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Porque: "A vida é feita de pequenos nadas" -Sergio Godinho - e "Viver é uma das coisas mais difíceis do mundo, a maioria das pessoas limita-se a existir!"
Cícera acordou sobressaltada e agarrou o peito como quem segura um pássaro ferido. Marilda, deitada na cama ao lado, riu do desassossego da irmã e fingiu pouco interesse ao perguntar se havia sido o mesmo sonho. Sentando-se com dificuldade no gasto colchão de estopa, Cícera confirmou a suspeita fraterna com um aceno de cabeça. O pesadelo que perturbava suas poucas horas de sono havia se repetido.
― Ciça, um dia tu me conta que diacho de sonho é esse? ― quis saber a mais jovem das idosas, enquanto calçava as sandálias que mal enxergava com seus olhos miudinhos.
― Te preocupa com o manto da santa, Dindinha. Depois do café, vou preparar o altar. Pirru já chegou pra varrer a casa e passar o pano? ― perguntou incomodada, certa de que o rapaz que lhes ajudava nos afazeres domésticos havia se atrasado.
― Sei não ― respondeu Marilda esfregando as pernas. ― Acordei com teus bodejo. Anda, te sacode que o dia hoje vai ser comprido.
Na pequena Cabo Amaro, todos conheciam e respeitavam as irmãs Alvarenga, últimas descentes de uma família que emprestava o nome à pracinha da cidade. Cícera e Marilda eram tão velhas quanto as lendas locais, amalgamavam-se ao folclore e causos transmitidos às novas gerações de contadores de história. Muito se falava sobre a natureza dócil e solteirice de ambas, mas poucos sabiam a verdade.
Emerson Braga
Retirado de Samizdat
Imagem de aqui
É para mim a frase desta campanha eleitoral, foi dita por um popular algures a norte à passagem de Marisa Matias.
- Todas as revoluções precisam de uma flor
A campanha eleitoral das últimas legislativas foi marcada por uma mulher, Catarina Martins, esta campanha para as presidenciais ficou marcada por outra mulher, também ela do Bloco de Esquerda, Marisa Matias.
Salvo raras excepções, a politica portuguesa tem estado marcada pelo domínio masculino com o resultado que se tem visto, saúda-se a chegada de mulheres de garra como Catarina Martins, Marisa Matias, Mariana Mortágua e tantas outras que deixam no ar um perfume de mudança
Se todas as revoluções precisam de uma flor, da esquerda portuguesa surgem muitas flores... ainda bem.
Jorge Soares
Imagem de aqui
Vai haver quem me vá matar pelo que vou dizer, mas a sério que com a situação actual do país, com tantas coisas para se discutir e debater, há mesmo quem faça uma lei para os piropos? ... não, mas parece que a maioria da comunicação social acha que sim. Por proposta do PSD foi alterada redacção do artigo 170 do Código Penal.. na verdade não fala do piropo em lado nenhum, mas nem os jornalistas nem quem escreve nas redes sociais se deu ao trabalho de ler o artigo em questão.
Tentar proibir os piropos deve ser algo assim como tentar proibir as anedotas sobre alentejanos, ou os cartoons políticos... deve estar ao mesmo nível daquela ideia de legislar a utilização do isqueiro.
De resto, como é que alguém consegue decidir onde acaba o elogio e começa o piropo insultuoso? Dizer a alguém, "estás muito bonita com essa roupa" será um elogio ou um piropo? Dizer a alguém "os teus olhos são muito bonitos" será simplesmente um elogio, uma forma de flirtear ou um piropo? Há coisas que ditas num determinado contexto podem ser um elogio e noutro uma provocação, como é que se mede tal coisa?
Lembro-me que há muito tempo atrás, nos primórdios da internet, numa mailing list em que participei, o piropo foi assunto de discussão, foram escritas muitas páginas de texto e discutiram-se muitas formas de olhar para o assunto, mas no fim todos estávamos de acordo que um bom piropo, dito na altura certa e com a graça certa, nunca estava de mais...e não havia mulher que não gostasse de os ouvir.
Também é verdade que que os participantes eram principalmente estudantes e profissionais venezuelanos espalhados pelo mundo, a maioria era de esquerda e sem muitos complexos... mas não há duvida que olhavam para o mundo de outra forma.
