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Conto - A caixa de Arquimedes

por Jorge Soares, em 26.09.15

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— Eu nem queria acreditar! — o tom teatral do meu amigo Rui, na fila de almoço da cantina da faculdade, prometia história. — As peças do Ostomachion, em vez de estarem arrumadinhas no caixilho delas, estavam ao lado, ostensivamente, a formar um triângulo retângulo.
 
Somos colegas do curso de Matemática Aplicada, mas ele tem um part-time no Museu de História Natural e da Ciência, onde faz visitas guiadas às quartas e aos domingos. Diz que é para ajudar a pagar as propinas, mas eu acho que ele gosta mesmo é de revelar aos visitantes as pequenas maravilhas da ciência, expostas no museu. Já tem falado do brilho que parece acender-se no olhar de quem, de súbito, apreende a explicação.
 
— Fiquei surpreendido, mas agradado — continuou ele —, porque nunca tinha visto qualquer visitante a conseguir construir outra figura. Geralmente, limitam-se a tentar reconstituir o quadrado inicial, o que alguns conseguem, porque a folha de apoio mostra o desenho da posição relativa das peças. Quando não conseguem, lá está o vigilante que recoloca tudo na posição própria.
 
O Rui falava de um jogo matemático inventado por Arquimedes — o Ostomachion ou Caixa de Arquimedes. Não sabemos se o usava como passatempo para exercitar o cérebro ou se tinha objetivos de pesquisa científica. É constituído por 14 peças planas, de variados formatos poligonais, com as quais é possível construir figuras geométricas planas ou sugerir objetos em silhueta, à semelhança do popular Tangram. Na “sala de jogos” do museu, está exposta mais uma dúzia de outros jogos ligados à geometria e à matemática, que foram surgindo ao longo dos séculos.
 
— Não tinha importância se o jogo era apresentado de uma maneira ou de outra, mas, fiquei curioso: quem poderia ter-se lembrado de tentar montar um triângulo e tê-lo conseguido, com todas aquelas peças irregulares? Falei com o vigilante da tarde, que me garantiu que tudo tinha ficado arrumado como habitualmente. Mistério…
Eu próprio comecei a ficar interessado na história, confesso.
 
— No domingo seguinte, era um hexágono que me sorria zombeteiro, onde devia dormitar um quadrado. O vigilante, desperto para a questão, disse-me que todas as manhãs encontrava uma figura geométrica diferente, construída com as peças do Ostomachion. Como podia ser isso? Comecei a duvidar de toda a gente. Terça-feira apareci de surpresa, à hora do fecho, mas estava tudo arrumadinho. Na manhã seguinte cheguei bem cedo e entrei com o vigilante. Um prosaico quadrado enchia o caixilho. Suspirei de alívio, pensando ter identificado o brincalhão. O sorriso sobranceiro que me preparava para dirigir ao vigilante fechou-se-me logo a seguir. O quadrado não era o da folha-guia, mas um dos outros 536 que as combinações das 14 peças do jogo permitem.
 
— Mas, então, não me digas que o Arquimedes voltou lá da Siracusa de antes de Cristo para gozar contigo! — ironizei.
— Nem pensei no Arquimedes. Já estava a ficar maluco, mas nem tanto! Só pensava em como podia descobrir o que de estranho se passava naquela sala, quando eu lá não estava. Então, lembrei-me das câmaras de vigilância, mas a sala dos jogos não as tem. Para grandes males, grandes remédios! No dia seguinte, camuflei uma microcâmara com emissor apontada à zona da mesa do Ostomachion. Não me olhes com esse olhar de reprovação! — eu precisava de desvendar aquele mistério, o quanto antes. Essa noite passei-a no carro, em frente ao museu, a vigiar o Ostomachion pelo meu portátil; mas, acabei por adormecer. Acordei com o clarear do dia e o barulho do trânsito. Apressei-me a olhar para o ecrã — um retângulo alongado reclinava-se no branco da mesa… Digo-te, naquele momento, desanimei — o fantasma que alterava o Ostomachion voltara a atacar e eu voltara a não ver nada. Mas logo a seguir vi surgir uma mulher. Fazia deslizar pelo soalho o que parecia ser um aspirador. Ou uma enceradora. Ao passar pela mesa, parou, olhou o puzzle por uns momentos, moveu dois conjuntos de peças e afastou-se, deixando um aprumado losango...
 
— Estás a gozar; a empregada da limpeza?
 
— É verdade! Eu também tive dificuldade em acreditar. Quando, umas duas horas depois, saiu galhofando com as outras, segui-a. Era negra e muito bonita, com uns olhos… No autocarro para a Pontinha, foi o tempo todo a resolver sudokus. À saída, abordei-a. Expliquei-lhe quem era e porque a seguira. E pedi-lhe desculpa, claro! Depois de ter ganho confiança, disse-me que não tinha nenhuma razão conspirativa para alterar o quadrado do Ostomachion, só um enorme gosto por puzzles e paciências. Nisso convergimos. Acabámos por ficar bastante tempo à conversa e até lhe expliquei as minhas técnicas para resolver os sudokus, mas não eram novidade para ela. Sabes, convergimos noutras coisas — sorriu-se o meu amigo. — Temos saído algumas vezes. E acho que o meu trabalho para Geometria do segundo semestre vai ser sobre o Ostomachion. Como homenagem…
 
 
Joaquim Bispo

 

Retirado de Samizdat

publicado às 22:33

Conto - A Luz de Delft

por Jorge Soares, em 30.05.15

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O que vou contar começou na semana após o Natal, ao chegar a casa, cerca das cinco da tarde. Depois de me pôr à vontade, preparei um copo de leite-com-chocolate morno, juntei um pacote de bolachas recheadas e fui lanchar para a sala, enquanto via televisão.
 
Foi já no fim do lanche que o vi: o carteiro de Pablo Neruda, como eu me lembrava dele no filme, estava mesmo atrás da rapariga que lê uma carta junto a uma janela aberta, na reprodução pintada de Vermeer, que tenho por cima da escrivaninha. Primeiro, fiquei estático, sem saber bem o que pensar. Depois, observei as bolachas e cheirei o leite-com-chocolate, mas pareceram-me em bom estado!
 
Levantei-me e mirei-o de perto. Estava com aquele ar ingénuo e satisfeito de quem finalmente sabe o que são metáforas. E parecia bem implantado na camada cromática, como se tivesse sido pintado ao mesmo tempo que a mulher. Esquecendo o anacronismo do vestuário, não ficava mal de todo no quadro. Aparentemente, tinha sido ele a trazer a carta à jovem holandesa de Vermeer.
 
