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Conto - Território

por Jorge Soares, em 18.10.14

território.JPG

 

 
Lá, branco e preto namoram. Homem e mulher. Homem e homem. Mulher e mulher. O suor do trabalho vai para a cama sem banho. O suor da trepada escorrega os corpos na cama sem-vergonha. O gozo grita fode, grita mete, grita o dia de merda igual a todos os outros. A merda que invade as narinas a céu aberto. Merda de gente, de bicho, de viciado, de vadia. Ninguém mais sente. Nariz é pra cheirar o pó. O pó que menino vende.
 
Menino mata gente grande. Lá, mata. Mata velho dedo-duro, mata mulher que trai, puta que não rende, comerciante que não paga. Mata menino também. E morre menino no descarte do dia ou da semana. De crack, de bala achada, de desafeto, de porrada, de polícia, de saco cheio. Só não morre de rir. Nem de medo. Soldado não pode ter medo. Não pode nada. Soldado não é autoridade. Nem no tráfego, nem no quartel. Mas pensa que é. Até quando chupa o dedo pra dormir. Quando mija na cama, quando chora no sono, quando abraça a HK33, quando chama pela mãe sem abrir os olhos. 
 
Mãe é o caralho. Lá, quase sempre é. A bêbada que queima o braço do menino com brasa do cigarro. Menino de quatro anos. Porque ele pede doce, pede colo, pede rua. A noiada que vende bebês para os turistas de língua enrolada. Em troca de dinheiro pra comprar bagulho fino e enfiar no rabo dela e no dos homens dela. Os homens que arrebentam o menino de porrada e deixam ele nu do lado de fora de casa. Nos dias piores. Nos melhores, não. Nos dias bons o menino dorme na cama quente. Estuprado a noite inteira. Inteira, não meia. E a vagabunda não acredita no menino. Nunca. Mesmo acreditando. E repete que ele é ruim que nem cobra. Que ele quer que o homem dela vá embora. E arrebenta o menino de porrada e deixa ele nu do lado de fora de casa, soluçando entrecortado.
 
Lá, pastor anda limpinho. Roupa passada, camisa dentro da calça, o pinto dentro da calça. Difícil é o pastor fazer um fiel. Quem faz fiel é o tráfico. Os do pastor ostentam na igreja as bíblias gastas. Os outros ostentam no baile funk. Junto com os meninos que não são de lá. Mas que brincam de ser. Direitinho. Iguais, os que ficam por lá no fim do baile. Diferentes, os que descem para o asfalto quando o baile acaba. Dirigindo carro do ano. E vão para casa. Para amansar a larica com comida boa e um pouco mais de pó. Ou de pedra. Na beira da piscina com vista para o mar. Tomando scotch  cowboy servido no Baccarat da mamãe. Mamãe de menino rico não queima braço com cigarro, não dá porrada, não deixa nu do lado de fora. Põe dinheiro na conta.
 
Os fiéis do pastor dormem cedo. Nos braços de Deus e de Morfeu. Os do tráfico vão atrás das coxas. De homem, mulher, menina, menino. Branco e preto fodendo pelo resto da noite. Fazendo mais meninos pra descarte. Uns, no lixo, arrancados às pressas antes da vida. Outros, mais tarde um pouco. Só um pouco. Só o tempo de primeiro virar soldado, de virar noiado, de trepar com homem, mulher, preto, branco. E de voltar mais uma vez pra casa da mãe. Esperando um carinho na cabeça, um riso da boca de dentes tortos, podres. Boca de mãe devia rir sempre. E falar vem cá meu filho pra eu te dar um beijo, Deus te abençoe, como foi o seu dia, vai sair com quem, põe um casaco, já fez os deveres, come direito. 
 
A HK33 empinada dispara rajadas de fogos de artifício. Cachorro marcando território. 

 

Cinthia Kriemler

Retirado de Samizdat

publicado às 21:28

Brittany Maynard

 

Imagem de aqui 

 

Já aqui falei da eutanásia (auto link) e do direito a morrer-se com dignidade mais que uma vez. Para mim é simples, todos temos direito a viver com um mínimo de dignidade, quando esse direito não está garantido e quando a vida se resume a um enorme sofrimento sem mais perspectivas que esperar que a morte siga o seu caminho, deveríamos ter direito a escolher não continuar a viver em sofrimento.

