Estudo de Mulher. Rodolpho Amoedo, 1884.
Em dias comuns, ela era triste, como os pés sem sapatos. Seus olhos escureciam e ela torcia as mãos frias enquanto olhava para lugar nenhum.
Escorregava pelas paredes claras, pela mobilia cara, pela prataria. Girava pelo assoalho, os tapetes e as almofadas, até a porta da entrada que, naquele momento, não tinha intenção de abrir. Pela janela, os passos, os carros, as buzinas. A violencia sentida do tempo. Isabel tinha medo, muito medo de morrer cedo.
Tinha essa urgência firme, tão assustadora quanto a morte. Esperava sempre os raios e as trovoadas - queria sempre o movimento. Em dias comuns, tudo era muito simples. Tudo era rotina. O trabalho, o relógio, os vestidos. As manhãs, sempre plácidas, sempre cheia de certezas, tinham sempre muita luz. Isabel não gostava muito das manhãs.
Passava o dia inteiro esperando a noite cair. Era uma fã ardorosa de estrelas. São formas de luz muito discretas, tão pequenas e distantes e que escondem praticamente tudo. Isabel era um pouco assim. Só mostrava seu brilho no escuro.
No escuro. Quando nada mais se via, quando só se acendiam lampadas, estrelas e vagalumes, Isabel abria os olhos. Enxergava finalmente. Era quando sentia os espasmos, e tremia sem parar. Quando a abstinencia tomava conta de todos os poros e ela sabia que, então, tinha que levantar. Hora de chutar a poeira do guarda-vestido, de pintar a boca, as unhas, colocar os brincos. Hora da cinta-liga e dos espartilhos. Hora de por os saltos altos e sair.
No meio da rua, chamava-se Bela. Andava rápido e ria alto. Entrava e saia dos lugares, vivia cercada de gente, de vicios. Vivia cercada do mundo.
De dia, a contemplação. De noite, o desejo, uma imensa necessidade, um castigo. Era o sexo. Não podia ficar sem ele. Tinha que ser muito, e tinha que ser sempre. Nem precisavam pagar, mas ela era boa, e eles achavam justo. Não tinha prazer em negar nada à ninguém.
Bela era um apelido de infância que ela detestava. Era a mãe que a chamava desse jeito. Depois que ela sumiu, o apelido virou um fardo, uma obsessão. O pai passou a chamá-la assim, só para manter a presença da mãe em casa. Mas ela não estava ali porque não queria. Foi embora sem olhar para trás, e a deixou com o peso da ausencia nos ombros.
Isabel queria que Bela servisse para alguma coisa. E então pensou que podia ser isso. De dia, havia apenas a lembrança da Bela que o pai melancolico e bebado só enxergava de longe; De noite, ela podia ser Bela, e ser feliz. De noite, Bela gritava, mordia, dançava, e fazia tudo de caso pensado, consentido. De noite, era a mudança, o inferno, o paraíso, o pecado. Isabel adorava o pecado.
Era uma pena que a noite era só um interlúdio, um espaço entre horas...
Porque de dia, quando tudo voltava a ser comum, Isabel fechava o corpo, os olhos,as portas e os armários, e botava sua vida para dormir.