De resto, a Venezuela é um país com uma população muito jovem e onde a beleza e forma de estar femininas se destacam, culturalmente cultiva-se um certo cavalheirismo que por cá há muito já não se usa... por lá o piropo é uma espécie de arte, senão vejamos estes exemplos que encontrei na net:
Del cielo bajo un pintor para pintar tu figura pero no encontro color para tanta hermosura
me gustaria que fueras la rosa que decora mi jardin
Eres la carne mechada que rellena la arepa de mi corazón.
Pareces un queso de dieta, estas ricota!
¡Tanta curva y yo sin frenos!
¿Tu mamá es pastelera? Porque hizo tremendo bombón.
¿Crees en el amor a primera vista o tengo que pasar otra vez?
Dios debe estar distraído porque los ángeles se están cayendo.
¿De qué juguetería te escapaste muñeca?
Si la belleza fuera castigo, tú tendrías cadena perpetua.
Cómo me gustaría ser audífono para decirte cosas al oído.
Eres como el guayoyo: dulce y me aceleras!
NO eres la virgen maria pero estas llena de gracia -
*Si la belleza fuera pecado , tu no tendrias perdón de Dios.
*Si tu cuerpo fuera carcel y tus brazos las cadenas Dime a quien tengo que matar pa tirarme esa condena"
Podia tentar traduzir, mas em português não tinham metade da piada.
Jorge Soares
- As mulheres não sabem fazer pénis, e muito menos os homens. Estes são desajeitados! Obviamente que haverá uma espécie de fábrica que os fará e essa fábrica é ... Deus.
- Se existisse uma sociedade só de homens esta acabava em violência e em seitas. Numa sociedade só de mulheres não aconteceria nada, porque elas não fazem nada e passam o tempo a falar.
- É o homem que indica o caminho às mulheres. Em geral uma mulher não define caminho nenhum. Não consegue. Quanto muito organiza o homem e acalma-o!!
Está à vista que no caso dele o controlo de qualidade da fábrica de deus falhou, esqueceram-se de uma parte importante do cérebro e depois deu nisto.... De certeza que a mãe do senhor, mesmo tendo nascido noutra época, teria um enorme orgulho num filho que vem para a televisão dizer que as mulheres só conseguem ser alguém se forem guiadas por um homem...
O mais estranho é que toda esta conversa sem sentido nenhum era para introduzir o tema da adopção por casais homossexuais.
Segundo o senhor há muitos casais heterossexuais dispostos a adoptar e por isso nada disto era necessário, alguém devia explicar a Pedro Arroja que também há perto de 500 crianças que estão há anos para ser adoptadas e se calhar porque há muita gente que pensa como ele, não há quem as adopte.
Definitivamente este senhor vive noutra era, alguém lhe devia explicar que vivemos no século XXI, há muito que as mulheres votam, vão à universidade, conduzem, vivem as suas vidas por elas e conseguem traçar os seus caminhos e os seus destinos sem precisar de iluminados como ele, aliás, em alguns casos como o dele, só o conseguem fazer se não se cruzarem com eles, porque são definitivamente um atraso de vida.
Não sei como se chama a senhora conduz o programa no Porto Canal, mas há duas coisas que me admiram imenso: Primeiro, como é que com aquele pensamento da era das cavernas ele aceita ser questionado por uma mulher. Segundo, como é que ela consegue ouvir aquilo tudo sem desatar às gargalhadas e sem o por no devido lugar?
Vejam o vídeo, são 9 minutos de humor... ou será de terror?
Jorge Soares
Imagem do Facebook
Bom dia eu sou vitima de violência domestica e eu acho que a luta deveria ser contra o sistema judicial pois já que se trata de um crime publico a justiça e lenta na minha situação apresentei a primeira queixa em Julho já depois disso já me tentaram matar 2 vezes ele esta com uma medida de coação hilariante e esta a violar as medidas de coação já participei rodas estas situações e a justiça ainda não fez nada que me proteja e uma vergonha tenho vergonha de ser portuguesa tenho 4 filhos menores e só quando me matarem e que se vão ou não lembrar de fazer alguma coisa obrigada por me deixarem dar este grito de revolta não só por mim mas também por centenas de mulheres que não se sentem protegidas pela justiça e acabam mortas forca mulheres eu estou com vocês não desistam da vossa dignidade.
