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Conto, Isaura para sempre dentro de mim

por Jorge Soares, em 18.12.10

Isaura para sempre dentro de mim

 

Isaura entrou pelo bar como se entrasse pela última porta e nós fôssemos os deuses que a aguardássemos do outro lado. Fora ficava esse céu todo azulzinado, os zunzuns da gente no bazar.
A aparição da mulher fez estancar meu coração, suspenso na rédea do espanto. Escutei íntimos desacordes, sangue para um lado, veias para outro. É que eu não via a Isaurinha há mais de vinte anos, mais de metade do tempo que eu amealhava existências. De repente, me chegaram lembranças como se em meu peito desembarcassem imagens e sons, atropelando-se em desordem.

 

Foi no tempo colonial. Eu e a Isaurinha éramos empregados domésticos na mesma casa. Ela empregada de dentro, eu de fora. Ambos, miúdos, em idade mais de brincar. Aos fins da tarde, quando ela despegava me vinha contar as novidades, segredos da vida dos brancos. Era hora de eu passear a cãozoada. Ela me acompanhava, rodávamos pelos quarteirões enquanto ela me fazia rir, com as suas revelações. Que o patrão a empurrava nos cantos sombrios e a apertava de encontro às paredes. Não havia parede em que ele, de pé, não tivesse deitado.

 

Tudo aquilo lhe dava nojeira, reviragem nas vísceras. Queixar a quem? A Deus? Eu sonhava que me subiam coragens e enfrentava o patrão. Mas adormecia sem ousadia sequer de terminar o sonho.

 

E agora Isaura interrompia o meu tempo de existir, rompante adentro da cervejaria. Estava quase na mesma, o tempo não a redesenhara. Magra, como sempre fora. Olhos acesos como réstias de brasa. Em seus dedos um cigarro me sacudiu lembranças. Como se o centro de minha memória fosse um fumo. Sim, o fumo de cigarro que ela, vinte anos antes, trazia de dentro da casa dos patrões para as traseiras onde eu a esperava. Fazia o seguinte pegava a beata distraída num cinzeiro de salão e chupava umas boas passas. Enchia as bochechas de fumo vinha ter comigo ao pátio. Ganhava um ar apalhaçado, com dupla cara como a coruja. Chegava-se a mim e vizinhávamo-nos, cara com cara. Depois, boca com boca, os lábios meus em concha recebiam os dela. Isaura soprava para dentro de mim esse fumo. Sentia aquecer-me meus interiores, a saliva quase fervendo. Depois, não era só a boca, todo o meu corpo se ia esquentando. Era assim que fumávamos, a meio hálito, boca de um cruzamento e peito do outro.

 

Praticávamos o quê? Fumigação boca-a-boca? Uma coisa era de certeza meu endereço era o céu, nesses instantes. Isaura me exaltava eternidades, lábios vaporosos me roçando o coração. Tudo ali na cubata das traseiras.

 

Simples procedimento aquele, Isaura aparava as unhas dos cigarrinhos, beatas ainda moribundas. Não parecia que Isaura deitasse valor naquele trocar de lábios. Ela gostava mesmo era de tabaco, pouco a pouco se adentrando no vício das fumagens. Eu e a descarga suja em meus pulmões eram simples acidentes sem percurso.

 

Até que, certa vez, o patrão nos surpreendeu naquelas disposições. Choveram insultos, imediatas pancadas. E logo eu, desculpando Isaura, assumi as inteiras culpas. Construí a versão que eu a tinha assaltado, obrigado contra as suas vontades. Nesse mesmo dia, fui expulso, despedido. Nem me despedi de Isaurinha. Levei meus pertences, por baixo de uma lua tristonha. E nunca mais Isaura, nunca mais notícias dela.

 

Vinte anos depois, Isaura desarrumava a tarde, interrompendo o bar. Para mais, ela trazia entre os dedos um cigarro, fumejante.

 

Ela se sentou em minha mesa e, sem me olhar, desatou as falas. Tanta lembrança boa. Mas a favorita é você, Raimundano. Lhe digo esse fumo todo que lhe deitei sabe o que eu queria, só mais nada? Era um beijo.

 

Estremeci. Aquilo era a justa navalha, me lacerando? Mas ela seguia, no avanço de seus ditos. Sim, que ela em tempos, me amara. Nunca mostrara aquele querer dela, por motivo de decências. É que era tão magra que era má educação se exibir. Que ela escolhia para mim suas melhores belezas, como quem tem prendas mas não sabe nem a quem dar.