“Bem”, pensei, “é melhor não dizer nada a ninguém, sem dormir sobre o assunto”. E foi isso que fiz no sofá, a meio de um diagnóstico delicado do Dr. House.
 
Quando acordei, a primeira coisa que fiz foi olhar para o quadro. O carteiro já lá não estava. Fiquei aborrecido. Frustrara-se a hipótese de mostrar o fenómeno aos amigos. Logo a seguir, fiquei preocupado. O que quer que tivesse perturbado a minha perceção devia estar em mim e podia ser um grave problema de saúde.
 
Resolvi fazer umas pesquisas na Net sobre alterações de perceção. Um site francês advertia que níveis elevados de açúcar no sangue podem provocar alucinações. Nessa noite, dormi mal.
 
No dia seguinte, via-se uma alcoviteira de Murillo assomando à janela, a falar com a rapariga da carta. E nos outros dias sucederam-se outras imagens de menor dimensão: um jarrão azul com flores, de Cézanne, junto à fruteira; uma joia a imitar Lalique no cabelo da jovem; o gato da Olímpia de Manet, sobre a tapeçaria; eu sei lá! Isto, apesar de eu ter começado a conter-me nas sobremesas e a lanchar só fruta fresca.
 
Entretanto, fui ao médico. Impôs-me uma dieta rigorosa sem açúcares e receitou-me uns comprimidos de lítio. Disse que devo ter uma predisposição genética visionária que foi potenciada pelos excessos da quadra natalícia. Para eliminar todos os fatores desencadeantes, aconselhou-me ainda a parar com quaisquer leituras sobre arte durante uns tempos. Certo é que, passadas umas semanas, deixei de ver imagens estranhas a perturbar o recolhimento da holandesa de Vermeer na leitura da sua carta.
 
Quando já dava por seguro que o meu problema estava sanado, certa manhã, dei pela falta da própria mulher do quadro. Calculam como fiquei! O coração acelerou-se e quase entrei em pânico. Se antes era açúcar, o que seria agora?!
 
Telefonei logo para o meu médico, que também se mostrou alarmado e me disse que eu, provavelmente, teria abusado da dieta. Mandou-me tomar imediatamente um pacote de açúcar dissolvido em água e que fosse ao consultório dele no dia seguinte. Tomei o que ele mandou e estaquei pensativo a olhar para o quadro deserto. Que intrigante a situação!
 
Então, reparei nuns pequenos vultos refletidos na vidraça do quadro, agora noutra posição. Eram-me familiares. Apesar de minúsculos, não deixavam margem para dúvidas – eram as silhuetas da holandesa desaparecida e do carteiro de Pablo Neruda, passeando de braço dado numa praça de Delft!
 
Instantaneamente, entendi todo o percurso de aproximação e sedução: o primeiro contacto, o recado influente, as flores, a prenda…
 
No dia seguinte, já não fui ao médico. Nunca mais lá voltei. Percebi que o amor é mais forte que quaisquer dietas ou comprimidos. E encontra sempre o seu caminho.
 
Joaquim Bispo

publicado às 21:13

Conto - As incertezas de Crpt

por Jorge Soares, em 31.01.15

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Quando Crpt se religou, encontrou-se sentado na zona de acesso às partidas aéreas da cidade arqueológica de Ur. De imediato, detetou o imperativo de entregar uma mensagem impregnada na área encriptada, dirigida ao arqueólogo “Gilgamesh”. A instrução de ação era clara — “A mensagem deve chegar à Casa Branca na véspera de Natal do ano 2899” —, mas o que isso significava era um completo enigma. Por enquanto.

 

Tratou de consultar mentalmente a enciclopédia interna de acesso expedito. Ficou a saber que Natal era uma primitiva data religiosa, que se transformara numa festividade frívola, realizada pelo solstício de inverno do hemisfério norte, e que o significado principal de Casa Branca era o de um antigo edifício de comando mundial situado numa das zonas irradiadas na última Guerra do Petróleo. A escavação arqueológica do local iniciara-se havia uns vinte anos e era uma das mais prometedoras da Zona Oriental.

 

Para o esclarecimento de data tão bizarra, não havia qualquer pista. Decorria o ano 643 da era de Wu Wang e, seguindo a instrução à risca, tinha mais que tempo de a cumprir — 2256 anos e dois dias, mais precisamente. Isso era uma eternidade. Provavelmente, nem o seu corpo duraria tanto, apesar de ser fabricado com as mais dúcteis e resistentes ligas biometálicas e com tratamentos autorregeneradores. O seu trabalho quase permanente nas zonas irradiadas expunha-o a corrosões intensas. “Para quê, enviar uma mensagem com um prazo de entrega de milénios?”, perguntava-se. Havia, com certeza, um erro na data indicada. Ou, quiçá, uma charada a resolver na própria instrução de ação, que o destinatário sob pseudónimo prenunciava. Qualquer das hipóteses era pouco verosímil, dado o rigor normativo habitual das comunicações. Quando acontecia um erro, era invariavelmente da responsabilidade de um Homem.

 

Uma pergunta começou a dominá-lo: “o que esperaria dele o comando da Delegação de Kandahar, numa situação como esta?” Enviou um pedido mental de iluminação ao Conselho Central, mas, mais uma vez, o silêncio foi a resposta. Dantes, acreditava obter revelação, quando pedia ajuda em momentos de incerteza, mas havia muito tempo que uma ausência absoluta de sinal era a norma. Sentiu-se abandonado por um momento, mas depois reagiu, confiando no permanente controlo da Delegação, ainda que silencioso, sobre o seu livre-arbítrio.

 

 

 

* * *

Joaquim Bispo 

Ilustração de Rodolfo Bispo: https://www.facebook.com/rodolfo.bispo.77

 

Retirado de Samizdat

publicado às 21:26

Conto - A surpresa

por Jorge Soares, em 17.01.15

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    – Deixa a ponta solta.

 

Deixa essa ponta solta, repetiu a mulher vestida com panos escuros.

 

A ela tinham-na vestido com tecidos garridos, as mesmas mulheres que lhe tinham dito que amanhã iria ao mercado da aldeia.

 

Uma delas veio compor a fita, e a ponta ficou pendendo disfarçada numa dobra do tecido. Era um pedaço de cabedal ou imitando, do que teria sido um cinto. A mulher vestida de negro aquiesceu:

– Isso. Deixa-a, assim, solta.

