Saltar para: Posts [1], Pesquisa e Arquivos [2]



Conto: Retalhos místicos

por Jorge Soares, em 22.10.11

COXAS

Indisciplinadamente meu olhar passeia e sempre passeia por onde não devia, se por acaso existisse coisa que se devesse ou não. Meu olhar instigado pela imaginação, se desprende do real e se transporta desse mundo e dos outros que existirem, pois existem mundos muito mais do que esses permitidos. Posso ver o que quero quando crio. Aventura constante é o ato de inventar. Concretizar o abstrato por meio de algum sentido, como por exemplo, o sentido do olhar. O mundo enxergado é intenso e forçado ao silêncio. O não declarado domina. Apenas mirar o que o pensamento admitir, e legítimo será tudo. Assemelhar-se aos deuses ou mesmo ser um deles. Assombrar os mortais dispondo de seus corpos, alisando-lhes tudo com os olhos, tomando posse de seus instintos como se fossem nossos. Contar histórias enganosas, fatos acontecidos apenas no desejo da memória. Explicar os sons a partir da oitava nota, as cores além das presentes no espectro solar, as letras pelas que caíram fora do alfabeto. Com indecência ou modéstia olhar, não só com os olhos, mas com todos os sentidos, tudo e muito mais do que o cristalino puder desenhar.

 

Sonhos e propostas. Opção. Assisto ou não a esse espetáculo de coxas unidas e pernas controladas? Apesar de teu pudor teu gesto imita um falo. Olho e cobiço tudo que vejo para meu regalo. Quero. Você receptáculo eu projeção. Depois poderemos inverter nossos conceitos, nossa posição. Feito espelhos complementares serão duas superfícies lisas e iguais a refletir jogos ancestrais como se fossem novidades.

 

Convencionemos que não quero ver teu rosto. Quero teu busto. E quando desse modo te contemplo, acredito que o mundo ali está em teus mamilos rosados. (Fitarei só um deles para deixar o outro enciumado). A seguir recolherei tuas sensações em minhas pupilas e as distribuirei como uma benção, visando um mundo de sossego baseado na poesia carnal.

 

Meus olhos giram e gira teu corpo artesanado em curvas, definição absoluta do belo. Tua cintura atrai possibilidades fantásticas. Se mostrando assim você aquiesce a minha gula. Entende meu desejo alterado. Permite. Se deixa contemplar como uma escultura pagã, apontando-me o objetivo de minha insanidade.

 

Apenas alguns graus mais para esquerda está exposto teu traseiro. É ele uma porção de teu corpo para ser admirada de joelhos pela semelhança que trás com o altar das mais impróprias catedrais. Não concordo que esse teu pedaço seja só músculos e lipídios. É muito, bem muito mais. Trata-se de um retalho místico.

 

Dirijo meus olhos agora para teus acidentes frontais. Umbigo, púbis, buracos, depressões, caixas de ressonância dentro das quais se deveria gritar orações: - Te penetrarei por algum orifício imaginário, espécie de local por onde entra e sai o diabo.


E como de súbito e só com meu olhar conseguir teu repouso. Ali teu corpo molhado, extenuado, ofegante, cansado. Teu coração batendo. Enfim, uma mulher agradecida em minha frente, após o jogo de gente com gente.

 

Retalhos Místicos

Joyce Cavalccante  

 

Retirado de Joyce Cavalcante

 

publicado às 21:19

Mulher na maré baixa

 

Imagem Minha do Momentos e Olhares

 

Se eu fosse cega não poderia estar agora fazendo caretas ao sol. Nem enxergaria essa luz que em todos os janeiros ferem esta praia.

— Ei. Não faça sombra. Não tape meu sol, por favor. — Disse. E era voz de mulher, da mesma mulher que ainda há pouco considerava a possibilidade de ser cega.

— O sol não é só seu, dona. Mas eu ouvi ontem a senhora pedindo ao Zequinha pra passear na jangada dele — respondeu-lhe a voz de um homem. De um homem não. Digamos, de um homem bem jovem.

— E ele disse que não. Que não carregava muié pro mar — explicou, bem emburrada, imitando o falar do referido Zequinha.

— É. Ele num carrega não, mas eu carrego — adiantou-se logo o rapaz.

— E quem é você? — ela indagou àquele metido.

— Sou o filho dele, meu nome é Humberto.

