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Porque: "A vida é feita de pequenos nadas" -Sergio Godinho - e "Viver é uma das coisas mais difíceis do mundo, a maioria das pessoas limita-se a existir!"
Continuação do Conto Um rasto do teu sangue na neve de Gabriel Garcia Marquez, parte anterior aqui
- Fiz de propósito - disse -, para que reparassem no meu anel.
Continuação do Conto Um rasto do teu sangue na neve de Gabriel Garcia Marquez, parte anterior aqui
....e faziam a qualquer hora e em qualquer lugar, tratando de inventá-lo outra vez cada vez que faziam.
No começo fizeram da melhor maneira que conseguiam nos carros-esporte com os quais o papai de Billy Sánchez tentava apaziguar suas próprias culpas. Depois, quando os carros se tornaram demasiado fáceis, entravam de noite nas cabines desertas de Marbella onde o destino os havia posto cara a cara pela primeira vez, e até se meteram disfarçados, durante o carnaval de novembro, nos quartos de aluguel do antigo bairro de escravos de Getsemaní, ao amparo das mães-de-santo que até poucos meses antes tinham que padecer com Billy Sánchez e sua quadrilha de correntes. Nena Daconte entregou-se aos amores furtivos com a mesma devoção frenética que antes desperdiçava no saxofone, até o ponto de que seu bandoleiro domesticado terminou por entender o que ela quis dizer quando disse que tinha que se comportar como um negro. Billy Sánchez correspondeu sempre e bem e com o mesmo alvoroço.
Já casados, cumpriram o dever de se amar enquanto as aeromoças dormiam no meio do Atlântico, trancados a duras penas e mais mortos de rir que de prazer no banheiro do avião. Só eles sabiam então, 24 horas depois do casamento, que Nena Daconte estava grávida de dois meses. Quando chegaram a Madri sentiam-se muito longe de ser dois amantes saciados, mas tinham reserva suficiente para comportar-se como recém-casados puros. Os pais de ambos haviam previsto tudo. Antes do desembarque, um funcionário de protocolo subiu à cabine de primeira classe para levar a Nena Daconte o abrigo de visom branco com franjas de um negro luminoso, que era o presente de casamento de seus pais. Para Billy Sánchez levou uma jaqueta de cordeiro que era a novidade daquele inverno, e as chaves sem marca de um carro de surpresa, que esperava por ele no aeroporto. A missão diplomática de seu país recebeu-o no salão oficial. O embaixador e sua esposa não apenas eram amigos desde sempre da família de ambos, mas ele era também o médico que havia assistido o nascimento de Nena Daconte, e esperou-a com um ramo de rosas tão radiosas e frescas que até as gotas de orvalho pareciam artificiais. Ele cumprimentou os dois com beijos de deboche, incomodada pela sua condição um pouco prematura de recém-casada, e em seguida recebeu as rosas. Ao apanhá-las picou o dedo com um espinho do talo, mas superou o percalço com um recurso encantador.
- Fiz de propósito - disse -, para que reparassem no meu anel.
......
Continua
Jorge
PS:Imagem minha, retirada do blog Momentos e olhares
Continuação do conto O Rastro do teu Sangue na neve, de Gabriel Garcia Marquez, parte anterior aqui
- Vi maiores e mais firmes - disse, dominando o terror. - Portanto, pense bem no que você vai fazer, porque comigo vai ter de se comportar melhor que um negro.
Na verdade, Nena Daconte não apenas era virgem, como nunca até aquele momento havia visto um homem nu, mas o desafio acabou sendo eficaz. A única coisa que ocorreu a Billy Sánchez foi disparar um murro de raiva contra a parede com a corrente enrolada na mão, e despedaçou os ossos. Ela levou-o em seu automóvel para o hospital, ajudou-o a superar a convalescença, e no final aprenderam juntos a fazer o amor de boas maneiras. Passaram as tardes difíceis de junho na varanda interior da casa onde tinham morrido seis gerações de próceres da família de Nena Daconte, ela tocando canções da moda no sax, e ele com a mão engessada contemplando-a no mormaço com um estupor sem alívio. A casa tinha numerosas janelas de corpo inteiro que davam para o tanque de podridão da baía, e era uma das maiores e mais antigas do bairro da Manga, e sem dúvida a mais feia. Mas a varanda de lajotas axadrezadas onde Nena Daconte tocava sax era um remanso no calor das quatro, e dava para um pátio de sombras grandes com pés de manga e de banana-ouro, debaixo dos quais havia uma tumba com uma lousa sem nome, anterior à casa e à memória da família. Mesmo os menos entendidos em música pensavam que o som do saxofone era anacrônico numa casa de tanta estirpe. “Parece um navio”, dissera a avó de Nena Daconte quando ouviu pela primeira vez. Sua mãe havia tentado em vão de que o tocasse de outro modo, e não como ela fazia por comodidade, com a saia puxada até as coxas e os joelhos separados, e com uma sensualidade que não lhe parecia essencial para a música. “Não me importa que instrumento você toca”, dizia, “desde que toque com as pernas fechadas.”