Marques Marlene
25-11-2013
comigo acontece o mesmo . em Fevereiro não morri ás mãos do meu marido graças a rápida intervenção da GNR, foi afastado de casa pelo tribunal, proibido de se aproximar de mim, de frequentar locais onde eu estiver pondo fim a 30 anos de violência. Mas aí a violência continua em forma de medo,de insegurança, é viver com medo de tudo o que mexe, medo da própria sombra. ele não cumpre as medidas que lhe foram impostas pelo tribunal e ninguém faz nada. o tribunal diz que as medidas são suficientes ( SE CUMPRIDAS ) mas ele não cumpre, antes pelo contrário, mesmo estando já divorciados, vivendo numa pequena vila, ele segue todos os meus passos ,e eu nada posso fazer . Na teoria é tudo bonito, pedem para denunciar, dizem para não ter medo, prometem ajuda, mas; na pratica; deixam-nos a mercê da sorte, do medo, da angustia,de andar na rua sempre a olhar para todo o lado. É terrível a sensação de insegurança em que vivo, eu e quem passa pelo mesmo, porque quem exerce violência não conhece nem respeita regras, venham de onde vier. É triste mas é realidade, temos que primeiro morrer, para depois alguém tomar medidas sérias.
Fé Carvalho.
25-11-2013
Escolhi estes dois textos, podia ter escolhido outros, infelizmente há muitas mais por aí, historias em primeira pessoa do que é o dia a dia de muita gente, são testemunhos do dia a dia de mulheres portuguesas que são vitimas de quem as deveria proteger, vitimas em primeiro lugar de quem lhes é próximo e muitas vezes vitimas da indiferença de quem está à sua volta, da família, dos vizinhos, da comunidade, das forças policiais, da justiça.
Segundo o Observatório de Mulheres Assassinadas, da União de Mulheres Alternativa e Resposta, no que vai de ano registaram-se 27 homicídios consumados e mais de 30 tentados. Quase três mulheres assassinadas por mês, e isto é de certeza só a ponta do iceberg, muitas situações de violência doméstica não são nunca denunciadas.
Hoje é o Dia Internacional pela Eliminação da Violência Contra as Mulheres, Já disse aqui várias vezes que sou contra os dias, não faz sentido nenhum escolhermos um dia para nos lembrarmos de algo que depois esquecemos o resto do ano, se isso faz sentido para o resto dos dias, faz muito mais sentido para um dia como este.., porque as mulheres, todas as vitimas de violência, sofrem os abusos todos os dias e devem ser lembradas e protegidas todos os dias...
Desde 25 de Novembro do ano passado, quando também aqui falei do assunto, morreu quase uma mulher por semana e muitas outras dezenas foram humilhadas, violentadas, maltratadas, vitimas da violência e muitas vezes da indiferença de todos nós... a eliminação da violência, de todos os tipos de violência, deve ser um objectivo de cada um de nós para todos os dias, até que não haja no mundo mais nenhuma Marlene e mais nenhuma Fé a ter que lutar pela sua vida ante a indiferença de quem a devia proteger.
Jorge Soares
Imagem do Expresso
“as esganiçadas” do BE: “Não queria nenhuma daquelas mulheres, nem dada!”
Mas de que sacristia bafienta saiu este cromo? Os últimos dias tem sido férteis de parte a parte em opiniões mais ou menos disparatadas, mas este senhor bateu todos os recordes do disparate.
Pelos vistos se por ele fosse todas as mulheres portuguesas continuariam em casa a cuidar dos filhos, onde é que já se viu mulheres no parlamento? E ainda por cima mulheres inteligentes, com ideias, opiniões e que se sabem expressar?, Onde é que isso já se viu?
Todo o discurso deste senhor é um autêntico disparate de uma ponta à outra, mais que opinião política parece comédia, como é que alguém convida um cromo destes para dar opinião na televisão?
Alguém diga ao Pedro Arroja que estamos no século XXI, ao contrário do que ele acha, felizmente temos em Portugal, em todos os partidos, mulheres cultas, inteligente e com opinião, é evidente que ele com a sua forma de pensar só pode fugir delas... evidentemente nunca estaria à altura de nenhuma delas.
Pena que no Porto Canal ou em outro canal qualquer, se dê voz a um discurso destes, misógino, machista e desrespeitoso.
Para quem ainda não viu, deixo o vídeo:
Jorge Soares
Retirado de Samizdat
Ela estava com soluço. E como se não bastasse a claridade das duas horas, ela era ruiva.