— O meu é Alba.

— Eu já sei. Aqui todo mundo sabe de tudo.

Até aposto que estão fuçando minha vida. Fui o assunto da semana nesta vila de pescadores. Eles são tão engraçados. São tão diferentes do pessoal que eu conheço, julgou a moça. Ele foi se sentando. A areia, afinal, era pública. Abancou-se bem pertinho, querendo se chegar, já todo cheio das afinidades, já puxando conversa, já íntimo. Era doidinho para experimentar uma turista como aquela, uma dessas que aparecem de vez em quando pela vila. Todas muito formosas, vindas das cidades grandes. Se um dia conseguisse namorar com uma, ia ser tão bom.

Foi com essa intenção que começou a prosear, contar coisas sobre a vida dos pescadores, sobre o vaivém das jangadas, pois esperto, notou que Alba tinha um fraco por elas.

Ela ouvia com paciência, sem prestar muita atenção. Ali estava o primeiro nativo com quem travava amizade, e travar amizades era seu desejo. Tinha vindo para aquela vila com a esperança de conhecer gente despoluída, simples, quem sabe até um homem novo, puro, diferente dos outros que conhecera até o momento e que lhes davam enjôo. Alguém especial para lhe dar sentido à vida; sonho secreto que não larga as mulheres; a eterna perseguição da aventura do amor romântico.

 

Joyce Cavallcante

 

Retirado de http://www.joycecavalccante.com/ 

 

 

publicado às 22:01

Conto: Faz de conta – Martha Medeiros

por Jorge Soares, em 08.10.11

 

 

Não respondo teus e-mails, e quando respondo sou ríspido, distante, mantenho-me alheio: FAZ DE CONTA QUE EU TE ODEIO

 

Te encho de palavras carinhosas, não economizo elogios, me surpreendo de tanto afeto que consigo inventar, sou uma atriz, sou do ramo: FAZ DE CONTA QUE EU TE AMO.

 

Estou sempre olhando pro relógio, sempre enaltecendo os planos que eu tinha e que os outros boicotaram, sempre reclamando que os outros fazem tudo errado: FAZ DE CONTA QUE EU DOU CONTA DO RECADO.

 

Debocho de festas e de roupas glamurosas, não entendo como é que alguém consegue dormir tarde todas as noites, convidados permanentes para baladas na área vip do inferno: FAZ DE CONTA QUE EU NÃO QUERO.

 

Choro ao assistir o telejornal, lamento a dor dos outros e passo noites em claro tentando entender corrupções, descasos, tudo o que demonstra o quanto foi desperdiçado meu voto: FAZ DE CONTA QUE EU ME IMPORTO.

 

Digo que perdôo, ofereço cafezinho, lembro dos bons momentos, digo que os ruins ficaram no passado, que já não lembro de nada, pessoas maduras sabem que toda mágoa é peso morto: FAZ DE CONTA QUE EU NÃO SOFRO.

 

Cito Aristóteles e Platão, aplaudo ferros retorcidos em galerias de arte, leio poesia concreta, compro telas abstratas, fico fascinada com um arranjo techno para uma música clássica e assisto sem legenda o mais recente filme romeno: FAZ DE CONTA QUE EU ENTENDO.

 

Tenho todos os ingredientes para um sanduíche inesquecível, a porta da geladeira está lotada de imãs de tele-entrega, mantenho um bar razoavelmente abastecido, um pouco de sal e pimenta na despensa e o fogão tem oito anos mas parece zerinho: FAZ DE CONTA QUE EU COZINHO.

 

Bem-vindo à Disney, o mundo da fantasia, qual é o seu papel? Você pode ser um fantasma que atravessa paredes, ser anão ou ser gigante, um menino prodígio que decorou bem o texto, a criança ingênua que confiou na bruxa, uma sex symbol a espera do seu cowboy: FAZ DE CONTA QUE NÃO DÓI.