 

Brittanny Maynard tem 29 anos, em Janeiro foi-lhe diagnosticado um cancro cerebral e os médicos deram-lhe pouco mais de seis meses de vida. Em fase terminal da doença e sabendo que o seu estado físico só irá piorar, Brittanny decidiu que ia escolher o dia e a hora da sua morte...

 

Irei morrer no andar de cima, no quarto que divido com o meu marido, com ele e minha mãe ao meu lado, e falecer pacificamente com a música que eu gosto no fundo

 

A morte é a única coisa certa na vida e Brittany decidiu que quer que a sua morte não tenha o sofrimento atroz porque passam a maioria dos doentes em fase terminal e decidiu que não ia obrigar a que as pessoas que amam a que sofressem tudo isso por ela e com ela.

 

Se pensarmos bem faz todo o sentido, todos sofremos com a morte das pessoas que amamos, não há como não passar por isso, mas não será justo que se pudermos tentemos evitar o sofrimento adicional de que quem nos ama sofra connosco dia a dia à medida que a nossa vida se vai tornando penosa até que já nem damos porque continuamos a viver?

 

Só podemos saber como vamos reagir às coisas quando realmente passarmos por elas, espero sinceramente nunca ter que tomar uma decisão destas para mim ou algum dos meus seres queridos, mas sou completamente a favor do direito à vida e à morte com dignidade.

 

A questão da dignidade levou a que Brittany se juntasse à Compassion & Choices (‘Compaixão e Escolhas’), um grupo que luta pela descriminalização da eutanásia. e sabendo que morrerá em breve, aceitou ser a protagonista de uma campanha pelo direito ao suicídio assistido para pacientes em estado terminal.... vejam o vídeo:

 

 

Jorge Soares

publicado às 22:55

jéssica athayde

 

Coisas que eu poderia dizer se conseguisse escrever assim:

 

É disto que eu falo quando me fazem subir a mostarda ao nariz.


É isto que eu tento demonstrar quando me colocam uma plateia de vaginas à frente. Em formação, entenda-se:

Meninas, abram os olhos. Assumam-se. Pensem à gajo!

Como é possível falar em emancipação feminina, em igualdade de género, em repartição igualitária de tarefas no espaço doméstico, em progressão nas carreiras profissionais, na defesa das mesmas oportunidades que os gajos têm quando, depois, tudo o que muitas mulheres veem à frente é - tão só e unicamente - mamas e rabos. Piores que eles, for god´s sake!

E quase que aposto que as meninas dos comentários sobre celulite, abdominais e afins são as mesmas que enchem os restaurantes, no Dia da Mulher, a dançar o “põe o carro, tira o carro”, comemorando uma pseudo libertação que há-de chegar! Quando? Por este andar, com este “exército de salvação”: nunca.

Não nos perdoamos umas às outras. É incrível.

PS – Sou só eu que acha a Jéssica uma boazona?

Carla R. no Facebook

 

Não Carla, não és só tu, há muito mais gente a achar o mesmo... vai por mim

 

Jorge Soares

PS: PS: Número de dias sem gritar - 12

publicado às 22:11

A Selecção viu-se grega, mas Ronaldo resolveu

por Jorge Soares, em 14.10.14

ronaldo.jpg

 

Imagem do Sapo 

 

A seguir à derrota com a Albânia disse aqui que sem Ronaldo a selecção portuguesa é pouco mais que uma boa equipa.. houve quem não gostasse e o mostrasse nos comentários.

 

Entretanto saiu a fava a Paulo Bento e algumas coisas mudaram, Fernando Santos é o novo treinador e entre os convocados estão alguns jogadores que já por opção própria, caso de Tiago, ou por decisão de Paulo Bento, casos de Ricardo Carvalho e Danny, estavam afastados há algum tempo... 

 

Apesar da mudança de treinador e dos regressos, hoje a selecção viu-se grega para controlar os dinamarqueses que já não são tão toscos. Tirando alguns momentos do jogo do fim de semana contra a França, a verdade é que mudaram os artistas e o maestro, mas a música não mudou assim tanto.

 

Hoje, contra uma selecção com bem menos estrelas e qualidade individual que a portuguesa, voltaram-se a fazer sentir alguns dos problemas que já vinham de antes. Fernando Santos sabe colocar as pedras em campo, as suas equipas são sólidas, não sofrem muitos golos, mas a verdade é que também costumam ter dificuldade em marcar e hoje viu-se isso tudo.