 

E aproximou-se como se fosse contar-lhe um segredo.

 

Fátima sentiu-lhe até o bafo.

Sentiu-lhe os lábios grossos, muito grossos e encarnados, quase a roçarem-lhe o lóbulo da orelha que sobrava por debaixo do lenço.

A mulher apertou-lhe a mão por cima do pano colorido.

Um pano com manchas vermelhas e azuis e com bolas em amarelo canário, entremeando.

A mulher agarrava-lhe a mão e deslizava-a por baixo do tecido, e assim, pretendia mostrar que, com a ponta solta, bastavam dois dedos.

 

As mulheres tinham-lhe dito: vais levar uma surpresa ao teu tio Pedro.

Levas a surpresa bem presa no teu corpo, tinham elas acrescido.

 

E que puxasse a fita apenas quando chegasse junto da bancada, tinham repetido, isso, uma vez e outra. E no entanto, a falar baixíssimo, os lábios gotejando humidades sobre o lóbulo da orelha que assomava debaixo do lenço colorido, a mulher vestida de negro ainda indagou, apenas como se afirmasse certezas desejadas:

 

– Sabes como fazes, não sabes?

Mas nem esperou resposta.

 

Na sala diminuta estavam a mulher de negro, e a mulher que tratou de fazer com que a ponta ficasse solta, e duas outras mulheres acocoradas como rolos de tecidos por ali jogados; e, além delas, dois homens permaneciam hirtos, de pé, junto à única porta.

 

As mulheres tinham dito: eles depois levam-te.

Fátima percebeu que seriam aqueles.

Fátima vestida com panos de cores garridas como nos dias em que ia ao mercado da aldeia com a mãe e as tias e os primos e primas.

 

 

***

 

 Ela não tinha respondido, mas sabia muito bem como devia.

 

 As mulheres tinham-lhe dito. Tinham-lhe explicado e repetido enquanto a vestiam com panos garridos e juravam que sim, que ela comeria frutos. Mangas e papaia. Talvez tâmaras se já as houvesse.

 

Vais fazer uma surpresa ao teu tio Pedro, tinham-lhe elas explicado.

E Fátima foi com os homens por caminhos e estradas.

Aos balanços do carro, a prenda do tio incomodava-a. Magoava-lhe o corpo sobretudo do lado direito onde tinham deixado uma ponta solta.

Ela sabia que só devia puxar quando estivesse na bancada de frutas. Lá, onde deixaria a surpresa que levava agarrada ao corpo.

As mulheres tinham-lhe dito. Elas tinham-lhe dito e repetido.

 

Mas ainda assim, ela deve ter percebido mal.

Ou percebeu, mas atrapalhou-se.

 

Quando chegou, já o tio Pedro estava colocando frutas na bancada. Para que ele não a visse, para ser mesmo surpresa como as mulheres lhe tinham ensinado, escondeu-se por detrás de uma resma de cestas que estavam, por ali, empilhadas. 

 

Só então estendeu a mão e tocou a ponta solta. Tocou apenas e esperou um pouco como se estivesse ouvindo a voz das mulheres: pegas com força e puxas para baixo. Elas tinham insistido. 

 

Só depois puxou.

Mas qualquer coisa deve ter corrido mal.

Aquela dor que vinha sentido, do lado direito, mais ainda que do outro lado, tornou-se muito intensa e espalhou-se pelo corpo todo. E terá sido porque ela segurou demasiado levezinho. Ou porque terá puxado para o lado em vez de puxar para baixo. Ou ela teria até, desgovernada, puxado para cima.

 

O que quer que tenha sido, saiu errado, e o seu grito ressoou, e era como se todos no mercado estivessem gritando. Ou estariam. Ou era ela apenas.

 

Fátima não percebia senão que tinha sido um verdadeiro horror depois que puxou a ponta que as mulheres tinham deixado solta por baixo dos panos. 

 

Desfeita em cacos a surpresa que trazia para o seu tio. 

E no mercado um sururu ensurdecedor como se tudo se tivesse revirado debaixo dum céu toldado de vermelho e negro a fazer lembrar os dias em que os vizinhos e os pais faziam queimadas nos terrenos antes da próxima sementeira. Então, era um calor imenso, e nem assim tão grande como aconteceu mal ela puxou a ponta para que se desprendesse a surpresa que trazia para o tio. 

 

No tempo das queimadas, os meninos da aldeia ajudavam a manter o fogo longe das casas. Iam todos, ela e os irmãos e os primos, a bater a terra com vassouras feitas de ramos verdes. Tinha sido assim, antes de os terem levado. Dois camiões carregados com crianças raptadas da aldeia. Fátima ia com eles. Tinha sido muito antes de ter menstruado. Nem por isso criara corpo. Miudinha, sangrara uma vez apenas. O sangue a sair-lhe do corpo, e o seu nem era um sangue assim quase negro como aquele que agora se espalhava pelo chão do mercado.

 

Ou ela delira. 

 

Ou será a dor imensa que ela sente que a faz parecer que o mercado, todo ele, arde como era lá na aldeia em dias de queimada; que, como ela, tantos no mercado estão empapados no seu próprio sangue. 

 

Estará ela confundindo e nem o seu corpo estará a desmembrar-se, um braço e uma perna para cada lado como se dava com as lagartixas: cada pedaço do bicho ainda remexendo, cada bocado com a consciência que Deus lhe deu, dizia assim o Damião que era o sábio lá da aldeia.

 

Fátima que não percebe e nem consegue explicar o que fez errado.

Sabe que estragou a surpresa que trazia para o tio. Isso ela sabe, e está muito triste.

 

Maria de Fátima

Retirado de Samizdat

publicado às 21:25

Conto de Natal - O sol subindo na noite

por Jorge Soares, em 20.12.14

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Imagem de aqui 

 

A menina aparece como uma figura minúscula no pequeno adro da igreja. O homem é uma bola. Matéria humana enrolada. Está debruçado sobre o próprio frio, a fome, a vergonha, a tristeza, a revolta. É isso que a menina vê quando ele desembrulha o corpo e se volta para ela com os olhos encovados. Não sabendo nada do que espera um adulto, ela vê que aquele adulto está desapontado com a vida e consigo mesmo. Está velho, tem o rosto pesado de rugas.