 

Martha de Medeiros

 

Retirados de Palavras Rabiscadas

publicado às 20:05

Conto: O Desbunde

por Jorge Soares, em 01.10.11

O Desbunde, Adélia Prado

 

 

Tinha, como direi, eu, que sou uma senhora a seu modo pacata e até pudica, uma, ou melhor, um derrièreesplendido. Não é preciso ser homem pra essas avaliações. Firme em definidos e perfeitos contornos, rebelde ao disfarce das saias e anáguas daquele tempo, inscrevia-se na cara de sua dona, que, movendo os olhos como as ancas, subia a rua em falsa pudicicia, apregoando-se: tenho. Os homens ficavam loucos. Eu era mocinha boba e escutei no armazém do Calixto ele dizer pro Teodoro, meu futuro marido, naquele tempo preocupado em fazer bodoques de goma: eh, ferro! O Vicente não vai dar conta daquela ali, não. É preciso muita saúde. Calixto falava com o Teodoro do que eu suspeitava serem os tesouros da Oldalisa e ela nem aí, toda toda, sobe e desce rua. Exatamente o que era me escapava, só podia ser coisa de homem e mulher. Felicitei-me por estar viva e participar de segredos tão  excitantes. O Vicente era muito magrinho, não jogava bola, não nadava, "não salientava em nada", o Vicente

 

Cisquim. Pois foi dele que a Raimunda — como o Calixto chamou ela naquele dia — gostou.  Casaram e tiveram pencas de filhos. O Calixto ficou chupando o dedo. Ser bonitão e dono de armazém não contou ponto pra ele. Pois é, falou o Teodoro, hoje, assim que botou o pé em casa: O que é a tecnologia, hein? Tecnologia? É o avanço da medicina. Teodoro falava era do avanço do tempo. Tou aqui matutando, disse ele, porque a Oldalisa escolheu o Vicente, não tem base. Tô vendo aquela dona pegando as compras no caixa e... Plim! Era ela, a velha senhora. A Oldalisa do Vicente? É. O Vicente estava junto? Não. Estava com duas alianças e um menino, neto dela com certeza. Será que o Vicente morreu da praga do Calixto? Acho que não, porque eu procurei o traseiro da Oldalisa e nada da olda, só mesmo a lisa, magra e murcha. Ter encontrado a Oldalisa expropriada de seu dote mais tentador deixou Teodoro bem filosofante sobre as agruras do corpo. Teria ele também sido um apaixonado da Oldalisa e eu corrido sérios riscos? Porque amor não olha idade, não é mesmo? Agora, daquela do escritório eu tive, medo não, por causa de meus outros poderes, tive inveja. A uma cintura de vespa seguia-se, instruída e fatal, o que a Oldalisa trazia com inocência. Batia à máquina, agarradinha no Teodoro, de saia justa e batom cor de sangue. O apelido dela na firma era Corrosiva, e foi Teodoro quem pôs. Se chamava Rosiva, a perigosa. Imagina o risco que eu corri.

 

Adélia Prado - Filandras - Editora Record - Rio de Janeiro, 2001, pág. 51.

 

Retirado de Releituras

publicado às 22:30

Conto: Hoje de madrugada

por Jorge Soares, em 24.09.11
Hoje de madrugada
O que registro agora aconteceu hoje de madrugada quando a porta do meu quarto de trabalho se abriu mansamente, sem que eu notasse. Ergui um instante os olhos da mesa e encontrei os olhos perdidos da minha mulher. Descalça, entrava aqui feito ladrão. Adivinhei logo seu corpo obsceno debaixo da camisola, assim como a tensão escondida na moleza daqueles seus braços, enérgicos em outros tempos. Assim que entrou, ficou espremida ali ao canto; me olhando. Ela não dizia nada, eu não dizia nada. Senti num momento que minha mulher mal sustentava a cabeça sob o peso de coisas tão misturadas, ela pensando inclusive que me atrapalhava nessa hora absurda em que raramente trabalho, eu que não trabalhava. Cheguei a pensar que dessa vez ela fosse desabar, mas continuei sem dizer nada, mesmo sabendo que qualquer palavra desprezível poderia quem sabe tranqüilizá-la. De olhos sempre baixos, passei a rabiscar ao verso de uma folha usada, e continuamos os dois quietos: ela acuada ali no canto, os olhos em cima de mim; eu aqui na mesa, meus olhos em cima do papel que eu rabiscava. De permeio, um e outro estalido na madeira do assoalho.