 

É verdade que graças a Ronaldo e Quaresma a vitória terminou por cair do céu quando já ninguém acreditava, mas o jogo em si foi pobre, lento, em algumas fazes aborrecido,... faltou alguma da atitude que se tinha visto em Paris apesar da derrota.

 

Uma equipa que conta com Cristiano Ronaldo e Quaresma pode sempre esperar um passe de magia que resolva um jogo, mas não podemos contar que essa magia apareça sempre e o que hoje se sentiu é que faltam soluções e sobretudo, falta quem para além de Cristiano Ronaldo, consiga resolver.

 

Ricardo Carvalho terá sido o melhor em campo, mas isso não me impede de manter o que disse no que é o post com mais comentários do Blog, um jogador que tem o comportamento e a falta de humildade que ele teve naquele dia, não pode voltar a ser convocado para a selecção, tal como não o deveria ser Danny se é verdade o que se diz que aconteceu.

 

Fernando Santos é um treinador competente, não sei é se haverá neste momento matéria prima suficiente para fazer deste grupo de jogadores uma selecção acima da média.. não há de certeza para fazer uma selecção campeã da Europa, não nos iludamos.

 

Jorge Soares

 

publicado às 21:48

O ébola visto desde o meu sofá

por Jorge Soares, em 13.10.14

ébola, tudo sob controlo

 

Imagem de aqui

 

Há quem ache que há alarmismo na forma como tem surgido as noticias sobre o ébola, há inclusivamente médicos que escrevem artigos para os jornais em que pretendem desmistificar tudo isto e contrariar os números e até as directrizes da Organização mundial de saúde, certo mesmo é que a doença avança todos os dias e não chegam noticias da diminuição do número de mortos e infectados.

 

Quem acha que em Portugal as noticias tem sido exageradas deveria ter atenção ao que se passou ontem no Porto: Alguém que chegou há poucos dias de um país africano dirigiu-se a um hospital privado porque tinha alguns dos sintomas da doença, em lugar de isolar a doente e ligar ao INEM ou ao número disponibilizado para o efeito, mandam-na sair por onde entrou e dirigir-se ao hospital de São João. Bem mandada a senhora sai do hospital e apanha um transporte público para ir para o Hospital público.

 

Felizmente o contágio da senhora não se confirmou, caso contrário e dado que esta já tinha os sintomas da doença, a esta hora andariam as autoridades do país à procura das pessoas que com ela partilharam os transportes públicos para os colocarem de quarentena.

 

É verdade que a doença só se transmite por contacto directo com os fluidos da pessoa infectada, mas também é verdade que em alguns  estudos já feitos o vírus se manteve activo nos fluidos até 24 horas. 

 

O vírus terá a capacidade de contagio do sarampo e é muito menos contagioso que outras doenças conhecidas, mas também é verdade que na Espanha e nos Estados Unidos profissionais de saúde foram contagiadas apesar de vestirem fatos de protecção e de estarem em contacto com doentes uma ou duas vezes.

 

Ora se apesar de sabermos tudo isto, em Portugal além de que há hospitais que não isolam os casos suspeitos e ainda os mandam apanhar transportes públicos para se irem tratar, então é porque as noticias não pecam por exagero, pecam sim por defeito... e parece que há hospitais e/ou profissionais da saúde que ainda não perceberam a gravidade da situação.

 

Jorge Soares

 

PS: Número de dias sem gritar - 10

publicado às 20:50

Cristiano Ronaldo - O que é a CMTV?

por Jorge Soares, em 12.10.14

Cristiano Ronaldo

 

 

Louve-se a coragem da jornalista que apesar de tudo insiste em fazer a pergunta, mas louve-se muito mais a coragem e a personalidade de Cristiano Ronaldo que não está ali para fazer favores a ninguém e por isso diz o que pensa.

 

O que é a CMTV? É a televisão do jornalismo sem critérios, sem deontologia e sem vergonha, se calhar outro teria respondido com mais um lugar comum, Cristiano mostrou que não tem memória curta e que não pactua com jornalismos de sarjeta.