 

- Porquê, Isaura? Porque nunca me procurou?

 

- Porque lhe deixei de amar. Foi aquele sua mentira para me proteger. Isso me fez muito mal.

 

Desde o momento que eu a defendera, o sentimento tombara, sobra de sombra.

 

Ofensa de quê? Nunca saberei. Isaura, ali sentada, não me explicaria nada. Como se tivesse passado não o tempo, mas a vida inteira. Levantou-se, arrastou a cadeira como se arrumar os móveis fosse mais importante neste mundo. E se dirigiu para a saída, a angústia me resumindo como se, pela segunda vez, minha vida se ecoasse por aquela porta. Minha voz, nem a reconheci.

 

-Sopre-me outra vez um fumo, Isaura. Um fuminho, só.

 

Ela me olhou, os olhos tão longe que parecia nem ter focagem. Aspirou fundo o cigarro, refreou umas tosses e veio em minha renteza. Quando ela colou seus lábios em mim, se fabulou o seguinte, a mulher se converteu em fumo e se desvaneceu. Primeiro no ar e, depois, lento, na aspiração de meu peito. Nessa tarde, eu fumei Isaurinha.

 

Mia Couto

 

Retirado de Trapiche dos outros

publicado às 21:04

Wikileaks.. algo vai muito mal no nosso mundo.

por Jorge Soares, em 16.12.10

Quem quer calar Assange?

 

Imagem do ionline

 

Nunca li o 1984 de George Orwell, sim, eu sei, é grave, mas não é preciso ter lido para conseguir imaginar que toda esta história criada à volta de Julian Assange e do Wikileaks será digna de um novo capitulo deste livro.

 

Há muito que sabíamos que Assange tinha sido acusado na Suécia de um crime de natureza sexual, acusação que teria sido arquivada há uns meses por alegadamente não ter pés nem cabeça, esta semana fomos esclarecidos, o caso foi reaberto e ficamos a saber que o senhor é acusado de ter tido relações sem preservativo.. acusação feita por duas senhoras que o convidaram a ir dormir com elas.

 

Entretanto Assange foi detido em Inglaterra e foram precisos dois juizes para decidir que o caso é o suficientemente parvo como para que ele possa ficar em liberdade. Na mesma Inglaterra onde um senhor Chamado Vale e Azevedo se refugiou depois de roubar o Benfica e mais meio mundo e de onde não há forma de o fazer regressar, e não me consta que tenha estado alguma vez preso... está-se mesmo a ver que ter sexo sem preservativo é muito mais grave que abusar da posição de advogado para roubar descaradamente.

 

Hoje ficamos a saber que a revista Time elegeu como homem do Ano o fundador do Facebooks, Mark Zuckerberg, isto depois de uma votação pelos seus leitores onde ele teve perto de 30000 votos, nada  que se compare aos mais 400.000 votos que teve Assange e que a revista ignorou num acto de vergonhosa censura.

 

Não me lembro de alguma vez ter lido a Time, mas não me parece que uma revista que presta uma vassalagem de este tipo ao estado, seja minimamente digna de confiança, quem é capaz de ignorar assim a opinião dos seus leitores é capaz de muito mais... não?

 

Tudo isto deixa um enorme amargo de boca, o que podemos ver é um estado soberano que supostamente é democrático e respeitador dos direitos humanos, que não duvida em lançar mãos de qualquer método, já seja directamente ou através de outros estados que também eles se dizem democráticos, para em lugar de esclarecer as noticias, tentar matar o mensageiro.... é ou não digno de Orwell?

 

Quem sabe um dia podemos ler no Wikileaks os documentos que deram origem a toda esta caça ao homem.... entretanto, algo vai muito mal no reino em que vivemos...e até eu que não tinha uma opinião formada sobre a legitimidade de se mostrarem assim os segredos.. começo a achar que sim... que eles devem mesmo ser mostrados.. quantos mais casos e embrulhadas como esta estarão para aparecer?

 

Jorge Soares

publicado às 22:06

Ideias Soltas 2 - O que é uma lei da moral?

por Jorge Soares, em 16.12.10

 

 

O vídeo mostra uma mulher sudanesa a ser chicoteada em plena rua, a pena merecedora de tal castigo é o facto de usar calças, o castigo é aplicado em nome da Lei da Moral Sharia. No ar fica uma dúvida, ante actos como este, aplicados em nome de uma lei baseada na religião e  em pleno século XXI, o que é uma lei da Moral?