Não me mexi na cadeira quando percebi que minha mulher abandonava o seu canto, não ergui os olhos quando vi sua mão apanhar o bloco de rascunho que tenho entre meus papéis. Foi uma caligrafia rápida e nervosa; foi una frase curta que ela escreveu, me empurrando o bloco todo, sem destacar a folha, para o foco dos meus olhos: "vim em busca de amor" estava escrito, e em cada letra era fácil de ouvir o grito de socorro. Não disse nada, não fiz um movimento, continuei com os olhos pregados na mesa. Mas logo pude ver sua mão pegar de novo o bloco e quase em seguida me devolvê-lo aos olhos: "responda" ela tinha escrito mais embaixo numa letra desesperada, era um gemido. Fiquei um tempo sem me mexer, mesmo sabendo que ela sofria, que pedia em súplica, que mendigava afeto. Tentei arrumar (foi um esforço) sua imagem remota, iluminada; provocadoramente altiva, e que agora expunha a nuca a um golpe de misericórdia. E ali, do outro lado da mesa, minha mulher apertava as mãos, e esperava. Interrompi o rabisco e escrevi sem pressa: "não tenho afeto para dar", não cuidando sequer de lhe empurrar o bloco de volta, mas nem foi preciso, sua mão, com a avidez de um bico, se lançou sobre o grão amargo que eu, num desperdício, deixei escapar entre meus dedos. Mantive os olhos baixos, enquanto ela deitava o bloco na mesa com calma e zelo surpreendentes, era assim talvez que ela pensava refazer-se do seu ímpeto.

Não demorou, minha mulher deu a volta na mesa e logo senti sua sombra atrás da cadeira, e suas unhas no dorso do meu pescoço, me roçando as orelhas de passagem, raspando o meu couro, seus dedos trêmulos me entrando pelos cabelos desde a nuca. Sem me virar, subi o braço, fechei minha mão ao alto, retirando sua mão dali como se retirasse um objeto corrompido, mas de repente frio, perdido entre meus cabelos. Desci lentamente nossas mãos até onde chegava o comprimento do seu braço, e foi nessa altura que eu, num gesto claro, abandonei sua mão no ar. A sombra atrás de mim se deslocou, o pano da camisola esboçou um vôo largo, foi num só lance para a janela, tinha até verdade naquela ponta de teatralidade. Mas as venezianas estavam fechadas, ela não tinha o que ver, nem mesmo através das frinchas, a madrugada lá fora ainda ressonava. Espreitei um instante: minha mulher estava de costas, a mão suspensa na boca, mordia os dedos.

Quando ela veio da janela, ficando de novo à minha frente, do outro lado da mesa, não me surpreendi com o laço desfeito do decote, nem com os seios flácidos tristemente expostos, e nem com o traço de demência lhe pervertendo a cara. Retomei o rabisco enquanto ela espalmava as mãos na superfície, e, debaixo da mesa, onde eu tinha os pés descalços na travessa, tampouco me surpreendi com a artimanha do seu pé, tocando com as pontas dos dedos a sola do meu, sondando clandestino minha pele no subsolo. Mais seguro, próspero, devasso, seu pé logo se perdeu sob o pano do meu pijama, se esfregando na densidade dos meus pêlos, subindo afoito, me lambendo a perna feito uma chama. Fiz a tentativa com vagar, seu pé de início se atracou voluntarioso na barra, e brigava, resistia, mas sem pressa me desembaracei dele, recolhendo meus próprios pés que cruzei sob a cadeira. Voltei a erguer os olhos, sua postura, ainda que eloqüente, era de pedra: a cabeça jogada em arremesso para trás, os cabelos escorridos sem tocar as costas, os olhos cerrados; dois frisos úmidos e brilhantes contornando o arco das pálpebras; a boca escancarada, e eu não minto quando digo que  não eram os lábios descorados, mas seus dentes é que tremiam.

Numa arrancada súbita, ela se deslocou quase solene em direção à porta; logo freando porém o passo. E parou. Fazemos muitas paradas na vida, mas supondo-se que aquela não fosse uma parada qualquer, não seria fácil descobrir o que teria interrompido o seu andar. Pode ser simplesmente que ela se remetesse então a uma tarefa trivial a ser cumprida quando o dia clareasse. Ou pode ser também que ela não entendesse a progressiva escuridão que se instalava para sempre em sua memória. Não importa que fosse por esse ou aquele motivo, só sei que, passado o instante de suposta reflexão minha mulher, os ombros caídos, deixou o quarto feito sonâmbula.
Raduan Nassar
Retirado de: Empilhando Palavras

publicado às 21:29

Conto: A Patriota

por Jorge Soares, em 17.09.11

A Patriota

 

Ela é bem gostosa. Tem trinta e tantos mas passa por vinte e poucos, com boa vontade. Não falta nada pra quem gosta de redondezas e fofuras. Sobra um pouco pra quem gosta de peito que cabe na mão. Pra dona da butique do Itaim Bibi, ela não tem classe nem a 50 metros. Pros donos de botecos do Itaim Paulista, a meio quilômetro ela é mais que classuda, é comível. E mora no pedaço.