 

 

Bem haja por Cristiano Ronaldo que os tem no sitio,

 

Jorge Soares

publicado às 23:05

Conto - A pechincha

por Jorge Soares, em 11.10.14

 

Damian Klaczkiewicz.jpg

 

Várias coisas no marido irritavam a sra. Chase. Por exemplo, a voz: ele sempre falava como se estivesse apostando num jogo de pôquer. Ouvir aquela fala arrastada e indiferente era exasperador, sobretudo agora, que, conversando com ele por telefone, ela própria falava de forma estridente de tanta empolgação. "Claro que eu já tenho um, sei disso. Mas você não entende, querido — é uma pechincha", explicou, enfatizando a última palavra, depois fazendo uma pausa para deixar a magia dela crescer. Só ouviu silêncio. "Puxa, você podia dizer alguma coisa. Não, não estou numa loja, estou em casa. Alice Severn vem para o almoço. É sobre o casaco de Alice que estou tentando lhe falar. Você deve se lembrar dela." A memória esburacada do marido era outra fonte de irritação, e, embora ela lhe lembrasse que lá em Greenwich Village eles tinham visto com frequência Arthur e Alice Severn, chegaram até a receber o casal em sua casa, ele fingiu não conhecer aquele nome. "Não importa", ela suspirou. "Só vou dar uma olhada no casaco. Tenha um bom almoço, querido."

 

Mais tarde, ao se aborrecer com as ondas precisas de seu cabelo retocado, a sra. Chase admitiu que realmente não havia motivo para o marido se lembrar dos Severn com tanta clareza. Deu-se conta disso quando, com sucesso parcial, tentou evocar uma imagem de Alice Severn. Pois bem, quase conseguiu: uma mulher rosada e desengonçada, com menos de trinta anos, que sempre dirigia uma caminhonete, acompanhada por um setter irlandês e por duas bonitas crianças de cabelos louros avermelhados. Dizia-se que o marido dela bebia; ou seria o contrário? Além disso, eles eram considerados maus pagadores, ao menos a sra. Chase lembrou de certa vez ter ouvido falar de dívidas incríveis, e alguém, teria sido ela própria?, descrevera Alice Severn como simplesmente boêmia demais.

 

Antes de se mudarem para a cidade, os Chase mantiveram uma casa em Greenwich Village, que era um tédio para a sra. Chase, porque ela detestava os sinais de natureza dali e preferia o divertimento das vitrines de Nova York. Em Greenwich Village, em algum coquetel, na estação de trem, vez por outra encontravam os Severn, e não passou disso. Nem éramos amigos, ela concluiu, um tanto surpresa. Como costuma acontecer quando de súbito se ouve falar de uma pessoa do passado, e alguém conhecido num contexto diferente, ela fora induzida a uma sensação de intimidade. Mas, pensando melhor, parecia extraordinário que Alice Severn, a quem ela não via fazia mais de um ano, tivesse telefonado oferecendo à venda um casaco de vison.

 

A sra. Chase parou na cozinha a fim de pedir sopa e salada para o almoço: jamais lhe ocorria que nem todo mundo estava de dieta. Encheu um decantador de xerez e o levou consigo até a sala de estar. Uma sala verde-esmeralda, o mesmo gosto excessivamente juvenil das roupas dela. O vento fustigava as janelas, pois o apartamento ficava num andar alto, com uma vista de avião do centro de Manhattan. Colocou um disco do Linguaphone na vitrola e sentou-se em posição não relaxada, ouvindo a voz forçada pronunciar frases francesas. Em abril, os Chase planejavam comemorar o vigésimo aniversário de casamento com uma viagem a Paris; por essa razão, ela começara as aulas do Linguaphone, e, por essa razão também, cogitou no casaco de Alice Severn: seria mais prático, achou, viajar com um vison de segunda mão; mais tarde, poderia mandar transformá-lo numa estola.

 

Alice Severn chegou alguns minutos mais cedo, uma casualidade decerto, pois não era uma pessoa ansiosa, pelo menos a julgar por seus modos contidos e cautelosos. Usava sapatos comuns, um casaco de tweed que já vira dias melhores, e carregava uma caixa amarrada com um barbante puído.

 

"Fiquei encantada quando você telefonou esta manhã. Deus sabe, faz um tempão que não nos vemos, mas, claro, não vamos mais a Greenwich Village."