 

Jorge Soares

publicado às 13:38

Vendedores de castanhas em Roma

Imagem minha do Momentos e Olhares

 

Uma das coisas que mais me surpreendeu em Roma foi o facto de ser uma cidade com uma diversidade de pessoas  que não tinha encontrado em nenhum outro lugar, do que tinha visitado até agora talvez só tenha paralelo em Nova Iorque.

 

Na recepção do hotel no primeiro dia estava um Chinês, falava um Inglês perfeito, no dia a seguir estava um latino, falamos com ele em espanhol, pelo sotaque pareceu-me Colombiano. No primeiro sitio onde fomos tomar café, um lugar que à primeira vista não se diferenciava de qualquer outro café da cidade, eram chineses. Para almoçar escolhemos um dos milhares de lugares onde vendiam fatias de pizza... não percebi bem de onde eram, mas pareceram-me Hindus ou Paquistaneses.

 

Pelas ruas os vendedores de Castanhas tinham ar de ter vindo de algures a Oriente, nos mercados e feiras de rua era possível ver todo um arco iris cultural, negros Africanos, latinos da América do Sul e Central, chineses, Árabes do Norte de África, alguns argentinos, um sem fim de cores e culturas.

 

Mas não é algo que se veja só nas lojas e comércio, ao andar pela cidade ou nos transportes públicos encontramos muitíssimos jovens com ar oriental, com o aspecto mais italiano possível e muitas vezes em grupos com outros jovens, num sinal de integração na sociedade que me fez lembrar os meus tempos de juventude em Caracas.

 

O nosso mundo está cada vez mais pequeno, todo este fluxo de emigrantes e a sua rápida integração nos países de acolhimentos farão com que num futuro que não estará assim tão distante, a humanidade integre uma sociedade homogénea  e indiferenciada...  terá de certeza muitos menos conflitos e discriminações e muito mais possibilidades de ser feliz.

 

Jorge Soares

publicado às 22:01

A minha papoila

Imagem minha do Momentos e Olhares

 

Lembram-se deste post?, eu não vi o debate de ontem entre Fernando Nobre e Francisco Lopes,  há pouco estava a ouvir na Antena 1 um programa sobre o assunto e as opiniões de todos os participantes foram unânimes, Fernando Nobre é de uma arrogância extrema.

 

Jorge Soares

publicado às 14:59

Ciao Roma

por Jorge Soares, em 13.12.10

Capuccino Romano

 

Assim de repente, apetecia-me um cappucino, este é de um café Romano ali bem perto da piazza Venezia, mesmo na esquina da Via 4 Novembre e da Via di Santa Eufémia, não será de certeza o melhor capuccino de Roma, mas foi o melhor que tomamos por lá, cremoso e com um suave sabor a chocolate.... arte em café

 

Passei os últimos 4 dias em Roma uma cidade monumental, a mais monumental das cidade onde já estive, uma cidade onde em cada ruela, em cada recanto, em cada rocha, há séculos de história.... muitos séculos. Já tinha estado em Itália antes, em várias cidades, mas em nenhuma onde como nesta se pode sentir o peso da passagem dos séculos e da civilização.

 

Andámos Kms, muitos kms e a verdade é que adorei cada momento, fazer a pé uma cidade como Roma é ir descobrindo pouco a pouco recantos e ruelas, em cada esquina há um prédio monumental, ou mais uma igreja com uma fachada grandiosa, ou um prédio antigo com um pequeno detalhe, um terreno onde decorre outra escavação.. ou tantas outras coisas que chega a um ponto que nos limitamos a contemplar, porque não há capacidade para absorver tanta história.

 

A dado momento dei por mim a pensar como é que tinha havido capacidade para construir tanto e de forma tão rica, a P. esclareceu, durante séculos o império Romano dominou o mundo e todos pagavam tributo para a grandiosidade de Roma, depois outro império floresceu, e o resto do mundo pagou tributo ao papa, o novo imperador, para continuar a manter a grandiosidade de Roma.

 

Não sei como será no Verão, mas nesta altura Roma é uma cidade visitável e de preços mais ou menos acessíveis para as nossas bolsas, a comida é relativamente acessível, a refeição mais cara que pagamos ficou em 50 Euros para duas pessoas, mas por menos de 10 Euros consegue-se almoçar.. basta gostar de Pizza ou de massas. Os transportes são baratos e muito funcionais.. mas vão por mim, andar a pé é mesmo o ideal... desde que não façam como eu que levei botas de andar... novas.

