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Porque: "A vida é feita de pequenos nadas" -Sergio Godinho - e "Viver é uma das coisas mais difíceis do mundo, a maioria das pessoas limita-se a existir!"
Imagem do Momentos e Olhares
Chamou-o para o botequim de sempre, onde ele bebia chope e ela coca-cola. E comiam juntos uma picanha na pedra, quase ao ponto.
Viviam juntos há dezoito anos. Muito amor, sexo e... a empresa. Há algum tempo, no meio deles , rachando a cama em duas, revirando os lençóis, empurrando cada corpo para o máximo de lateral possível: a EMPRESA, porra! Ele na esquerda; ela na direita. E nenhuma partida.
Ela passava a vida no MOTI BANCO. Reunião pra cá, festinha pra lá; livro daqui, cd dali , depois me empresta aquele outro? ; saidinha após o expediente com a turma do uisquinho happy try — e ela não bebia. Mariposa era uma mulher séria, muito. Ele, Pacífico Ouriço, é que deitava e rolava nos vícios: cigarro, bebida . Mulheres não: há dezoito anos só dormia com a Mariposa. Aliás, Pacífico tinha vícios coisíssima nenhuma. Mariposa é que era certinha demais. A mulher não fumava, não bebia, não cheirava... nem fedia, quase não falava, mas comia muito, muitíssimo e — pasmem! — tinha o corpo impecável. Nem um pouquinho de gordura entornando no lugar errado.
Ele sempre confiara nela. Uma mulher daquelas jamais o trairia. Às vezes tinha ciúme, é verdade. Mas se sentia culpado, maldoso até. Ela casara virgem, cara! Sempre dele, só dele. Desconfiar de quê?
Mas voltemos ao botequim. Ela, exatamente agora, está dizendo para Pacífico:
— Sabe, amorzinho, preciso que você saiba: estou saindo com o Gregório.
— Estão fazendo algum trabalhinho extra?
Parênteses: Gregório era colega de trabalho de Mariposa e amigo do casal. Sua mulher, Hermenilda, era pouco vista.
— Não , Pacífico. Tô dormindo com ele.
— Realmente devem ficar cansados, né amor ? A EMPRESA suga tanto ! Têm mesmo de dar uma descansada para agüentar trabalhar assim das oito da manhã às dez da noite. E quase todo dia!
Pudica (ah!), Mariposa não rasgava o verbo, como se diz vulgarmente. Continuou, discreta como sempre :
— Benzinho, tô dormindo e fazendo tudo o mais.
— Tudo o mais o quê, amor? — perguntou Ouriço.
— Tudo o que homem e mulher costumam fazer na cama — respondeu ela.
Silêncio total. Ele dá uma bicadinha no décimo primeiro chope da noite. Não está bêbado, apenas mais leve, levíssimo. Ultralaite, eu diria. E ela ali, firme na coquinha. E lúcida.E gostosa como sempre. E honesta como sempre. E firme, quase fria, como sempre.
E como sempre — epa! me distraí — come sempre — epa! outra vez me distraí. Escrevendo de novo . Ela comendo sempre — agora sim! acertei no alvo — a picanha com parcimônia, a ponto de deixá-lo envergonhado com sua avidez de glutão incorrigível.
Professor de Filosofia, acostumado a fazer joguinhos intelectivos com seus alunos, Pacífico começa a dizer, sem mais nem pra quê :
— Mariposa, Maposinha, tudo é nada. As b... as pontas se encontram. Por isso o tudo vira nada, que é nada e também tudo. Entendeu?
E, sem esperar resposta, continuou , depois de coçar a testa com insistência:
— Maposinha, se o nada...
— Pacífico, meu amor, tô ficando cansada. Vamos embora.
Ele, que jamais contrariava a mulher, foi largando o décimo segundo chope sem beber, deixando dinheiro suficiente com gorjeta gorda. Pedir conta vai demorar! Maposinha precisa ir, precisamos ir.
E saíram. Ele passou o braço na cintura dela. Passaram por Gregório, que vinha andando pela rua. Pura coincidência. Respondeu ao boa-noite do colega da mulher. Aliás, responderam. Passaram pelo porteiro do prédio onde moravam. Passaram pela porta do apartamento. Passaram para a cama. Ele passou tudo de novo em sua mente: Mariposa e Gregório transando... uau! Mulher tem cada uma. Pior que criança!
Antes de dormir, ele coçou e coçou a testa. Depois disse, dobrado em posição fetal:
— Cê tem cada uma, mulher!
E dormiram o sono dos justos, justíssimos em seus pijamas de medo.
Márcia Carrano
Retirado de Releituras