Na rua vazia as pedras vibravam de calor – a cabeça da menina flamejava. Sentada nos degraus de sua casa, ela suportava. Ninguém na rua, só uma pessoa esperando inutilmente no ponto do bonde. E como se não bastasse seu olhar submisso e paciente, o soluço a interrompia de momento a momento, abalando o queixo que se apoiava conformado na mão. Que fazer de uma menina ruiva com soluço? Olhamo-nos sem palavras, desalento contra desalento. Na rua deserta nenhum sinal de bonde. Numa terra de morenos, ser ruivo era uma revolta involuntária. Que importava se num dia futuro sua marca ia fazê-la erguer insolente uma cabeça de mulher? Por enquanto ela estava sentada num degrau faiscante da porta, às duas horas. O que a salvava era uma bolsa velha de senhora, com alça partida. Segurava-a com um amor conjugal já habituado, apertando-a contra os joelhos.
Foi quando se aproximou a sua outra metade neste mundo, um irmão em Grajaú. A possibilidade de comunicação surgiu no ângulo quente da esquina, acompanhando uma senhora, e encarnada na figura de um cão. Era um basset lindo e miserável, doce sob a sua fatalidade. Era um basset ruivo.
Lá vinha ele trotando, à frente de sua dona, arrastando seu comprimento. Desprevenido, acostumado, cachorro.
A menina abriu os olhos pasmada. Suavemente avisado, o cachorro estacou diante dela. Sua língua vibrava. Ambos se olhavam.
Entre tantos seres que estão prontos para se tornarem donos de outro ser, lá estava a menina que viera ao mundo para ter aquele cachorro. Ele fremia suavemente, sem latir. Ela olhava-o sob os cabelos, fascinada, séria. Quanto tempo se passava? Um grande soluço sacudiu-a desafinado. Ele nem sequer tremeu. Também ela passou por cima do soluço e continuou a fitá-lo.
Os pêlos de ambos eram curtos, vermelhos.
Que foi que se disseram? Não se sabe. Sabe-se apenas que se comunicaram rapidamente, pois não havia tempo. Sabe-se também que sem falar eles se pediam. Pediam-se com urgência, com encabulamento, surpreendidos.
No meio de tanta vaga impossibilidade e de tanto sol, ali estava a solução para a criança vermelha. E no meio de tantas ruas a serem trotadas, de tantos cães maiores, de tantos esgotos secos – lá estava uma menina, como se fora carne de sua ruiva carne. Eles se fitavam profundos, entregues, ausentes de Grajaú.
Mais um instante e o suspenso sonho se quebraria, cedendo talvez à gravidade com que se pediam.
Mas ambos eram comprometidos.
Ela com sua infância impossível, o centro da inocência que só se abriria quando ela fosse uma mulher. Ele, com sua natureza aprisionada.
A dona esperava impaciente sob o guarda-sol. O basset ruivo afinal despregou-se da menina e saiu sonâmbulo. Ela ficou espantada, com o acontecimento nas mãos, numa mudez que nem pai nem mãe compreenderiam. Acompanhou-o com olhos pretos que mal acreditavam, debruçada sobre a bolsa e os joelhos, até vê-la dobrar a outra esquina.
Mas ele foi mais forte que ela. Nem uma só vez olhou para trás
Conto extraído de LISPECTOR, Clarice. A legião estrangeira. Rio de Janeiro: Rocco, 1999.
Retirado de Conti Outra
São três da madrugada. Ou falta pouco. O homem do barulho acabou de chegar aqui embaixo na rua. O som, parecido ao de um tambor, é o alerta. Quando ouvi pela primeira vez, meses atrás, acordei assustada. Algum ladrão tentando abrir os carros, com certeza. Não era. Tampouco um bicho virando latas. Um bicho, não. Um homem. Catando de madrugada os restos da lixeira que deveria estar trancada, mas não estava; nunca está. O som de tambor é da caixa de plástico que ele deixa cair no chão, já meio cheia de outros restos recolhidos ao longo da noite. Pelo canto da cortina, vejo uma barba grisalha e desgrenhada que emoldura o rosto redondo e azulado pela luz do poste. Ele não é maltrapilho. Usa roupas simples, mas não está rasgado ou sujo. Daqui de cima posso ver que está limpo. E que mantém o corpo ereto como o daqueles que se recusam a ceder. Ele tem a postura de quem já foi maior. Diferente de outros que já nascem afundados em si mesmos e que se deixam empurrar para baixo pelo destino, pela miséria, pelo desencanto. Não, não é preconceito. Não sou eu que os vejo diferentes, que os distingo. Eles são. Eu apenas os percebo. A uns o destino molda. A outros é a vida. A uns acontece de uma vez. A outros é aos poucos. Em todos a mesma fome. De comida e afeto. E uma submissão inevitável.
Retirado de Samizdat