 

Sendo um desconhecido, na sua história e naquela ocasião de o encontrar abandonado por ali como nem os animais se viam – ela, pelo menos, nunca tinha visto -, havia qualquer coisa de familiar. Era, afinal, um episódio com algo de fundador. Nas mais simples histórias tradicionais, em muitas das histórias infantis, a tragédia era o maior motor do carácter humano e a bondade um poderoso instrumento de felicidade.

 

A desgraça, que podia ser como uma espécie de clima particular em que sobre alguém chovia sem parar, já a pressentia; tinha ideia de alguns segredos se movimentarem por vezes pela sua casa.

 

Entre o homem e a menina, está uma enorme pilha de lenha, em formato piramidal, a base criando um círculo gigante no centro da praça. Ergue-se já à altura dos sinos da igreja. A menina veio ver quanto cresceu a pirâmide na última hora. O homem espera que venham acender a grande fogueira, como um sol na noite. A aldeia inteira está recolhida, prestes a começar a ceia de Natal.

 

A menina então desvia o olhar e corre para casa com as pernas nervosas. O homem dobra-se novamente, aquece as mãos com o sopro da boca.

II

Quatro horas depois, a menina batia palmas ao encanto do fogo. Subindo, subindo, fez-se um clarão de apagar estrelas. Quando o frio se sentia instalando como sincelo nas costas, ela rodava sobre si mesma, dando a cara ao resto da noite. Depois tornava a virar-se e a sentir o quente até dentro da boca quando se ria. Estendia as mãos para a fogueira e virava-as de um lado e do outro como carne a assar. O círculo estava completo de gente, o adro da igreja ruidoso. Os rapazes da aldeia desapareciam à vez para repicar os sinos. Tudo acontecia como planeado, como em todos os Natais, porque na aldeia sempre mantinham a tradição.

 

 

 

SUSANA MOREIRA MARQUES

 

Retirado do Público

publicado às 20:56

Conto - Schadenfreude

por Jorge Soares, em 15.11.14

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– Óptimo, óptimo …  

 

As palavras enrolam-se-lhe, pastosas, sob o efeito do antidepressivo que tomou empurrado por um gole de vodka com sumo de laranja.

 

– Óptimo! – ainda repete.

Maria Teresa tinha acabado de dizer-lhe, e ele tem necessidade de expfressar contentamento mesmo sabendo que mente, mesmo perante ela que sabe. Ainda assim, afirma, a compor melhor o quadro:

 

– Estou tão contente, tão feliz por eles.

E despede-se.

 

Frederico Esteves a baloiçar o corpo magro de um lado ao outro da sala imensa que é o estúdio onde vive. O meu tugúrio, como diz, por graça.

 

Maria Teresa tinha sido directa. Nem boa tarde, nem olá xuxu como ela gosta de tratá-lo. Atirou certeira: é apenas para te dizer que acabei de casá-los. Assim, sem mais delongas, e ele naquele: óptimo, óptimo, tão amaricado que, mesmo pela voz, mesmo ao telefone, se juraria dos seus gostos em matéria de género. E no entanto, ele diz de si mesmo num maneirismo repleto de trejeitos: eu não me assumo bicha, que querem... E jura que gosta é de mulheres. E a dizer assim, ri como só ele sabe, a cabeça ligeiramente descaída para trás sobre o ombro esquerdo, e a mão do mesmo lado a tapar-lhe a boca que propositadamente escancara em demasia.

 

Com que então, José Pedro tinha mesmo casado.

 

Frederico Esteves a remoer no que acaba de saber, senta-se no sofá, as pernas esticadas em cima da caixa que um dia encontrou num contentor de lixo. Trouxe-a para casa numa noite de copos. Recuperou-a ele mesmo. Nela guarda as bebidas além do stock da dispensa. Hoje, faltou suco de laranja, mas é raro, e Frederico Esteves despeja no copo o que resta na garrafa.

 

– Pois que sejam felizes – diz assim em voz que outros ouviriam se ali estivessem, e simula um brinde erguendo o copo no braço esticado para o ar da sala.

 

Que aquele consórcio lhe seja fonte de penas sem medida, pensa Frederico Esteves, como praga que rogasse, mas afasta de si esse sentimento, e emborca o copo de um só gole, e volta a enchê-lo com Vodka ardente.

 

 ***

 

Maria Teresa fez o que ele tinha pedido: quando os casares, por favor, avisa-me. E ela telefonou-lhe.

 

Tinha sido numa outra noite, e tinham jantado. Frederico Esteves chorara-lhe as mágoas daquela paixão, e ela tinha-o aconselhado. Que não dramatizasse, dissera-lhe a notária do alto de uns sapatos muito altos e muito encarnados. Era o seu aniversário e, não estando reduzida à amizade de Frederico Esteves, não lhe tinha apetecido senão ele para comemorar. Gostava daquele seu modo de ser abichanado. Dava-lhe gozo percebe-lo sofrendo pelo lado errado. E com ela Frederico Esteves sofria todo o seu sofrimento sem ensaios nem segredos, que Maria Teresa tinha aquele modo especial de o fazer ficar cada vez mais sofrido, cada vez mais um homem sem rumo e sem sentido, pequenino, perdido de si mesmo, angustiado, e ela deleitava-se a ouvi-lo, e consolava-o exacerbando-lhe os desgostos.

 

Tinham-lhe dito que era sadismo, mas ela achava que era mais a raiva de não ter o pénis dele, de não poder usá-lo. E detestava-o. Que ele sofresse fazia-a sentir-se num quase orgasmo.

 

Fora assim na noite dos seus quarenta e cinco anos. Frederico Esteves sofrendo pelo amor imenso que José Pedro nutria por aquela criatura esquelética e inculta, assim dizia ele da que seria muito em breve a esposa do seu idolatrado. Maria Teresa apressara-se a dizer-lhe: vai casar, está confirmado. E ele chorara de baba e de ranho.

 

Maria Teresa apressara-se a contar-lhe, como se apressou, ainda há nada, a dizer-lhe que os tinha casado.

 

****

 

– Nunca perceberei tanto gastar de tinta, tanta discussão a interpretar o que só poderia ter sido de um modo.

 

É Frederico Esteves remoendo o artigo que acaba de ler numa página do jornal que tem desdobrado sobre a mesa.

 

Está sentado na esplanada do cafezinho onde, por um costume de anos, passa as manhãs de domingo. Uma esplanada arrumadinha que se debruça, lá de cima, sobre o rio. Frederico Esteves gosta de gracejar dizendo que fica ali na hora em que os amigos, os de infância e muitos dos que ainda lhe restam, ouvem missa em alguma igreja. E acrescenta, impertinente: eu faço a minha consagração com um café bem quente e torradas que lambuzo em doce de cereja. Mas não diz que esse é o seu local de leitura dos jornais semanais, que ele não lê outros, e quase só lê a secção literária. No resto, passa os olhos nos títulos, ou saltita-os pelas linhas de uma notícia ou outra.