 

Embora sorrindo, sua visita permaneceu calada, e a sra. Chase, que assumira um tom efusivo, ficou um tanto sem graça. Quando as duas sentaram, os olhos dela apreenderam a mulher mais jovem, e ocorreu-lhe que, se tivessem se encontrado por acaso, poderia não tê-la reconhecido, não porque sua aparência tivesse se alterado tanto, mas porque a sra. Chase se deu conta de que nunca antes olhara atentamente para ela, o que parecia estranho, pois Alice Severn era alguém que chamava a atenção. Se fosse menos comprida, mais compacta, as pessoas poderiam ignorá-la, talvez reparando que era atraente. Mas, do jeito que era, com seus cabelos vermelhos, a impressão de distância nos olhos, o rosto sardento, outonal, e as mãos magras e fortes, havia nela certa peculiaridade difícil de ignorar.

 

"Xerez?"

 

Alice Severn assentiu com a cabeça, que, equilibrada precariamente sobre o pescoço fino, parecia um crisântemo pesado demais para seu talo.

 

"Cream-cracker?", ofereceu a sra. Chase, observando que alguém tão esguio e alongado devia comer feito um cavalo. Sua frugalidade de sopa e salada despertou-lhe um súbito receio, e ela contou a seguinte mentira: "Não sei o que Martha está preparando para o almoço. Sabe como é difícil, em cima da hora. Mas conte, querida, o que está acontecendo em Greenwich Village?".

 

"Em Greenwich Village?", ela disse, entrecerrando as pálpebras, como se uma luz inesperada refulgisse na sala. "Não tenho a menor idéia. Não moramos mais lá faz algum tempo, seis meses ou mais."

 

"Oh?", fez a sra. Chase. "Veja como estou desatualizada. Mas onde você está morando, querida?"

 

Alice Severn ergueu uma das mãos ossudas e desajeitadas e apontou para a janela. "Lá fora", respondeu, de forma estranha. Sua voz era clara, mas tinha um tom de esgotamento, como se ela estivesse pegando um resfriado. "Quer dizer, no centro. Não gostamos muito, sobretudo Fred."

 

Com a mínima inflexão, a sra. Chase perguntou: "Fred?", pois lembrava perfeitamente que Arthur era o nome do marido da visita.

 

"Sim, Fred, meu cachorro, um setter irlandês, você deve tê-lo visto. Está acostumado com espaço, e o apartamento é tão pequeno, só um quarto."

 

Dias difíceis deviam ter sobrevindo para que todos os Severn estivessem morando num único quarto. Por mais curiosa que fosse, a sra. Chase se controlou e não indagou a respeito do assunto. Provou seu xerez e disse: "Claro que me lembro do seu cachorro; e das crianças: todas as três cabecinhas vermelhas espiando pela janela da caminhonete".

 

"As crianças não têm cabelos vermelhos. São louras, como Arthur."

 

A correção, com tão pouco senso de humor, provocou na sra. Chase uma risadinha intrigada. "E Arthur, como vai?", perguntou ela, preparando-se para se levantar e conduzir a visita até o almoço. Mas a resposta levou-a a sentar-se de novo. Sem mudança alguma na expressão placidamente desornada de Alice Severn, consistiu apenas em: "Mais gordo".

 

"Mais gordo", ela repetiu após um momento. "A última vez que o vi, acho que só uma semana atrás, estava atravessando uma rua feito um pato. Se ele tivesse me visto, eu teria de rir: ele sempre foi tão preocupado com a aparência."

 

A sra. Chase pôs as mãos na cintura. ''Você e Arthur. Separados? É simplesmente incrível."

 

"Nós não estamos separados." Ela esfregou as mãos no ar como que para remover teias de aranha. "Eu o conheço desde criança, desde que nós dois éramos crianças: você acha", disse tranqüilamente, "que poderíamos algum dia estar separados um do outro, sra. Chase?"

 

O uso exato de seu nome pareceu afastar a sra. Chase; por um momento, ela se sentiu isolada, e, ao caminharem juntas até a sala de jantar, imaginou uma hostilidade circulando entre elas. Possivelmente foi a visão das mãos desajeitadas de Alice Severn tentando abrir um guardanapo que a persuadiu de que aquilo não era verdade. Exceto por algumas palavras corteses, elas comeram em silêncio, e ela começava a temer que não haveria nenhuma história.

 

Enfim Alice Severn disse abruptamente: "Na verdade, nos divorciamos em agosto passado".

 

A sra. Chase esperou; depois, entre a descida e a subida de sua colher de sopa, disse: "Que horrível. Por causa da bebedeira dele?".