 

Em suma, adorei.... e como me apetece um daqueles capuccinos.

 

Jorge Soares

publicado às 22:20

Conto: Ele e ela

por Jorge Soares, em 11.12.10

Imagem de aqui

 

Se conhecem num bloco de pierrôs em que ela é a única colombina. Ela bebe cerveja. Ele, caipirinha. Se vêem, sorriem, se beijam. 

Quando nos conhecemos ele disse que gostou da minha ousadia. "Ousadia? Mas esse cara nem me conhece", pensei, mas aceitei a cantada. Na verdade, achei aquele elogio o máximo! Ficamos juntos até o bloco se desfazer no Largo dos Guimarães. 

Ele não consegue parar de pensar nela. Gosta de imaginar qual é a forma do seu corpo sem fantasia. Passa horas olhando vitrines, tentando adivinhar em que tipo de roupa ela se encaixa melhor, o tamanho, o comprimento...

Um dia o vi olhando uma vitrine de roupas femininas. Admirava os manequins como se visse mulheres no lugar dos bonecos. Parei na sua frente, ele me olhou como quem não acreditasse, sorriu leve, comentou algo sobre "...a ressaca daquele dia", falou mais algumas coisas que eu não consegui decifrar, muito menos tentei entender. Meu pensamento estava preso na imagem dele refletida na vitrine. Escrevi num papel meu telefone. "Não...", ele disse, e eu recuei, "...esse não é o seu tipo de roupa", continuou, esticando o braço, e eu voltei à posição original, como se nada tivesse sido dito. Ele dobrou o papel sem reparar que o meu nome não estava lá. Me beijou no canto da boca.

Ele telefona para ela, sentindo um aperto desconjuntado no peito. Não haviam dito seus nomes, era como se se conhecessem há muito...

Acordei com a voz dele na secretária eletrônica cantando "colombina onde está você, eu vou dançar o iê ie iê. Me liga". Eu corri pra atender, mas não deu tempo. Deixou um número. Nos encontramos no Largo. "Não consigo parar de pensar em você. Quero continuar o que ainda não começamos", ele disse me olhando fundo. Eu sorri. Sempre gostei de paradoxos.

"Te amo", ela diz, mas ele não acredita, mesmo sabendo que ela não mente. Ela faz declarações de amor com a mesma tranqüilidade que acende um cigarro depois do café ou come um prato de filé com fritas. Aos cinqüenta anos um homem já tem opinião formada sobre o que é o amor e ele sabe que uma pessoa capaz de dizer te amo de forma tão natural apenas pensa sentir o que diz. "Você acha que me ama", ele responde. Ela rodopia o corpo leve, inescrupuloso, e sai, batendo a porta do apartamento. Na esquina da rua se vira e acena para ele, que recua um passo da janela, se protegendo atrás das cortinas. Ela espera alguns segundos, ele reaparece e acena de volta com um gesto duro e frio como um espasmo. 

Ela levanta de leve os ombros, dá meia-volta e dobra a esquina. 

Ele se senta na poltrona perto da janela, acende um cigarro e olha a fumaça. 

Ele achava que me conhecia. Dizia que eu pensava que o amava. Acreditava me conhecer mais do que eu mesma. Sabe como é, coisa de homem que acha que já viveu tudo. Na época ele preparava uma tese de mestrado sobre o amor. Algo sobre manifestações amorosas à luz da sociedade pós-moderna. Acho que ele ia ter um bocado de trabalho. Na primeira vez que transamos, ele jurou que me amaria pra sempre se eu continuasse fazendo sexo oral nele daquele jeito. Ali eu percebi que ele ia ter que pesquisar muito pra desenvolver uma tese convincente. Eu não acho que um homem que jura amor eterno a uma mulher só pelo jeito que ela chupa ele entenda realmente do assunto. Talvez ele só entenda mesmo de sexo oral. O que, cá pra nós, não deixa de ser uma vantagem. 