 

– Mais um a insistir na versão do Bentinho traído – tartamudeia Frederico Esteves olhando o rio que o sol pintalga de reflexos inquietos.

 

Os articulistas e os estudiosos da obra de Machado, preferem que a culpa tenha sido de Capitolina. Preferem isso, a darem um sentido novo à trama urdida pelo matreirice de mestre Assis.

 

Frederico Esteves sorri-se a imaginar como poderia ter sido com Bentinho e Escobar, e vem-lhe à memória a notícia que Maria Teresa lhe deu nem há dois dias. E nisto vai virando as páginas dos jornais, a ler apenas as mais gordas.

 

E surgem-lhe letras diferentes. Cegam-no, aquelas letras enormes, muito negras. Saltam da folha a dizerem-lhe: acidente mata jornalista e sua jovem esposa. E os olhos de Frederico Esteves cegam-se de lágrimas que eles já se desviaram para a linha debaixo onde as letras gritam acima do ensurdecer que é o silêncio da esplanada: José Pedro Reis e sua esposa mortos num brutal acidente.

 

Frederico Esteves não lê os detalhes ou as pequeninas lhe diriam que o casal ia em viagem de núpcias.

 

Morto seu amantíssimo José Pedro, e no entanto, não é um soluço, e nem um  choro o que lhe está acontecendo. É sim um riso, uma gargalhada sem pejo e sem remorso. Um rir genuíno que condiz com um imenso bem estar, enquanto as lágrimas lhe correm cara abaixo.

 

Morreram os dois.

 

Não lhe resta a quem tenha que dizer, insincero e cínico: que sejam felizes, e aquele ardor no peito, e aquele despeito, e aquele horror de não ter sido com ele.

 

Gargalhadas sonoras tremeluzem-lhe o peito e a garganta, saem-lhe pela boca, e o senhor da mesa ao fundo volta-se perturbado e curioso do rapaz tão despudoradamente hilariante.

– Boas notícias?! – atira-lhe o homenzinho a tentar apaziguar tanta euforia.

 

Frederico Esteves pede desculpas embrulhadas em gestos mudos, e decide ir embora. Afasta a cadeira evitando o ruído que seria o metal a rojar na tijoleira da esplanada: quadrados verdes e brancos, nota ele a arrumar os pertences que tem espalhados pela mesa. Ri ainda, mas apenas no silêncio prudente do modo como coloca os olhos e a boca, e no modo como se desloca, que parece ele que nem sente os pés fazendo pressão para que ande, primeiro na esplanada que atravessa de uma ponta à outra, e alguns olham, de dentro da sua pasmaceira de domingo, aquele homem tão contente: terá tido uma boa notícia, parece que pensam. 


Frederico Esteves a tentar desfazer o desarranjo que possa ter causado na quietude que é suposta numa esplanada debruçada sobre o rio numa manhã de domingo. Atravessa o salão diminuto que é o cafezinho, e sai para a rua, os pés sempre naquele desatino de o fazerem ir voando, e o peito num indecoroso sentir-se com o coração leve.

 

Frederico Esteves num bem-estar que não podia ter previsto ao ler a notícia da morte de José Pedro. E aceita aquele sentimento como dádiva de algum céu que ele nem sequer venera. Nunca mais ter que os ver. Nunca mais ter que os cumprimentar. Não ter que repetir o ardor imenso do ciúme, ou a dor incisiva da inveja que o sufocava de cada vez que os via, de cada vez que os visse: José Pedro e a esposa no restaurante, no cinema, em casa dos amigos que ambos frequentariam.

 

 

E liga para Maria Teresa.

Palavras de desgosto, é o que dizem um ao outro, e que Maria Teresa lhe encomende uma coroa linda, pede Frederico Esteves. Que está destroçado, ia dizer-lhe, mas contem-se, e ela jura que serão as flores mais bonitas no cemitério, e que não desespere, que se precisar dela, a chame em qualquer momento.

 

Maria de Fátima

Retirado de Samizdat

publicado às 22:38

Conto - ADÁGIO NEGRO, de Carlos Tavares

por Jorge Soares, em 08.11.14

 

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Para Marilda

 

(...) Pois de tudo fica um pouco.

Fica um pouco de teu queixo

no queixo de tua filha.

De teu áspero silêncio

um pouco ficou, um pouco

nos muros zangados,

nas folhas, mudas, que sobem.

Ficou um pouco de tudo

no pires de porcelana,

dragão partido, flor branca,

ficou um pouco

de ruga na vossa testa,

retrato.

(...) E de tudo fica um pouco.

Oh abre os vidros de loção

e abafa

o insuportável mau cheiro da memória.

 

Carlos Drummond de Andrade

 

 

Na brancura espessa da manhã o sol imprime suas ondas de luz nas paredes do meu quarto e me reduz a um peixe perdido no aquário da existência. Já não sinto as lanças da solidão no meu corpo, nado em direção ao meu nicho de nuvens, toco as bolhas de ar que brindam meus pulmões com a fumaça encardida dos cigarros que fumei enquanto lutava contra a insônia. A impressão de que a terra parou, de que as pessoas não existem, eu não existo, que tudo é ilusão, golpe de vista, torpor, delírio, maquinações do sonho e do inconsciente me persegue há semanas; e eu já não sei se vale a pena erguer-me dos lençóis, se alguém sentirá a minha falta se eu resolver ficar aqui deitado, infinitamente. O problema é que não sinto mais nada - nem amor, nem desamor, nem alegria, nem tristeza; não faz tanto tempo que estou assim, exposto às formigas que procuram invadir o meu leito, aos maribondos que penetram o quarto pelas janelas, aos gafanhotos que montam guarda sobre os móveis, às baratas que rastejam pelos meus braços, aos morcegos que insistem na volúpia do sangue, às ratazanas que recusam o veneno e partem para o ataque, trucidam borboletas e minhocas - meu quarto virou um delírio, um circo, uma arena de pesadelos!

