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Conto - Fundo de quintal

por Jorge Soares, em 22.06.13

Ana refez as contas no caderno à sua frente. Definitivamente, devia um dinheiro que não tinha, como todo mês. Não, como todo mês, não. Desta vez, devia uma soma maior ainda e, para piorar, já tinha pedido todos os empréstimos que podia a bancos e financeiras. Jogou o corpo sobre a única poltrona confortável que ainda restava na sala. Ali, ficaria por horas encarando o asfalto iluminado apenas pelo poste de luz enevoada. De vez em quando, um farol mostraria seus olhos marejados, mas logo a escuridão voltaria a engolir aquele rosto em desespero. Com os pensamentos consumidos pelo medo, ela pensava dia e noite no que seria dos dois filhos pequenos. Já no último mês, tinha cortado da lista os remédios que usava. Passara a ir ao posto de saúde para receber uma tira contada de comprimidos que lhe permitiam passar o mês. O remédio do posto não adiantava muito, mas era o único jeito de controlar o diabetes sem onerar o orçamento.

 

Ela sentia fome. Havia tanto tempo que não consumia leite e carne que nem se lembrava a última vez. Quando fazia um bife para os meninos, aproveitava a frigideira suja com o gosto da carne de segunda e esquentava naquela gosma cheirosa um pouco de arroz. Comia o prato acanhado junto com um ovo frito ou uma banana prata. Ah, as bananas! Baratas e matam a fome.

 

Durante a semana, levava os dois filhos para uma escola pública do bairro de manhã bem cedo e seguia a pé para o trabalho. Morava razoavelmente perto, mas chegava cansada. No escritório, entre uma atividade e outra, tomava um grande número de cafés cheios de açúcar que a mantinham desperta e com menos fome até o final da tarde.

 

No trabalho, tinha um truque.

— Aceita um biscoitinho de polvilho, Ana? — oferecia uma colega.

— Obrigada! Você sabe que eu não resisto a esse seu biscoito! — respondia, esforçando-se para não pegar o saco todo.

— Eu trouxe um bolo de laranja que está uma delícia! Come um pedacinho... — oferecia outra.

— Meu Deus, eu preciso fazer uma dieta! Mas, antes, vou provar esse seu bolo que está cheirando tanto. — disfarçava.

 

E assim seguia enganando o estômago até a hora do encontro marcado com o arroz, a banana e o ovo.

 

Naquela noite, sentada na sala, olhando o asfalto negro rajado pela luz do poste, ela se lembrava da mãe e dos tempos em que se permitia comer bem, viajar, comprar coisas.

 

— A pior pobreza é a pobreza envergonhada — disse-lhe a mãe, uma vez.

— Como é isso?

— Tem gente que perde tudo, menos a dignidade. Preferem morrer a pedir um centavo, um pedaço de pão.

— Isso é orgulho — ela replicara.

— Não, não é. Aprenderam que quem pede é miserável, e não é fácil para ninguém se admitir miserável.

— Orgulho. E do pior tipo. — insistira.

 

— Ana, para quem já nasce pobre talvez seja mais fácil pedir ou aceitar. Mas você consegue imaginar o que significa para uma pessoa que já teve de tudo ter que pedir um pouco a cada um?

 

Nunca havia imaginado. Até agora. Ninguém sabia da sua situação. O marido tinha morrido três anos atrás, deixando para ela os filhos, a vida complicada e uma casa velha. Quando quis vender a casa, esbarrou na realidade: não valia nada. Ia tirar o teto dos filhos a troco de uns três ou quatro meses de aparente tranquilidade. Foi quando tomou o primeiro empréstimo. Lembrou dos cartões sem crédito, jogados no fundo de uma gaveta da cozinha. Lembrou também que, na véspera, havia usado a última folha do talão de cheques. O banco lhe negara outro talão.

 

Sem sono, saiu para o terreno atrás da casa, onde brinquedos sujos de terra faziam companhia a uma pequena horta. Pelo menos ali havia terra para plantar um ou outro vegetal que servia de alimento para os filhos. Junto a um muro alto, bem no fundo do terreno, um quartinho fechado, onde ela guardava coisas antigas em um guarda-roupa pequeno. Sobre uma cama de solteiro, ainda em bom estado, quadros antigos, duas malas escuras — onde eram guardadas as lembranças do marido e dos pais —, e algumas poucas caixas cheias de papéis de carta estampados, que ela havia colecionado enquanto havia sido possível. Sempre achou lindas as texturas, as cores e os desenhos de flores, pássaros, crianças e balões colocados nos cabeçalhos ou nos rodapés das folhas, como se fossem guardiães das histórias que alguém viria a escrever.
Preciso limpar isto aqui. Se eu conseguir jogar fora as coisas sem utilidade, acho que consigo alugar este quarto para alguém, pensou, olhando ao redor. Animada pela ideia de fazer algum dinheiro, passou a noite pensando nos detalhes. Pela manhã, antes de ir para o trabalho, desinteirou sem titubear o dinheiro da luz e pagou um classificado barato, espremido:    

 

Alugo quartinho dos fundos com cama de solteiro/guarda-roupa. Banheiro compartilhado com a casa. APENAS MOÇAS OU SENHORAS. 