 

"Arthur nunca bebeu", ela respondeu com um sorriso agradável mas espantado. "Ou melhor, nós dois bebíamos. Por prazer, não por vício. Era gostoso no verão. Costumávamos descer até o riacho, colher hortelã e preparar um coquetel de uísque com hortelã em enormes potes de frutas. Às vezes, nas noites quentes em que não conseguíamos dormir, enchíamos de cerveja gelada as garrafas térmicas e acordávamos as crianças, depois íamos de carro até a praia; é divertido beber cerveja e nadar e dormir na areia. Bons tempos; lembro que uma vez ficamos lá até o sol raiar. Não", disse, alguma idéia séria retesando sua face, "eu vou lhe contar. Sou quase uma cabeça mais alta que Arthur, e acho que isso o preocupava. Quando éramos crianças, ele sempre achou que me ultrapassaria, mas isso nunca aconteceu. Ele detestava dançar comigo, e olha que ele adora dançar. E gostava de um monte de gente ao redor, gente baixinha de voz alta. Não sou assim, preferia que ficássemos só os dois. Nesse aspecto eu não era agradável para ele. Pois bem, lembra de ]eannie Bjorkman? Aquela de rosto redondo e cabelo encaracolado, mais ou menos da sua altura".

 

"Lembro, sim", respondeu a sra. Chase. "Esteve no comitê da Cruz Vermelha. Horrorosa."

 

"Não", replicou Alice Severn, refletindo. "Jeannie não é horrorosa. Éramos ótimas amigas. O estranho é que Arthur costumava dizer que a odiava, mas tenho a impressão de que sempre foi louco por ela, com certeza agora é, e as crianças também. Eu queria que as crianças não gostassem dela, embora devesse estar feliz por gostarem, já que têm de viver com ela."

 

"Não acredito: seu marido casado com aquela horrorosa da Bjorkmanl"

 

"Desde agosto."

 

A sra. Chase, fazendo primeiro uma pausa para sugerir que fossem tomar o café na sala de estar, disse: "É deprimente você estar vivendo sozinha em Nova York. Pelo menos devia ter ficado com os filhos".

 

"Arthur quis ficar com eles", respondeu Alice Severn simplesmente. "Mas não estou sozinha. Fred é um de meus melhores amigos."

 

A sra. Chase gesticulou, impaciente: não gostava de fantasias. "Um cachorro. Loucura. A verdade é que você é uma tola: se algum homem tentasse me passar para trás, eu cortava os pés dele em pedacinhos. Vai ver que você nem exigiu", hesitou, "uma pensão."

 

"Você não entende, Arthur não tem dinheiro algum", disse Alice Severn com o desânimo de uma criança que descobriu que os adultos, afinal, não são muito lógicos. "Teve até de vender o carro, e vai e volta a pé da estação. Mas, sabe, acho que está feliz."

 

"O que você precisa é de um bom beliscão", disse a sra. Chase como se estivesse pronta para realizar o serviço.

 

"É Fred que me preocupa. Está acostumado com espaço, e, com uma única pessoa, não sobram muitos ossos. Você acha que, quando terminar meu curso, consigo arrumar um emprego na Califórnia? Estou estudando administração, mas não sou muito rápida, sobretudo na máquina de escrever, meus dedos parecem detestar aquilo. Deve ser como tocar piano, você tem de aprender quando é jovem." Ela olhou curiosa para suas mãos, suspirando: "Tenho aula às três; importa-se se lhe mostrar o casaco agora?".

 

A festividade de coisas saindo de uma caixa em geral alegrava a sra. Chase, mas, quando ela viu a tampa ser retirada, um mal-estar melancólico dominou-a.

 

"Pertenceu à minha mãe."

 

Que deve ter usado essa tralha durante sessenta anos, pensou a sra. Chase, encarando um espelho. O casaco dava nos seus tornozelos. Ela passou a mão pela pelagem opaca, quase sem pêlos: estava mofada, fedida, como se tivesse permanecido num sótão à beira-mar. Fazia frio dentro do casaco, ela estremeceu, ao mesmo tempo um rubor aqueceu-lhe o rosto, pois foi aí que notou que Alice Severn olhava sobre seus ombros e na expressão dela havia uma expectativa tensa, humilhante, antes inexistente. Quanto à solidariedade, a sra. Chase praticava a parcimônia: antes de oferecê-la, tomava a precaução de amarrar um barbante nela para, em caso de necessidade, pegá-la de volta. Quando ela fitou Alice Severn, porém, foi como se o barbante tivesse sido cortado, e dessa vez ela se confrontou com as obrigações da solidariedade. Hesitou mesmo assim, procurando uma escapatória, mas seus olhos colidiram com aqueles outros olhos, e ela percebeu que não havia nenhuma. A lembrança de uma palavra das aulas do Linguaphone facilitaram uma pergunta: "Combien?".