 

A única vantagem dos lençóis, das cortinas cerradas, da companhia dos bichos é que o mundo duro e rígido continua girando lá fora e eu padeço de tudo aqui dentro sem incomodar ninguém, sequer o zelador, que antes era obrigado a subir três andares para cobrar o condomínio; mas ele desistiu, afinal o prédio será demolido em breve, sua estrutura está condenada e certamente desabarei junto com ele. Serei parte desses futuros escombros, pedras, poeira, caliça e ferragens, meu coração soterrado, meus olhos triturados, a ossada na argamassa ressequida da destruição, o barulho dos guindastes erguendo do chão essa carcaça sem brilho, campanário de pequenos pecados que saí distribuindo pelas estradas dia após dia, quem sabe escape ao menos a memória de uma época em que ainda podia me fazer presente na vida, aquele antigo corpo da juventude que o tempo derruiu, minhas tristes ruínas, o fim tão almejado que se aproxima.

 

Além do porteiro, o telefone toca duas ou três vezes por dia, depois para, eu nunca atendo, acabo puxando a tomada, apago as luzes, fico na penumbra como pássaro assustado no fio, cabelos desalinhados, ralos, a calva aos poucos deixando reluzir o que resta do meu crânio, esse brilho fosco de cada dia, meus olhos que nada enxergam além do reflexo pálido e céreo do meu rosto no espelho. Depois resolvo tomar um banho, mas a água foi cortada, as torneiras pingam o barro molhado e a ferrugem das encanações condenadas, afinal apenas eu, um escriturário que trabalha meio período no andar de cima, e o zelador, habitamos essa espelunca que em breve tombará em meio ao quarteirão mais desolado do bairro.

 

Resolvo ficar de frente para o espelho e noto que ganhei uma nova cicatriz, no centro do queixo; tenho mais duas na face esquerda, três na direita, cinco na testa, mas as raízes delas residem no tronco interior do meu corpo, florescem apenas as marcas que deverão repousar para sempre em cada lado do meu rosto, embaixo, acima das mandíbulas gastas que trituram apenas o ar que ainda respiro. Às vezes costumo passar de duas a três horas diante do espelho e não queiram saber os detalhes que descubro, dentro e fora dos globos oculares, nas estrias do branco dos olhos e nas fímbrias azuladas que imagino ver no cristalino estragado pelas queimaduras do sol, resultado das semanas que passei antes de me enfurnar, deitado sob o sol perto de uma estrada que a nada leva, apenas uma estrada que consegui trilhar sem medo, desarmado dos perigos, exposto ao vento e à chuva, simplesmente porque achava ser aquela uma das experiências de solidão mais ousadas que alguém poderia intentar. Caminhar, andar, caminhar, correr, passo a passo em direção ao nada, simplesmente ao nada que se alonga diante de meus olhos dentro e fora da estrada porque sei que sua intersecção é o meu próprio corpo em ruínas, a boca sem dentes, as mãos cobertas de feridas, as pernas cansadas, o tórax arfante, os ombros caídos, o olhar ensombreado e tristonho. Observei no espelho que as rugas despontam, reduzem o meu semblante ao pardo trêmulo e ondeante das máscaras funerárias, a testa engelhada, o nariz entortado, as orelhas amarrotadas como pequenos abanos de palha, o pescoço flácido e as aranhas vasculares instaladas nas teias das artérias que ainda pulsam, bombeiam um pouco de de ar, de sangue, de vida.

 

O tempo que passei contemplando esses estragos fora o suficiente para imaginar que está na hora de colher as pedras, arrumar a casa, podar as primaveras que se enramam nos parapeitos das janelas, recortar as rosas das jardineiras, encaixotar os livros, arrumar as malas, rever as palavras, redesenhar a sede da memória e do amor, revolver as florestas de cal onde me escondi do mundo, catar os sinos que anunciam a demolição, retirar as cercas de dentro do peito, reflorir as varandas que se fecham ao meu redor e quase me asfixiam, reentoar as distâncias entre o que fui e o que hoje sou, curvar-me aos gerânios, beijar a terra dos finados, sacudir as cinzas do terno e apertar as gravatas, modelar os olhos, o nariz, a boca que já não ri, o cenho de cera que emurchece, moldar as mãos e o beijo, lapidar a falta que não se faz quando se decide recuar e sumir, reconhecer o terreno das desilusões, o pântano, as arapucas do cotidiano, apertar os cravos dessa coleira de agonia, destronar as fúrias que me espreitam no sonho e no sono, remontar os púlpitos dos anjos, rever as preces para nada desfiadas, desancar a realidade, sorrir para o delírio, ter a coragem do devaneio e da treva, da solidão dos ratos, devolver a prata das ruínas, recitar o silêncio das madrugadas, retrilhar as palavras na luta contra as traças, repintar o jardim, rebrotar as cores dessa paixão, cobrir-me de lírios e violetas que se despregam dos caules esturricados, devolver as auroras aos pássaros que aprisiono, reavivar as noites com os meus próprios sussurros, torcer as barras dessa angústia, é hora de dobrar as esquinas, desaparecer na textura das sombras, repor na penumbra o éter do soluço, é hora de encerrar a caminhada, lustrar o espanto, fechar os laços nas vigas, abotoar a camisa, os punhos, os sapatos, recolher as armas, partir, singrar, sumir, voar.

 

Carlos Tavares

 

(Ilustração: Jean-Marie Poumeyrol)

 

Retirado de Trapiche dos outros

 

publicado às 21:33

Conto - És Feliz?

por Jorge Soares, em 01.11.14

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Todos sabemos que os mortos não voltam; por uma razão muito simples — morreram. No entanto, uma inaptidão para lidar com a interrupção do devir leva-nos a imaginar os nossos mortos, em forma carnal incorrupta, como quando os conhecemos. Aliás, a aventura humana, com as suas contínuas “entregas de testemunho cultural”, é muito eficaz a fazer-nos proceder como se houvesse um devir contínuo. E um contínuo progresso. Esta nossa capacidade de abstração e de idealização permite-nos imaginar os cenários mais inverosímeis com a naturalidade das coisas quotidianas.

 

Um avô meu morreu em 1950, quando eu tinha dois anos. Uma lembrança que tenho dele é, provavelmente, falsa. Era um agricultor que tinha vivido sempre na aldeia — exceto a passagem por França, na I Guerra Mundial — e cuja informação se fazia nos mercados, nas conversas de vizinhos e, talvez, num jornal mensal. O mundo dele era calmo, duro, equilibrado. Vivia ao ritmo das estações. A curiosidade de o conhecer é natural. Como seria se o encontrasse hoje, ele parado nos cinquenta e tal anos da fotografia da parede, bem mais novo que eu agora? Como nos relacionaríamos, se convivêssemos durante, digamos, um mês? Como camaradas? A sua ascendência prevaleceria, ou a minha maior idade fá-lo-ia reverente, vindo ele dum tempo em que o respeito pelos mais velhos era sagrado?

