baile já haviam esmorecido.
É essa voz que ainda paira, ordenando a minha vez de existir. Ou de comer. E escuto a sua ordem para que a vida me ceda a vez. E pergunto: posso agora, meu pai, agora que eu já tenho mais ruga que pregas tem esse vestido, posso agora me embelezar de vaidades? Fico à espera de sua autorização, enquanto vou ao pátio desenterrar o vestido do baile que não houve. E visto-me com ele, me resplandeço ante o espelho, rodopio para enfunar a roupa. Uma diáfana música me embala pelos corredores da casa.
Agora, estou sentada, olhando a saia rodada, a saia amarfanhosa, almarrotada. E parece que me sento sobre a minha própria vida.
O calor faz parar o mundo. E me faz encalhar no eterno sofá da sala enquanto a minha mão vai alisando o vestido em vagarosa despedida. Em gesto arrastado como se o meu braço atravessasse outra vez a mesa da família. E me solto do vestido. Atravesso o quintal em direcção à fogueira. Algum homem me visse, a lágrima tombando com o vestido sobre as chamas: meu coração, depois de tudo, ainda teimava?
 
 
Mia Couto in O Fio das Missangas
Retirado de :Contos de aula
PS:Imagem retirada da internet

publicado às 22:00

Livro:Valete de copas e dama de espadas

por Jorge Soares, em 20.03.09

Joanne Harris

 

Há muito que não falo de um livro.... também quem costuma reparar ali para os livros da barra lateral pode ver que os livros que lá estão são os mesmo há muito tempo... é verdade, tenho descuidado as leituras, os blogs, as fotografias, os miudos....são muitas coisas....

 

Tenho pendente o meu comentário à adopção por homossexuais...e as minhas respostas ao amigo Rolando do Entremares, mas ainda não assentei as ideias todas... já lá irei.

 

Vamos ao livro? Comecei a ler este livro no Hospital do Outão, num dos dias em que estive horas para ser atendido na consulta.... uma manhã à espera deu para ler quase metade. Não sou de abandonar livros a meio..mas confesso que este não me seduziu. Li algures que este foi o livro da transição da fase Inglesa para a fase Francesa da Joanne Harris e se não me engano era o unico que não tinha lido desta autora. 

 

É um livro estranho, violento, um retrato gótico da Inglaterra Victoriana, uma história fria e forte. Henry Paul Chester é um artista vitoriano cujo passado esconde um segredo terrível que deixou marcas profundas nele próprio e na sua arte. A sua obsessão em pintar raparigas jovens e "inocentes" vai conduzi-lo a Effie, uma menina de nove anos, que passa a usar como modelo. Mas além de a utilizar como seu modelo exclusivo educa-a para mais tarde ser a sua mulher. Anos depois, Effie e Chester casam e é precisamente neste momento que a relação entre ambos azeda. Henry não aceita que Effie cresceu, que já não seja uma menina de traças e bibe e que reclame o seu papel de esposa e de mulher. Henry quer mantê-la numa redoma de vidro, quer só e sempre uma menina, tenta por isso mantê-la drogada e longe de tudo o que a faz sonhar, os seus livros, a poesia que ela adora.   Effie procura então consolo junto de um rival de Chester, o inescrupuloso Moses Zachary Harper, que vai dar asas á sua imaginação e com quem cria uma enorme cumplicidade. Mas não vai ser ele a confortá-la e sim Fanny Miller, a dona de um bordel, que revê na doce Effie a filha assassinada dez anos antes. Juntas tentam e  conseguem desvendar o sinistro passado de Henry Chester e tramam um sinistro plano para o desmascarar. No entanto o uso da magia, dos opiáceos, não vão dar exactamente ao rumo que traçaram e o fim é ainda mais tenebroso, cruel e surreal do que alguma vez se poderia imaginar. Apaixonante, violento e ao mesmo tempo terno, só mesmo Joanne Harris para o escrever, e aqui está a contradição, por um lado impossível ligá-lo a chocolate, por outro a sua extrema sensibilidade.

 

Demorei quase meio ano a retomar a leitura....e reconheço que a ultima parte conseguiu atrair  aminha atenção...... é um livro com uma atmosfera diferente, Para quem leu Chocolate ou A praia roubada, poderá ser um livro estranho...mas não deixa de ser um bom livro.

 

Jorge

publicado às 21:59

Eu sou pai

por Jorge Soares, em 19.03.09

Papoila

 

 

 

O poema da R.

 

Pai

 

Sem ti a minha vida,

não era assim,

colorida cheia de vida

 

Pai, sem ti a vida,

Perde a graça

As horas passam a correr,

Sem saber o que fazer.

 

Contigo sinto-me

um sol quente,

Sinto-me como um jardim,

Sem ti a minha vida não era assim

 

 

O postal do N.

 

Para mim

tu és o melhor pai do mundo

Eu gosto muito de ti

Tu ajudas-me a montar os legos.

És o melhor cozinheiro do universo.

 

 

Pronto, hoje eu sou um pai babado que tem uns filhos poetas

 

Jorge

 

publicado às 20:49

Pág. 1/3



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