 

"Isso não vale nada, não é?" Havia confusão na pergunta, não franqueza.

 

"Não, não vale", ela respondeu, cansada, quase irritada. "Mas pode ter alguma utilidade." Não repetiu a pergunta; estava claro que estipular o preço fazia parte de sua obrigação.

 

Ainda arrastando o incômodo casaco, dirigiu-se a um canto da sala onde havia uma escrivaninha e, com movimentos nervosos e ressentidos, preencheu um cheque da sua conta pessoal: preferia que o marido não soubesse. Mais que a maioria, a sra. Chase detestava o sentimento de perda; uma chave fora do lugar, uma moeda caída, despertavam sua consciência do roubo e das trapaças da vida. Sensação semelhante acompanhou-a quando entregou o cheque a Alice Severn. Esta, dobrando-o sem olhar para ele, enfiou-o no bolso do traje. Era um cheque de cinqüenta dólares,

 

"Querida", disse a sra. Chase, carrancuda com a falsa preocupação, "você tem de telefonar e contar como andam as coisas. Não deve se sentir solitária."

 

Alice Severn nem agradeceu, e na porta não disse "tchau". Em vez disso, segurou uma das mãos da sra. Chase e deu um tapinha nela, como se estivesse delicadamente recompensando um animal, um cachorro. Fechando a porta, a sra. Chase fitou sua mão, aproximou-a dos lábios. A sensação da outra mão ainda perdurava, e ela continuou ali, esperando que passasse: logo sua mão ficou bem fria de novo.

 

Truman Capote

Retirado de Trapiche dos outros

publicado às 21:22

 

Dificilmente um Nobel da paz poderá encontrar mais consenso que o de este ano, numa altura em que uma vez mais o fanatismo religioso ameaça o futuro das mulheres muçulmanos do mundo, Malala é um símbolo da luta pela educação e pela liberdade.

 

Kailash Satyarthi, que partilha o prémio com Malala, é um activista dos direitos das crianças,  ele combate o trabalho infantil e escravo no seu país e no mundo e só o dá por concluído quando consegue cada criança resgatada volta à escola onde é o seu lugar.

 

Este é um Nobel que para além de Malala e Kailash, reconhece o esforço despendido por todos os que todos os dias lutam pelo futuro do mundo, porque só com educação se conseguirá melhorar o futuro da humanidade.

 

Jorge Soares

 PS: Número de dias sem gritar - 7

publicado às 21:34

"tuga timings!!!"

por Jorge Soares, em 09.10.14

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O termo apareceu-me hoje a meio da tarde via email, uma mãe contava o seguinte:

 

"Aguardamos apenas que o tribunal informe a conservatória para o podermos fazer. E é neste "apenas" que reside a questão: ando há semanas a ligar para a conservatória indicada pelo tribunal a perguntar se já receberam a nossa informação e, até há pouco quando fiz o último contacto, nada. Já fomos pessoalmente ao tribunal por duas vezes perguntar quando fariam a comunicação à conservatória - fomos informados que seria o mais breve possível que "davam prioridade a estes casos, vá ligando para a conservatória a perguntar" e que no máximo na semana seguinte deveria estar tudo tratado. Não está. Infelizmente, em relação ao atraso do tribunal, não há aqui nada de surpreendente. Acabamos por nos habituar. Agora o que me tem custado muito a engolir é a arrogância, a deselegância e mesmo a forma desagradável com que me atendem da conservatória. Tenho ligado uma vez por semana. Verificam que não têm a informação  e invariavelmente sugerem-me, com maus modos, que ligue para a conservatória do assento de nascimento  ou que vá perguntar ao tribunal. Hoje o argumento foi "porque estou a ver que a senhora está com muita pressa em tirar os documentos", seguido de "e porque é que está a ligar para aqui? Sabe quantas conservatórias há nesta zona?"

