Um dia, teria eu 13 ou 14 anos, descobri este conto publicado nas páginas centrais de um jornal, comecei a ler e já não consegui parar, a seguir ao conto veio um livro, e depois desse, muitos outros livros, o conto fez-me descobrir o autor, um grande escritor, um dos maiores. Gabriel Garcia Marquez.
O rastro do teu sangue na neve.
Ao anoitecer, quando chegaram à fronteira, Nena Daconte notou que o dedo com a aliança de casamento continuava sangrando. O guarda-civil com a manta de lã sobre o chapéu de três pontas e verniz-charão examinou os passaportes à luz de uma lanterna de carbureto, fazendo um grande esforço para não ser derrubado pela pressão do vento que soprava dos Pireneus. Embora fossem dois passaportes diplomáticos em regra, o guarda levantou a lanterna para comprovar que os retratos se pareciam às caras. Nena Daconte era quase uma menina, com uns olhos de pássaro feliz e uma pele de melaço que ainda irradiava o sol do Caribe no lúgubre anoitecer de janeiro, e estava agasalhada até o pescoço com um abrigo de nucas de visom que não poderia ser comprado com o salário de um ano da guarnição inteira da fronteira. Billy Sánchez de Ávila, seu marido, que dirigia o automóvel, era um ano mais jovem que ela, quase tão belo, e usava um paletó escocês e um boné de jogador de beisebol. Ao contrário de sua esposa, era alto e atlético e tinha as mandíbulas de ferro dos valentões tímidos. Mas o que revelava melhor a condição de ambos era o automóvel platinado cujo interior exalava um hálito de animal vivo, como não se havia visto outro por aquela fronteira de pobres. Os assentos traseiros iam atopetados de maletas demasiado novas e muitas caixas de presentes que ainda não tinham sido abertas. Lá estavam, além disso, o sax-tenor que tinha sido a paixão dominante de Nena Daconte antes que sucumbisse ao amor contrariado de seu doce bandoleiro de balneário.
Quando o guarda devolveu seus passaportes carimbados, Billy Sánchez perguntou-lhe onde poderiam encontrar uma farmácia para fazer um curativo no dedo da sua mulher, e o guarda gritou-lhe contra o vento que perguntassem em Hendaya, do lado francês. Mas os guardas de Hendaya estavam sentados à mesa em mangas de camisa, jogando baralho enquanto comiam pão molhado em canecas de vinho dentro de uma guarita de vidro cálida e bem iluminada, e foi só olhar o tamanho e o tipo do automóvel para indicar-lhes com gestos que entrassem na França. Billy Sánchez buzinou várias vezes, mas os guardas não entenderam que os chamavam, e um deles abriu o vidro e gritou com mais raiva que o vento:
- Merde! Allez-vous-en!
Então Nena Daconte saiu do automóvel embrulhada no agasalho até as orelhas e perguntou ao guarda num francês perfeito onde havia uma farmácia. O guarda respondeu por costume com a boca cheia de pão que aquilo não era assunto dele, e menos com semelhante borrasca, e fechou a janela. Mas depois reparou com atenção na menina que chupava o dedo ferido embrulhada no resplendor dos visons naturais, e deve tê-la confundido com uma aparição mágica naquela noite de assombrações, porque no mesmo instante mudou de humor. Explicou que a cidade mais próxima era Biarritz, mas que em pleno inverno e com aquele vento de lobos talvez não houvesse uma farmácia aberta antes de Bayonne, um pouco mais adiante.
- É alguma coisa grave? - perguntou.
- Nada - sorriu Nena Daconte, mostrando o dedo com a aliança de diamantes em cuja ponta era levemente perceptível a ferida da rosa.
- É só um espinho.
Continua.... no próximo sabado.
Jorge