Mas foram esses ares de adeuses de barcos e essa obstinação de amor que permitiram a Nena Daconte romper a casca amarga de Billy Sánchez. Debaixo da triste reputação de bruto que ele tinha, muito bem sustentada pela confluência de dois sobrenomes ilustres, ela descobriu um órfão assustado e manso. Chegaram a se conhecer tanto enquanto soldavam-se os ossos de sua mão que ele mesmo se assombrou da fluidez com que ocorreu o amor quando ela levou-o à sua cama de donzela numa tarde de chuvas em que ficaram sozinhos na casa. Todos os dias naquela hora, durante quase duas semanas, rolaram nus debaixo do olhar atônito dos retratos de guerreiros civis e avós insaciáveis que os haviam precedido no paraíso daquela cama histórica. Mesmo nas pausas do amor permaneciam nus com as janelas abertas respirando a brisa de escombros de barcos da baía, seu cheiro de merda, e ouvindo no silêncio do saxofone os ruídos cotidianos do pátio, a nota única do sapo debaixo das matas de bananeiras, a gota d’água na tumba de ninguém, os passos naturais da vida que antes não tinham tido tempo de conhecer. Quando os pais de Nena Daconte regressaram à casa, eles haviam progredido tanto no amor que o mundo já não era suficiente para outra coisa, e faziam a qualquer hora e em qualquer lugar, tratando de inventá-lo outra vez cada vez que faziam.
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Continuação do conto O Rastro do teu Sangue na neve, de Gabriel Garcia Marquez, primeira parte aqui
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-É só um espinho
Antes de Bayonne voltou a nevar. Não eram mais que sete da noite, mas encontraram as ruas desertas e as casas fechadas pela fúria da borrasca, e após muitas voltas sem encontrar uma farmácia decidiram continuar em frente. Billy Sánchez alegrou-se com a decisão. Tinha uma paixão insaciável pelos automóveis raros e um papai com demasiados sentimentos de culpa e recursos de sobra para agradá-lo, e nunca havia dirigido nada igual àquele Bentley conversível de presente de casamento. Era tanta a sua embriaguez ao volante que quanto mais andava menos cansado se sentia. Estava disposto a chegar naquela noite a Bordeaux, onde tinham reservado a suíte nupcial do hotel Splendid, e não haveria ventos contrários nem neve suficiente no céu para impedi-lo. Nena Daconte, por sua vez, estava esgotada, sobretudo por causa do último trecho da estrada de Madri, que era uma pirambeira de cabras açoitada pelo granizo. Assim, depois de Bayonne enrolou um lenço no dedo, apertando bem para deter o sangue que continuava fluindo, e dormiu.

A primeira coisa que li do Gabriel Garcia Marquez foi o conto El rastro de tu sangre en la nieve, na altura eu teria 13 ou 14 anos e chegou às minhas mãos um exemplar do Jornal Diário de Caracas. Nessa altura este jornal, que acho já não existe, tinha um suplemento cultural e nesse dia publicavam este fabuloso conto do Gabo, que muitos anos depois seria publicado no livro Doze contos peregrinos.
É uma historia triste, quando terminei de ler as 4 páginas que ocupava o conto no jornal fiquei com um sentimento de uma enorme solidão, desde os seis anos que sou um leitor compulsivo, consigo ler quase tudo o que me vem parar às mãos e não me lembro de ter lido outra historia com um final que me deixa-se essa sensação de solidão, nesta historia o escritor consegue passar para o leitor todo o sentimento da sua personagem.
Para mim foi uma descoberta, Gabriel Garcia Marquez é um escritor com uma capacidade descritiva fantástica, ao ler o conto sentimo-nos a andar pelas ruas de Paris, conseguimos visualizar o hotel, as casas e cada uma das personagens torna-se familiar.
Depois de este conto, acho que li quase todos os livros de Garcia Marquez, o primeiro foi Cem anos de solidão, o ultimo Memórias de mis putas tristes (por certo, Sofia, o meu livro?)
Tudo isto vem a propósito de que andava a navegar e não sei como fui parar a esta página:
http://www.ciudadseva.com/textos/cuentos/esp/ggm/rastro.htm
donde podem ler o conto, está em Espanhol, já googleei um bocado mas não encontrei a tradução, de todos modos, está no livro,12 Contos peregrinos.

Jorge
PS:Obrigado a http://andoaleristo.blogspot.com/2006/02/doze-contos-peregrinos.html, por ter emprestado a imagem do livro.........:-)