O cheiro dela. É um cheiro que ele não sabe explicar, um cheiro impossível, que ele só sente quando não sente direito, só percebe quando não presta atenção, misturado com cheiro de rosa, incenso, creme hidratante e chiclete de canela, que ela gruda nas costas da mão quando toma suco de beterraba com laranja. "Pra saúde", ela diz, brindando o copo num outro imaginário, e bebe o conteúdo quase de um gole só, de olhos fechados para não sentir o gosto. Abre um sorriso satisfeito, desfaz a careta refletida no vidro do copo, leva a mão à boca e resgata o chiclete ainda úmido.

Um dia peguei na mesinha de cabeceira da cama dele uma matéria de jornal: "Machos e fêmeas: o poder do cheiro nas relações amorosas". Ali explicava que homens mais velhos se interessam por mulheres mais novas por causa do cheiro delas. É que essas mulheres, como as fêmeas de qualquer espécie, exalam um cheiro mais forte, e isso compensa a perda progressiva do olfato dos homens mais velhos, o que também acontece aos machos de qualquer espécie. Achei aquilo tudo muito primata pro meu gosto, mas entendi porque ele ultimamente andava cheirando as minhas calcinhas.

Os dois primeiros anos deles juntos são ótimos. Ele gosta da juventude dela, do seu jeito apressado de encarar as coisas. Olha para ela e se lembra dele.

Sabe quando uma pessoa te olha tão através de você que alcança aquilo que está lá atrás e nem você enxerga mais? Pois é, não foram poucas as vezes em que ele me olhou assim. Uma vez eu virei pra trás e vi que não tinha ninguém. Achei divertido, mas foi aí que comecei a entender sem ainda saber: eu já estava só. 

"Sinto uma certa pressa", ela diz. "De quê?", ele quer saber, mas ela não sabe responder. Ele gosta de palavras, explicações, e algumas ela não sabe dar. 

Eu gostava da maturidade dele. Daquele jeito pouco apressado de olhar o mundo. Os cabelos grisalhos, os olhos por trás dos óculos, a calma, principalmente a calma. Uma calma típica dos que sabem e não têm medo disso, dos que sabem que nem sempre foi assim. Era aquela calma dele que eu procurava, mas eu tinha pressa, muita pressa de encontrá-la. E foi justamente aquela calma que um dia começou a ocupar espaços desconhecidos em mim e me revelou uma solidão imensa, só minha: a solidão de mim. Tive medo, muito medo, do silêncio. Era como se de repente não houvesse mais nada além das paredes daquele apartamento.

Ele a abraça. Eles transam. Ela vai embora, levando a imagem dele refletida na vitrine.

Enchi a casa de espelhos, na esperança de que muitos de nós ocupassem espaços nos quais não conseguíamos mais circular. Eu já não conhecia mais os caminhos, não era capaz de me distinguir daqueles reflexos, não sabia mais que direção tomar. Minha vida virou um labirinto povoado de fantasmas de nós dois. Quando os aços dos espelhos passaram a ser minha única realidade, fui embora.

Hoje é segunda-feira de carnaval. Pierrôs, colombinas, melindrosas, pandeiros e cuícas se misturam no Largo dos Guimarães e eu aqui, relatando um fato a fria distância, como se a história nunca tivesse sido minha. Faz tempo que ela foi embora e ainda sinto uma saudade alucinada de nós. Um fantasma vira aquela mesma esquina ali embaixo há meses e quanto mais me escondo atrás das cortinas, quanto mais cigarros acendo tentando moldar com a fumaça uma outra imagem que não a dela, mais me aflijo neste apartamento incompleto. O apartamento está em pedaços. Os espelhos aumentam um vazio que parece não ter fim, perpetuam este espaço no qual me perco e eu aqui, sentado nesta poltrona, desejando vê-la surgir de dentro deles e dizer que tudo não passou de um inocente pavor.

Outro dia, era uma segunda-feira de carnaval, cuícas, pierrôs, pandeiros, colombinas, melindrosas, se misturavam no Largo dos Guimarães. Senti saudades. Às vezes tenho vontade de voltar e explicar o pavor que senti.

 

Ana Claudia Calomeni

 

Retirado de Releituras


publicado às 21:04

Velho

por Jorge Soares, em 10.12.10


Velho

 

Imagem minha do Momentos e Olhares

 

Velho

 

Parado e atento à raiva do silêncio

De um relógio partido e gasto pelo tempo

Estava um velho sentado no banco de um jardim

A recordar fragmentos do passado

 

Na telefonia tocava uma velha canção

E um jovem cantor falava na solidão

Que sabes tu do canto de estar só assim

Só e abandonado como o velho do jardim?