Mas tem dono. É casada com um cara fechado, que os outros respeitam mais pelo que ameaça calado que pelo que faz ou diz. Quem diz é a vizinhança, agora que a situação arrochou e ela teve que começar a trabalhar fora, pra reforçar o orçamento. Juram que ela foi avistada em outras companhias, na ida ou na volta do trampo. Na verdade a companhia é um só, aliás mais feio que o marido traído, embora regule com ele em tudo o mais, altura, peso, idade e tamanho do pau. Mais feio por causa dum bigode mal aparado, caído nos cantos. A traição até que é discreta pros padrões suburbanos. O outro a acompanha até em casa na volta do trampo, fica um pouco e cai fora antes da volta do marido. Este já desconfia desde o começo, não por causa de avisos ou fofocas, mas pelo comportamento dela na cama e pelos papos daquela hora.


Agora vamos ao dilema do cara. O qual tem muito mais a esconder que a mulher. Já foi bandido, e perigoso. Matou, roubou, quase chefiou quadrilha, mas foi único sobrevivente de guerra com a polícia, capturado, torturado, preso, foragido, procurado. Tudo isso noutro Estado e noutra década. Resolveu começar vida nova, mudar a identidade. Conseguiu despistar todo mundo com documentos falsos, cara diferente (sem bigode), nome de paz. Acha que compensou. Agora é só não se meter em encrenca, não ser fichado de novo, que o velho delinqüente fica esquecido.


Mas nessa de apagar o passado ele vai fermentando uma paranóia, fruto dum cagaço subterrâneo, germinado desde o tempo de assaltante. Matou, é verdade, mas morrendo de medo de morrer. Sempre foi assim. O que pros outros parecia coragem era desespero. Agora o medo vem da lembrança somada com a esperança de que ninguém descubra, a começar pela mulher. Pra isso ele a trata com respeito, não faz tudo que gostaria na cama, ou pelo menos não do jeito que gostaria.


Mete por trás e põe pra chupar, mas com modos, pedindo em vez de mandar, tomando cuidado pra não machucar. Ela corresponde ao tratamento, mas com o tempo a coisa vai ficando meio indiferente. Falta entusiasmo. Isso aparece nos papos, justamente agora que ela começa a trabalhar fora. Não demora e a relação vai pro brejo. Ele deixa claro que desconfia e ela não esconde que não tá satisfeita. Mas falta o flagra.


Pra precipitar as coisas, o outro se insinua como amigo do casal, a pretexto de ser colega de trabalho da mulher. O marido assina atestado de corno manso quando concorda tacitamente que o outro a traga até em casa. A partir daí, é questão de tempo pro desfecho. Ou ele vira corno berrante e lava a honra ou perde a mulher pro outro.


O estopim é algo que ela diz pro marido, tipo "Você não chega aos pés do Fulano, não serve pra engraxar o sapato dele." e algo que o outro disse pra ela e ela repete pro marido: "Ele falou que você não é homem pra mim...". Ele reage, é claro, mas só de boca, com ameaças. Ela faz pouco caso. A essa altura a cama tinha ido pro espaço.

 

 

 

Glauco Mattoso

Retirado de Contos Brasileiros

publicado às 21:23

Quem quer calar o Tintin e o Tom Sawyer?

por Jorge Soares, em 18.04.11

Quem quer censurar o Tintin?

 

É uma deficiência enorme da minha personalidade eu sei, devo ser das poucas pessoas da minha geração que passou ao lado do TinTin e do Asterix, eu gosto da Mafalda, serve?  Hergé morreu em 1983, a sua obra perdurará por muito tempo, sobreviveu a muitas gerações e espera-se que sobreviva a algumas mais ... ou não.