 

Se bem o vislumbrei, melhor o fantasiei. O meu avô esteve connosco um mês. Acompanhou a minha família em todos os momentos, desde os de lazer caseiro, aos de afobamento de afazeres citadinos. Mostrei-lhe as maravilhas do meu tempo e indaguei-o sobre muitos aspetos do dele. Levei-o velozmente pelos lisos tapetes das autoestradas do país, mostrei-lhe a ponte de dezassete quilómetros sobre o Tejo, mergulhámos de metro no ventre da cidade em hora de ponta, guiei-o pelas avenidas dos grandes centros comerciais e outros formigueiros. Ele mostrava-se um pouco confuso, mas muito adaptável. Gostou especialmente da televisão por cabo. Devorava sobretudo as notícias. Embora se admirasse com os telemóveis, o computador e a internet, ficava particularmente desconfiado com o microondas e divertido com a máquina elétrica de barbear. Achava piada às roupas deste tempo e às pessoas nos ginásios. Ver-me a pedalar em seco levava-o às lágrimas. Gostou de encontrar roupa pronta a vestir e de conhecer as várias utilizações dos plásticos. Apreciou o serviço de aconselhamento médico pelo telefone, a que tive de recorrer. Admirava a utilidade de conservação do frigorífico e a frescura das bebidas e da fruta, embora achasse esta insípida, apesar das cores fortes e dos tamanhos surpreendentes.

 

Finalmente, chegou o dia em que o prazo planeado acabava. Chamou-me de lado e — cito de memória — disse-me:

«Amaro, meu homónimo, meu velho neto, gostei muito de conhecer a tua família e o teu mundo. É um mundo admirável, mas difícil de compreender para um homem do meu tempo. Custa-me a crer que os homens foram à Lua, que desvendaram as entranhas da vida, que criaram certas maravilhas tecnológicas. Talvez tenham feito tudo isso, mas continuam a não ser solidários; nem sequer conseguem viver juntos. As guerras são permanentes, e em inúmeros pontos do planeta há milhares de pessoas a morrer de fome — que conceito abominável — enquanto nos países ricos se destroem milhares de toneladas de alimentos, para não deixar baixar os preços. As cidades estão cheias de fumo e sobrepovoadas. As pessoas amontoam-se em pequenos espaços, trabalham toda a vida para pagar a casa, quase não veem os filhos. Toda a gente tira cursos superiores, mas poucos conseguem exercer uma profissão nessa área de estudos. Os jovens apenas conseguem trabalhos precários, às vezes, escravatura encapotada, com nomes pomposos como “estágio não remunerado”.

 

E, no entanto, tens razoáveis condições para ter uma vida boa: já não trabalhas, recebes o suficiente para viver, tens tempo e saúde, podes fazer o que quiseres. E o que fazes tu? Agora brincas aos cronistas, como tens brincado aos bloguistas e aos contistas. Passas demasiado tempo ao computador. Tens mais amigos na internet que na “vida real”. As novidades tecnológicas vêm, envolvem-te e passam. Tens centenas de DVD que nunca vês, dezenas de CD que nunca ouves, rádios, oitenta canais de televisão, dos quais vês meia dúzia. A oferta é avassaladora, dispersa-te. Era um mundo assim que idealizavas? Parece-me que estás esquecido dos sonhos da adolescência. Diz-me: és feliz?»

 

Antes que eu tivesse tempo de responder, deu-me um abraço e foi-se embora. Melodramático, este meu avô, mas interessante. Gostava de ter estado mais tempo com ele!

 

Joaquim Bispo 

* * *

(Esta crónica integra a coletânea resultante da edição de 2013 do Concurso Literário da Cidade de Presidente Prudente.)

 

* * *

 

Ilustração de Rodolfo Bispo: https://www.facebook.com/rodolfo.bispo.77

 

Retirado de Samizdat

publicado às 21:31

Breve dissertação sobre o palavrão

por Jorge Soares, em 04.10.14

Breve dissertação sobre o palavrão

 

 

Caros circunjacentes:

 

A minha preleção de hoje versa o palavrão em todas as suas aceções, o qual, segundo o dicionário Houaiss, pode ser considerado em três aspetos semânticos.

 

O mais popular, imediato e disseminado é o turpilóquio ou tabuísmo. Nesta forma torpe, explode, geralmente, boca fora, espontâneo e veemente, quando se é vilipendiado de maneira inopinada ou prepotente nas interações sociais. Sobrevém, amiúde, nas acrimónias do trânsito citadino, onde a peleja pelo espaço essencial do asfalto, faz colidir os interesses particulares. Então, nos píncaros da exaltação, aquilo que primeiro acode aos lábios, sem se subordinar a uma triagem nas circunvoluções da racionalidade, são considerações sobre as caraterísticas ou os hábitos excretais ou sexuais do pretenso agressor ou de algum membro da sua família. São expressões belicosas cuja significação pretende provocar algum constrangimento na autoestima do interlocutor acidental. Por exemplo: — Rastilho curto! — o que, como calculam, também achincalha o tamanho do autocontrolo dele.  

 

No entanto, para atingir o adversário de maneira cruenta e implacável, o vitupério, não precisa coincidir, morfologicamente, com um vocábulo de semântica obscena. Para tanto, a entoação deve colmatar a escassez de ignomínia. Recordo aqui a forma irretorquível como concluí uma altercação de trânsito, que deixou o meu antagonista em estupor, como touro lidado: — Ó meu caro amigo: Vodafone!

 

A forma mais vulgarizada, todavia, é a de aconselhar o contendor a encetar determinada atividade, ou a deslocar-se para determinado local, diferentes dos atuais, e que, na opinião do fustigador, se adequam melhor às caraterísticas do enxovalhado. As notícias da política internacional são um manancial de expressões com sonoridades e construções ortográficas que sugerem conotações soezes e insultuosas. Aquando da guerra na ex-Jugoslávia, ouvi uma feirante verberar outra, nos seguintes termos: — Vai pà Bósnia, sua Herzegovina! Se fosse agora, talvez dissesse: — Vai Bachar al-Assad com ISIL, sua Pechmerga! — o que me parece de uma gravidade inquestionável. Ninguém merece ver-se confrontado com esta alternativa.