 

O olhar triste e cansado procurando alguém

E a gente passa ao seu lado a olhá-lo com desdém

Sabes eu acho que todos fogem de ti prá não ver

A imagem da solidão que irão viver

Quando forem como tu

Um velho sentado num jardim

 

Passam os dias e sentes que és um perdedor

Já não consegues saber o que tem ou não valor

O teu caminho parece estar mesmo a chegar ao fim

Para dares lugar a outro no teu banco do jardim

 

O olhar triste e cansado procurando alguém

E a gente passa ao seu lado a olhá-lo com desdém

Sabes eu acho que todos fogem de ti prá não ver

A imagem da solidão que irão viver

Quando forem como tu

Um resto de tudo o que existiu

Quando forem como tu

Um velho sentado num jardim

 

Mafalda Veiga

 

 

 

 

 

Setúbal, Novembro de 2009

Jorge Soares

publicado às 18:34

Foi um sonho que eu tive ...

por Jorge Soares, em 09.12.10

O papagaio

 

Imagem minha do Momentos e Olhares

 

Brinquedo

Foi um sonho que eu tive:
Era uma grande estrela de papel,
Um cordel
E um menino de bibe.

O menino tinha lançado a estrela
Com ar de quem semeia uma ilusão;
E a estrela ia subindo, azul e amarela, 
Presa pelo cordel à sua mão.

Mas tão alto subiu
Que deixou de ser estrela de papel.
E o menino, ao vê-la assim, sorriu
E cortou-lhe o cordel.

Miguel Torga, Diário I, 1941

 

 

É giro quando os sonhos se cumprem... sonhos de meninos, que até podem ser graúdos...

 

Voando papagaio num fim de tarde na praia da Figueirinha

Setúbal, Outubro de 2010

Jorge Soares

publicado às 17:28

TPM - (sindrome da) Tensão pré-menstrual

por Jorge Soares, em 07.12.10

TPM - Tensão pré menstrual

Imagem de Sabe-Tudo

 

TPM

 

"A tensão pré-menstrual (conhecida pela sigla TPM) é uma síndrome que atinge as mulheres e que ocorre, em maior ou menor grau, nos dias que antecedem a menstruação. É caracterizada por uma irritabilidade e ansiedade mais acentuadas, bem como manifestações físicas, como por exemplo dor nas mamas, distensão abdominal e cefaléia. Decorre da retenção de sódio e água ." - do Wikipédia

 

Não, não se assustem, não é de mim que vou falar, quer dizer, no fim, quem leva com elas sou eu na mesma.. mas pronto, há coisas que vem com o nosso Karma e para as quais não há muito a fazer. A mim, não me bastava ter que levar  com uma, agora são duas...

 

Eu já cá falei do assunto, as duas maiores cá de casa, são tão parecidas que até chateia... e claro, são tão parecidas que de vez em quando a coisa dá faisca.  Ultimamente as coisas tem andado de novo a modos que em equilíbrio precário, principalmente porque a R. insiste em defraudar as expectativas escolares da mãe. A P. sempre foi a melhor aluna da turma, desde o pré-escolar até ao ultimo ano da faculdade, a estudante (quase) perfeita com as notas perfeitas. A R. é uma despassarada, há tantas coisas na vida e acontecem todas ao mesmo tempo, estar com atenção às aulas é um exercício mais ou menos complicado... mesmo assim as coisas entram.. o problema maior  é que também é muito difícil estar com atenção nos exames... que não são para fazer, são para despachar.... é claro que isto tudo raramente dá para mais que um bom... Não há notas negativas... mas para a mãe que foi aluna perfeita a vida toda... bom não chega.

 

Ontem saiu mais um bom... e mais uma daquelas discussões... porque se há coisa que aquelas duas não conseguem fazer é abdicar da última palavra... e a coisa aqueceu... a pobre R. é uma daquelas pré-adolescentes com pelo na venta... mas ainda há hierarquias cá em casa e está-se mesmo a ver quem tem imensos castigos.

 

Parece que ontem ficou a pensar no assunto, hoje de manhã foi pedir desculpa à mãe:

 

- Mãe, desculpa aquilo de ontem, sabes, eu estava com TPM

- Com quê?

- Com TPM - síndrome de tensão pré-menstrual!

-.........

 

Ai a minha vida!

 

Jorge Soares

publicado às 22:30



Ó pra mim!

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