 

Hoje uma notícia do Público chamou a minha atenção:  "Tribunal de Bruxelas começa a julgar “Tintin no Congo” por racismo" A minha primeira ideia foi: Estes Belgas são muito à frente, vão levar um boneco de banda desenhada a tribunal... por cá nem os criminosos a sério conseguem condenar.  É claro que não é isso, alguém se sentiu ofendido com a forma mais ou menos racista em que são apresentados os nativos do Congo no livro impresso por primeira vez em 1931 e decidiu apresentar queixa, não contra o Hergé que a esta altura não se consegue levantar para ir falar com o juiz, e sim contra a editora para que o livro seja retirado de circulação.

 

Não é nada de novo, algures li que nos Estados Unidos vão mudar as falas do Tom Sawyer no clásico  Huckleberry Finn do Mark Twain, segundo os americanos a palavra Niger é muito forte e deverá ser substituída por slave. São os mesmos americanos que há uns anos substituíram as armas nas mãos dos polícias que perseguem o ET por telemóveis.. que quando o filme foi realizado ainda nem existiam. 

 

É claro que entramos no mundo do politicamente correcto, a televisão americana passa em horário nobre filmes e séries em que o crime é uma presença nua e crua, mas eles ficam indignados porque o Tom Sawyer chamava negro aos seus amigos... e alguém me explica em que é que negro é menos ofensivo para a dignidade das pessoas que escravo?

 

Não há nada pior para a humanidade que tentarmos mudar a história, só conseguimos lutar contra aquilo que conhecemos, se decidirmos ignorar que o racismo, o esclavagismo e muitos outros ismos existiram, o mais certo é que quando eles voltem a aflorar não os consigamos enfrentar. Há coisas que fazem parte do nosso passado como sociedade, elas aconteceram e devemos ter noção disso. Se vamos começar a cortar nos clássicos que até há pouco tempo víamos como inocentes, o que vai restar da arte e literatura depois de passarem pelo crivo desta censura disfarçada de bons costumes?

 

Jorge Soares

publicado às 22:05

Mário Vargas LLosa

 

Imagem do Público

 

O primeiro livro de que tenho memória é A cidade e os cachorros (La ciudade y los perros), é um livro forte, com um tema forte e foi sem dúvida um livro que me marcou e que tendo sido lido quando eu tinha 13 ou 14 anos, contribuiu de uma forma decisiva para que me tornasse num leitor quase compulsivo e um fã  do autor.

 

Mario Vargas Llosa tem um estilo de escrita muito próprio, a maioria dos seus livros não é escrito de forma linear, à primeira vista é difícil encontrar um fio condutor, cada capítulo é uma parte da história contada desde o ponto de vista de um dos protagonistas, à medida que vamos lendo vamos entrando na pele de cada um dos personagens e na sua historia.

 

Li a maioria dos seus livros, ele é sem duvida um dos meus autores preferidos e um dos maiores expoentes do Realismo Mágico, o estilo de escrita lationo-americano que através da leitura nos leva a conhecer a realidade politico social da América Latina do século XX.

 

De entre todos os seus livros eu destacaria, para além  A cidade e os cachorros, A Tia Julia e o escrevinhador e Travessuras da Menina má,  de que já se falou aqui, dois dos meus livros preferidos e que nos mostram duas fases distintas da escrita deste autor.

 

Este foi sem dúvida um Nobel muito bem entregue, a um autor que para além da sua escrita se destaca como jornalista, politico, chegou a ser candidato a presidente do Peru, e lutador incansável pela justiça e bem estar social do povo do seu país.

 

Livros deste autor:

 

Os Chefes (1959)
A cidade e os cachorros ("La ciudad y los perros") (1963)
A casa verde (1966) (Premio Rómulo Gallegos)
Conversa na catedral (1969)
Pantaleão e as visitadoras (1973)
Tia Júlia e o escrevinhador (1977)
A Guerra do Fim do Mundo (1981)
Historia de Mayta (1984)
Quem matou Palomino Molero? (1986)
O falador (1987)
Elogio da madrasta (1988)
Lituma nos Andes (1993). Premio Planeta
Os cadernos de Dom Rigoberto (1997)
A festa do bode (2000) - novela sobre a ditadura do general da República Dominicana, Rafael Leónidas Trujillo
O Paraíso na Outra Esquina (2003) - novela histórica sobre Paul Gauguin y Flora Tristán.
Travessuras da Menina Má (2006)


Jorge Soares

 

publicado às 13:16

Morre lentamente.. Ou Quem morre?

por Jorge Soares, em 19.07.10

Martha Medeiros

 

Já aqui falei das famosas Pedras no caminho uma frase que faz parte de um poema que meia internet atribui a Fernando Pessoa e que na verdade foi escrito por Augusto Cury, um poeta brasileiro.