Outro significado de “palavrão”, este com alto grau de adequação, é “palavra grande e de pronúncia difícil”. Quando era mancebo, pensava que o maior palavrão da língua portuguesa era “inconstitucionalissimamente”, com 27 letras. Hoje, constato que o palavrão que me enchia de orgulho era apenas um palavrinho, como pénis de menino. O do pai chama-se Paraclorobenzilpirrolidinonetilbenzimidazol, tem 43 letras e é uma substância farmacêutica. O do vizinho africano chama-se Pneumoultramicroscopicosilicovulcanoconiótico, tem 46 letras e significa “portador de uma doença pulmonar aguda causada pela aspiração de cinzas vulcânicas”.

 

O mundo destes palavrões é atroz. Embaraça qualquer estudante de medicina, mas, sobretudo, aterroriza o portador da doença Hipopotomonstrosesquipedaliofobia, a qual — crueldade das crueldades — é a “doença psicológica que se carateriza pelo medo irracional de pronunciar palavras grandes ou complicadas”. Imaginem o pânico do doente de ser inquirido sobre a denominação da sua própria enfermidade!

 

Estes vocábulos escaganifobéticos parecem-me denunciar o pérfido subterfúgio de arquitetar termos complicados, pela mera acoplagem, numa mesma palavra, de outras muito mais curtas. Por esta técnica, também posso autoqualificar-me como Homemextremamenteatraenteinteligentedivertido, epíteto de que só não faço uso por abominar redundâncias.

 

A terceira aceção de “palavrão” é “expressão pomposa e empolada”. Não me ocorre, por ora, qualquer exemplo ilustrativo. Locuções grandiloquentes e/ou de sentido ininteligível estão afastadas do meu discurso, o qual, como foi patente, é sempre despretensioso e matizado apenas por vocábulos lhanos e percetíveis por todos.

 

Tenho dito!

Joaquim Bispo

Retirado de Samizdat

publicado às 21:00

Conto - As minhas férias

por Jorge Soares, em 13.09.14

As minhas férias

As minhas férias foram em casa dos meus avós. Todos os anos as minhas férias são lá. A casa dos meus avós é grande mas parece um bocadinho pequena. Tem umas escadas e uma cave e muito mais quartos que a nossa casa, mas tudo parece um bocadinho mais baixo e apertado. Uma vez caí das escadas e não me magoei nem nada. Mas isso foi quando eu só tinha cinco anos. Nessa altura eu não sabia escrever nem nada porque ainda estava na infantil e agora até subo dois degraus de cada vez e as pessoas dizem que eu sou muito mexido. O meu avô até me disse que eu era um super-herói. Disse assim: ah, és tu, Filipe! Achei que era um super-herói que nos tinha entrado em casa. O meu avô gosta muito de super-heróis ou pelo menos é o que eu acho porque ele está sempre a falar-me deles. À mesa, quando os outros crescidos começam a ter conversas diferentes assim mais sérias e isso, o meu avô fica calado que nem um rato, que é como diz a minha avó, e depois só diz uma coisa ou outra quando lhe apetece ou quando se lembra de uma história divertida e então dá gargalhadas muito altas, mas não altas como quando às vezes ralham alto connosco e sim altas de fazer uma espécie de cócegas na nossa boca e termos de rir também e também alto como ele. As pessoas crescidas normalmente são diferentes. As pessoas crescidas normalmente não se riem ou riem-se de coisas que não têm graça nenhuma, pelo menos eu não acho, e às vezes param mesmo de rir a meio do riso como se uma gargalhada fosse uma coisa feia ou um palavrão muito mau. As pessoas crescidas não são nada como o meu avô. O meu avô é assim mais redondo e às vezes até parece que vai tropeçar e tudo. Mesmo quando está calado ou a dormir na poltrona castanha o meu avô não é nada sério e, como eu costumo dizer, isso é muito positivo. As pessoas crescidas normalmente não são nada positivas. As pessoas crescidas normalmente são muito levantadas e direitas e fazem lembrar árvores daquelas que estão sempre num conjunto de árvores e são muito iguais às outras todas, como os eucaliptos por exemplo. Um dia o meu pai foi comigo à mata que é como nós chamamos a uma floresta que há lá ao pé da casa dos meus avós, para aí a uns 2 km ou 3 km, e mostrou-me o que eram eucaliptos. Disse assim: estás a ver, Filipe? Isto aqui são eucaliptos. Eucaliptos. Mas nessa altura eu era muito pequenino e tinha mais ou menos quatro anos e por isso ainda não sabia dizer eucaliptos. Dizia de uma maneira diferente e engraçada mas agora já não me lembro. já passou muito tempo porque isto foi quando eu ainda era um bebé. Aos seis anos é a idade em que se fica mais crescido e eu já estou quase a fazer sete por isso vou rebentar a escala e claro já não sou um bebé.


Quando começam as férias vamos de carro para casa dos meus avós. E quando as férias acabam vimos para nossa casa também de carro, é só fazer o caminho todo ao contrário, mas por acaso às vezes parece mesmo que é outra estrada e que não foi por ali que viemos e nessas alturas eu penso para onde é que estamos a ir? Os meus avós são os pais da minha mãe. Os pais do meu pai morreram antes de eu nascer ou então quando eu era tão pequeno que não me lembro das caras deles. Um tio meu também morreu há pouco tempo e eu lembro-me muito bem da cara dele. A minha mãe disse-me que ele tinha subido para o céu porque era uma pessoa boa e então eu perguntei à minha mãe o que é que acontecia às pessoas que não eram tão boas e a minha mãe disse-me que também iam para o céu e depois eu ganhei coragem e perguntei-lhe e o que é que acontece às más? E a minha mãe disse que todas iam para o céu e eu aprendi isso. Deve ser bom estar no céu e passar por cima dos automóveis, principalmente quando está muito trânsito e as pessoas já estão chateadas de estar ali. A minha avó diz: não se diz chateadas, diz-se aborrecidas. Está bem, Filipe? Está bem, avó. A minha avó quer sempre que eu coma mais e às vezes ri-se de coisas que eu digo sem ser para rir e eu fico contente e depois volto a dizer essas coisas mas normalmente à segunda vez a minha avó já se ri com menos vontade. A minha avó diz que eu sou muito engraçado. Outras vezes diz que eu sou esperto mas não caço ratos. A minha avó não gosta nada de ratos mas está sempre a falar neles.

 

Jacinto lucas Pires

Retirado de aqui

publicado às 21:48


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