 

          De madrugada, pela primeira vez, em meses, ocupou-se de outra coisa que não o asfalto. Com as mãos rápidas, esvaziou o quartinho, limpou paredes, chão e teto. No dia seguinte, na volta do trabalho, conseguiu fiado um galão de tinta branca, verniz, um rolo de cabo, um alicate e pincéis de vários tamanhos. Dedicou-se à pintura e à arrumação até que amanheceu o sábado, dia em que esperava candidatas. Na cama de solteiro, colocou um jogo de lençóis que estava guardando para os filhos usarem no Natal, rezando para que ninguém prestasse a atenção ao desenho de renas. Antes de sair, jogou no chão, ao lado da cama, o tapetinho persa falso que havia tirado do seu quarto e o travesseiro macio que também lhe pertencera até a véspera. A título de requinte, pendurou a chave do quartinho num chaveiro bonito que a empresa dera de presente aos funcionários no início do ano. Queria impressionar as moças e senhoras.

 

Às quatro e vinte da tarde, nenhuma candidata havia aparecido. Os meninos brincavam na vizinha, como todos os sábados, e de lá só voltariam depois de compartilhar um lanche farto com a filha do casal. Com a desculpa de que a garotinha precisava companhia, os dois compreendiam a miséria de Ana e ajudavam sem fazer alarde. O que será que eu fiz de errado? — pensou, retorcendo as mãos e pensando nas moças e senhoras que não tinham aparecido. Desesperada pelo dinheiro investido, sentou-se na cama de lençóis de rena com o jornal do dia entre as mãos e chorou sem freios toda a sua desgraça. Quando terminou, soluços suspirados e uma dor de cabeça terrível lhe faziam companhia. Mecanicamente, pousou os olhos sobre o jornal molhado de lágrimas e avaliou o seu anúncio. Nenhum defeito. Preço justo. Bairro tranquilo. Não sabia mesmo o que tinha dado errado. Foi quando seus olhos desviaram-se para a direita, um pouco mais para o alto da página. Leu, curiosa, o anúncio que se destacava dentro de um retângulo grande, em negrito. Naquela noite, e na noite seguinte, ao invés da poltrona da sala, do mesmo asfalto negro, do mesmo poste e dos faróis ocasionais, Ana ocupou-se mais uma vez em fazer mudanças no quartinho dos fundos.

 

Segunda-feira, na hora do almoço, levou a um ourives no centro da cidade a correntinha de ouro com a medalha da Virgem que nunca saía do seu pescoço, as pulseirinhas de ouro das crianças, de quando eram pequenas, e quatro alianças grossas de casamento, também de ouro: a dela, a do marido e as de seus pais. Saiu apressada da loja para o banco, onde pagou as três contas vencidas do telefone que, por sorte, não eram assim tão altas. Depois, com o pouco que restou do já tão desfalcado dinheiro da luz, voltou ao jornal e colocou outro classificado.

 

Na sexta-feira à noite, após mentir à vizinha que precisava fazer hora extra e pedir-lhe que deixasse as crianças dormir em sua casa, sentou-se na cama do quartinho dos fundos, cheirando a sabonete e bala de hortelã. Ao seu lado, o rolo de pintar de cabo, os pincéis, o alicate e um martelo que usara para consertar e acrescentar algumas coisas ao aposento. Tudo brilhava imponente, com um novo polimento.

 

Por volta das 22 horas, o telefone sem fio, recém-adquirido, tocou pela primeira vez, produzindo um som engraçado, abafado pelas paredes agora revestidas com placas grossas de cortiça:

 

— É a Viuvinha? — perguntou uma voz ansiosa.

Enquanto respondia, sorriu e alisou sobre a cama os objetos reluzentes. Em seguida, voltou os olhos para as letras em negrito no jornal do dia:

 

Viuvinha fogosa!
Venha me conhecer!
 
Prazer com muita dor!
 
Recebo em casa, depois das 22h, em ambiente de total discrição. Apenas rapazes e senhores. Fone: 3232-3232

 

Cinthia Kriemler

Retirado de Samizdat

publicado às 21:53


1 comentário

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De energia-a-mais a 24.06.2013 às 11:32

Jorge, com um dia de atraso mas com votos sinceros de um bom aniversário, aqui deixo os parabéns e um abraço

Teresa

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