 

Quem não recebeu um power point muito bonito com um texto que se chamava A Marioneta?, o texto era atribuído a Gabriel Garcia Marquez que supostamente o teria escrito para os seus amigos quando descobriu que tinha cancro. O escritor negou que alguma vez tivesse escrito tal coisa e que o que o poderia realmente  matar era que alguém pudesse acreditar que aquilo tinha sido escrito por ele.

Hoje vou falar de um outro poema que a maioria de nós já leu e que todos atribuímos a Pablo Neruda, como a própria fundação Pablo Neruda esclarece aqui, é na verdade da escritora brasileira Martha Medeiros.

 

A Internet é cada vez mais a fonte de informação por excelência, nela podemos encontrar praticamente qualquer assunto ou pessoa. Mas é também cada vez mais uma fonte pouco fiável e junto com muita informação verídica há também muita coisa que não é real ou não foi confirmada... devemos ter muito cuidado com o que tomamos por real.

 

O Poema de que falo é conhecido pela maioria de nós com o titulo Morre lentamente, na realidade o seu titulo é Quem Morre? e a sua versão real é esta:

 

QUEM MORRE?


Morre lentamente 
Quem não viaja, 
Quem não lê, 
Quem não ouve música, 
Quem não encontra graça em si mesmo 

Morre lentamente 
Quem destrói seu amor próprio, 
Quem não se deixa ajudar. 

Morre lentamente 
Quem se transforma em escravo do hábito 
Repetindo todos os dias os mesmos trajeto, 
Quem não muda de marca, 
Não se arrisca a vestir uma nova cor ou 
Não conversa com quem não conhece. 

Morre lentamente 
Quem evita uma paixão e seu redemoinho de emoções, Justamente as que resgatam o brilho dos 
Olhos e os corações aos tropeços. 

Morre lentamente 
Quem não vira a mesa quando está infeliz 
Com o seu trabalho, ou amor, 
Quem não arrisca o certo pelo incerto 
Para ir atrás de um sonho, 
Quem não se permite, pelo menos uma vez na vida, Fugir dos conselhos sensatos... 

Viva hoje! 
Arrisque hoje! 
Faça hoje! 
Não se deixe morrer lentamente! 

NÃO SE ESQUEÇA DE SER FELIZ.

Martha Medeiros

 

Jorge Soares

PS: Imagem minha do Momentos e olhares

publicado às 22:41

Como agua para chocolate

Como a tantos outros blogs, não me lembro como cheguei ao Há vida em Marta, mas depois dessa primeira vez, tornou-se visita obrigatória. Estes dias e a propósito de este post e de um dos seus comentários, fiquei a pensar em como por vezes pode ser errada a imagem que temos de nós como país.

 

O comentário dizia o seguinte:

"A ideia de associar a culinária à literatura - ideia que eu penso terá começado com um livreco de Laura Esquível - é uma moda que resulta comercialmente, mas de resultados literários inevitavelmente abaixo de medíocres. No limite dos limites, sairá algo digno de Bulhão Pato. Olvidável, portanto."

 

Não me lembro quando li o Como Agua Para chocolate a primeira vez, devia ter uns 16 ou 17 anos, mas sei que depois de ver o filme  já o voltei a ler, e mal termine um dos 3 que estou a ler, vai de certeza ser o seguinte. É claro que não o acho um livreco, longe disso e deixei o meu comentário a expressar isso mesmo... e obtive a seguinte resposta:

 

".... 99,99% do que se publica são livrecos. Não é um fenómeno recente. Foi sempre assim. No séc. XIX, por exemplo, há milhares de tipos a escreverem romances. Quem sobreviveu? Eça, Camilo, Antero de Júlio Diniz, Almeida Garrett, Herculano e pouco mais.

E, no entanto, quem na época dissesse, por exemplo, que Pinheiro Chagas era um autor de livrecos seria atirado às feras. Afinal, não ganhou ele o grande prémio nacional de literatura a Eça de Queirós?