 

Ao testemunho desta mãe seguiram-se outros mais ou menos nos mesmo termos e a Rita, que já passou pelo mesmo, terminou o seu comentário com:

 

Vai chegar, embora demore os ´tuga timings!!!

 

Percebo a ideia da Rita, os "tuga timing" é a medida normal para a demora dos processos burocráticos neste país, aqueles que ninguém sabe bem quanto tempo demoram, tanto podem demorar uma semana como 3 ou 4 meses, também ninguém consegue explicar porque é que demora tanto, mas lá está, como sugere a Rita, mais tarde ou mais cedo termina por acontecer.

 

O mais estranho é que pelo que percebi dos vários testemunhos, podem ou não ser abreviados, tudo depende da nossa capacidade de chatearmos os funcionários na medida certa sem que eles se chateiem connosco, da nossa capacidade de pedinchar, do bom ou mau humor de quem nos atende naquele dia e sobretudo, da nossa capacidade de arranjarmos forma de alguém naquele dia fazer o jeitinho de procurar saber o que se passa com os documentos... que podem estar perdidos no tribunal, na repartição na que estamos ou noutro sitio qualquer.

 

A verdade é que já estamos todos resignados aos "tuga timings", mas não devíamos, não há motivo nenhum para que após uma sentença em tribunal os documentos não estejam de imediato ao dispor dos pais para que possam registar os seus filhos, se basta um papel do hospital para registar um bebé, porque é que não basta um papel do tribunal para registar um filho adoptado?

 

Quanto tempo demora a digitalizar uma sentença e enviar por email para uma conservatória? E porque é que estas coisas não tem um prazo máximo para estarem prontas? Se calhar tem, mas é em "tuga Timing"...

 

Tenho um colega que há coisa de um ano teve de renovar a carta de condução, está desde então à espera que ela chegue, tem um papel que vai carimbando que diz que pode conduzir, mas ninguém lhe sabe explicar quando chegará a carta... lá está tuga timings.... Já repararam que se pedirmos um cartão de crédito os bancos não demoram mais que dois ou três dias na entrega?... como é que imprimir uma carta de condução demora mais de um ano?  "Tuga Timings"

 

Depois perguntamos-nos como é que este país não passa de um atraso de vida.

 

Jorge Soares

 

PS:Número de dias sem gritar - 6

publicado às 22:53

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Imagem do Público 

 

 “Os professores mantêm-se, disse, e como é evidente os professores mantêm-se até à nova lista de colocação corrigida, que tacitamente revoga a anterior. É a lei..... Eu digo [a 18 de Setembro] os professores mantêm-se, não digo manter-se-ão. ”

 

Um problema de português, foi assim que Nuno Crato explicou a diferença entre o que todo o país tinha percebido do que ele disse no célebre dia do pedido de desculpas e o que realmente aconteceu... foi um problema de português, onde nós percebemos "os professores mantém-se nos lugares em que estão e será encontrada uma solução para os erros" o que ele queria dizer era "os professores mantém-se até lá chegarem outros e irem para o desemprego"

 

Se isto não é atirar arei para os olhos de deputados, professores e de todo o país, eu não sei o que será. Será que depois disto alguém, para além de Passos Coelho pode confiar numa palavra que saia da boca deste senhor?

 

Passou um mês desde o inicio das aulas, para além dos milhares de alunos que continuam sem professores, há agora também dezenas  de professores que viram de um dia para o outro a sua vida andar para trás e um mundo de incertezas onde antes havia emprego e certezas... e ante tudo isto o ministro tenta entreter o país com jogos de palavras.

 

Gostava de perceber qual o jogo de palavras que explica o facto de um mês depois de começarem as aulas a minha filha continuar sem professor de matemática? Ou o facto de continuarem a haver escolas que só abrem metade do dia porque para além de não haver professores, não há auxiliares!

 

Na verdade são precisos jogos de palavras porque tudo isto tem um nome, TRAPALHADA, tudo isto é a maior trapalhada dos últimos anos, não há memória de um inicio de ano escolar que tenha corrido tão mal como este, tudo isto denota uma enorme incompetência e desorganização e que faz o ministro? Jogos de palavras!.. e um pouco de vergonha, não?

 

Jorge Soares

 

Ps: Número de dias sem gritar - 5

publicado às 21:54



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