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Conto: O derradeiro eclipse

por Jorge Soares, em 18.09.10

O derradeiro eclipse

 

Justinho Salomão era ratazanado pela dúvida sem método. O homem sofria de ser marido, lhe pesavam as frias sombras da desconfiança. A mulher, Dona Acera, é linda de fazer crescer bocas, águas e noites. Devorado pelo ciúme, Justinho emagrecia a pontos de tutano. Lastimagro, cancromido, ele para se enxergar precisava procurar-se por todo o espelho. Justinho fazia comichão às pulgas. Um dia, o padre o avisou à saída da missa:
- “Seja prestável na atenção, Justinho: sua alma é como um fumo que não tem lugar onde caiba”.
Raios picassem o padre que nunca falava direito. O que o sacerdote sabia era do domínio incomum: Acera era demasiado mulher para esposa. Justinho suspeitava mais dos argumentos que dos factos. Seria a esposa mais desleal que um segredo? A resposta era sombra sem luz nem objecto. Em véspera de viagem, a suspeição do marido se agravava. Desta vez, um longo serviço de visitações o vai obrigar a geográfica ausência. Acera recebe, tristonha, a notícia:
- “Quanto tempo você me vai sozinhar?”
Um mês. A mulher contorce o bâton, abana as mechas. Até uma lágrima lhe crocodileja a pálpebra. O marido ainda mais se aflige perante tanto inconsolo. Será verdade ou conveniência de fingimento? Quem, tão novo, guelra tão ensanguentada, pode se aguentar em guardos de fidelidade? Na véspera de partir, o marido se decidiu certificar em garantia de lealdade. Primeiro se dirigiu à Igreja e solicitou socorro do padre português. O religioso torce as mãos, reticente e, como era hábito, barateou filosofia:
- “Bem, não sei. Para cruzar as pernas é preciso que haja duas...
- “Duas quê?
- “Duas pernas, ora essa”.
E prosseguiu divaguando, água em líquidos carreiros. Justinho esperava que o sacerdote o tranquilizasse. Lhe dissesse, por exemplo: vai em paz, você está bem casado, mais anelado que Saturno. Mas não, o padre ondulava a testa de suposições.
- “Não sei, não. Quem mais espreita não é o próprio sol?
- “Explique-se melhor, senhor padre.
- “Quer que seja mais claro? Me responda, então: onde o chão está mais limpo não é em casa de mortos?”
Justinho não respondeu. Voltou costas e saiu da igreja. Ainda se afastava e a voz irada do padre se faz ouvir:
- “Já sei para onde vais, criaturazita. Vais ter com o feiticeiro! Mas verás o que os meus poderes, aliás os poderes divinos, irão fazer com esse bruxo tropical!”
Um arrepio ainda atravessou Justinho. Mas ele não toldou passo no caminho para o feiticeiro e pediu que lhe assegurasse. Heresia bater nos ambos lados da porta? Se um mortal tem mais que um deus-pai não pode ter mais que uma crença?
- “Isso não posso. Vontade de mulher está acima dos meus poderes. Posso, sim, destinar castigo nos abusadores.
- “E como?
- “Hei-de tratar sua casa”.
E foi executado o tratamento: uma pequena cabaça à entrada da residência de madeira e zinco. Desrespeitoso que entrasse haveria de sofrer muitas consequências. O marido ainda tem acanhamento na consciência:
- “Eles... eles irão morrer?”
O feiticeiro ri-se. O que iria suceder eram inchaços e gases, tudo inflando as entranhas do culposo intrometedor. No final dos serviços e depois de saldadas as contas, o feiticeiro hesita no momento da despedida:
- “Você, antes de mim, consultou o senhor padre? E ele o que disse de mim?”
Justinho subiu as omoplatas, fosse um assunto superior a suas competências. O feiticeiro virou costas e se afasta, enquanto comenta:
- “Esse padre ainda vai chorar como a galinha. Conhece a história da galinha que comeu o colar das missangas só para a outra galinha não usar?”
Passaram-se dias e Justinho lá partiu. A viagem demora mais que ele pretende. Quando regressa, a mulher está à espera dele, à entrada. Vestido do gosto dele, penteada a presente, corpo todo na conveniência do marido. Até o botão cimeiro está desempregado, distraído sobre o decote. Acera, toda ela, está às ordens da saudade dele. Se engolfinham, enredando pernas nos suspiros, confundindo lábios e suores, vidas e corpos.

 

Continua.

 

Mia Couto em Contos do Nascer da terra

Retirado de Contos de Aula

publicado às 21:00


2 comentários

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De Jorge Soares a 20.09.2010 às 22:51

É só esperar uma semaninha.. ou isso ou seguir o link :-)

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