Acreditem: daqui a 100 anos, tirando um outro estudioso de bizarrias literárias do fim do séc. XX, ninguém fará ideia nenhuma de quem foi Laura Esquível e qual a sua obra. E não por uma injustiça que depois se reparará. Apenas porque a sua obra é olvidável.

Comprometamo-nos os três (eu, a Marta e o Jorge Freitas Soares) a passar por aqui daqui a 100 ou 200 anos e veremos se tenho ou não razão."

 

Os maias

Podem pensar o que quiserem, mas eu acho o Eça de Queirós um chato de primeira,  no liceu eu li Cem anos de solidão do Garcia Marquez, Dona Barbara de Romulo Gallegos e a cidade e os cachorros do Vargas LLosa, quando vim para Portugal para a universidade ouvia os meus colegas falar do sacrifício que tinha sido ler um resumo de Os Maias, fiquei curioso, arranjei o livro e li de seguida numa tarde..ok, achei razoável, depois disso li de seguida mais dois ou 3 do Eça... e terminei por me chatear, depois de ler o segundo ficou tudo previsível, eu conseguia saber o que ia acontecer nas paginas seguintes, porque os livros são todos iguais.

Eça de Queiroz é muito conhecido em Portugal, eu estudei na Venezuela, sempre fui um leitor inverterado, li dezenas de livro na adolescencia.... antes de chegar a Portugal, nunca tinha ouvido falar do Eça, aposto que se formos ao México ninguém nunca ouviu falar dele.

Daqui a 100 anos no México e na América latina continuará assim, ninguém terá ouvido falar dele, nem de outros autores portugueses.. excepção para o irreverente Saramago, não é em vão que se ganha um Nóbel da literatura, mas aposto que todos recordarão a Laura Esquivel.

Não sou nada de denegrir o que é nosso, mas é preciso ter consciência da realidade da nossa pequenês... e eu considero a maioria dos livros do Eça.. uns livrecos... mas a minha opinião não interessa para nada....e gostos, não se discutem.

 

Jorge Soares

PS:imagens da internet

publicado às 21:57


Ó pra mim!

foto do autor


Queres falar comigo?

Mail: jfreitas.soares@gmail.com






Arquivo

  1. 2020
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
  14. 2019
  15. J
  16. F
  17. M
  18. A
  19. M
  20. J
  21. J
  22. A
  23. S
  24. O
  25. N
  26. D
  27. 2018
  28. J
  29. F
  30. M
  31. A
  32. M
  33. J
  34. J
  35. A
  36. S
  37. O
  38. N
  39. D
  40. 2017
  41. J
  42. F
  43. M
  44. A
  45. M
  46. J
  47. J
  48. A
  49. S
  50. O
  51. N
  52. D
  53. 2016
  54. J
  55. F
  56. M
  57. A
  58. M
  59. J
  60. J
  61. A
  62. S
  63. O
  64. N
  65. D
  66. 2015
  67. J
  68. F
  69. M
  70. A
  71. M
  72. J
  73. J
  74. A
  75. S
  76. O
  77. N
  78. D
  79. 2014
  80. J
  81. F
  82. M
  83. A
  84. M
  85. J
  86. J
  87. A
  88. S
  89. O
  90. N
  91. D
  92. 2013
  93. J
  94. F
  95. M
  96. A
  97. M
  98. J
  99. J
  100. A
  101. S
  102. O
  103. N
  104. D
  105. 2012
  106. J
  107. F
  108. M
  109. A
  110. M
  111. J
  112. J
  113. A
  114. S
  115. O
  116. N
  117. D
  118. 2011
  119. J
  120. F
  121. M
  122. A
  123. M
  124. J
  125. J
  126. A
  127. S
  128. O
  129. N
  130. D
  131. 2010
  132. J
  133. F
  134. M
  135. A
  136. M
  137. J
  138. J
  139. A
  140. S
  141. O
  142. N
  143. D
  144. 2009
  145. J
  146. F
  147. M
  148. A
  149. M
  150. J
  151. J
  152. A
  153. S
  154. O
  155. N
  156. D
  157. 2008
  158. J
  159. F
  160. M
  161. A
  162. M
  163. J
  164. J
  165. A
  166. S
  167. O
  168. N
  169. D
  170. 2007
  171. J
  172. F
  173. M
  174. A
  175. M
  176. J
  177. J
  178. A
  179. S
  180. O
  181. N
  182. D