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Porque: "A vida é feita de pequenos nadas" -Sergio Godinho - e "Viver é uma das coisas mais difíceis do mundo, a maioria das pessoas limita-se a existir!"
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De repente, tudo o que se fala tem a ver com bebês. Descoberta de gravidez, previsão de chegada, batimentos cardíacos normais, ultrassons, chás de bebê, decoração de quarto de recém nascida, partos sem grandes traumas, visita à maternidade, estado de graça, babação, fotos e mais fotos, muito contentamento. Adoro crianças, especialmente as menores, e acho que essa movimentação de vida que começa dá uma leveza ímpar aos humores das pessoas, faz durar nosso estado de alegria. Tenho reparado até certa cobrança, afinal de contas quando se cumprem as regras sociais que dão origem às famílias no sentido tradicional não é apenas o relógio biológico que pede satisfações. Apesar de a última semana ter sido cheia de notícias assim, há uma lembrança sobre gestação que dá voltas na minha cabeça, uma história difícil.
A Laura nunca foi do tipo que arrasta tristeza pelo chão, mas nos últimos meses olhava para sua vida e não conseguia ver nada de bonito, de colorido, de seu. Do lado de fora da porta de entrada, aconchegada sob o cobertor na cadeira de balanço, ela desembrulhou sem entusiasmo o presente de Daniel. Era a décima oitava terça-feira desde aquele dia e o primo insistia em fabricar uma intimidade que, por Laura, jamais teria lugar para existir. Os dois foram criados muito próximos e os parentes tratavam com naturalidade a mania que ele tinha de cercá-la. Um dia isso passa, comentavam após almoços, deixa ele conhecer mulher, garantiam os tios. Mas não passou. Numa manhã bem cedo Daniel valeu-se da ausência dos pais de Laura na casa do campo, entrou sem fazer barulho, subiu as escadas, abriu a porta do quarto dela e entrou. Houve grito, houve socos, houve choro e pedido de socorro, mas não havia ninguém por perto, com ouvidos de ouvir.
Dentro da caixa do presente, novelos de lã vermelha e sapatinhos de bebê recortados da revista. Perdeu o que restava de graça a Laura, que nos últimos dias sentava no mesmo lugar, na mesma hora, a tricotar um blusão cinza de gola alta. Pensou na avó paterna, que lhe ensinou a colocar os pontos na agulha e a tramar as primeiras carreiras. Lembrou da rigidez da velha e quase ouviu a voz grave de repreensão: isso não é ponto que se dê, criatura! Apertado desse jeito, vai terminar um ninho de camundongos o teu tricô. Pode desmanchar e fazer de novo, com decência. Teve medo de imaginar como a avó a trataria se fosse viva e soubesse que.
Sabia que estava perdida, nem sinal de menstruação. Confirmou o adiantado do blusão, já tinha as mangas e as costas prontas. Começava a frente com as agulhas mais finas, de número 4, como havia aprendido. Quinze, dezesseis, dezessete pontos, aflição. Olha, não é que eu não te queira, não é isso. Vinte e nove, trinta. Eu não posso contigo e não suporto de onde tu vens. Não tenho um corpo que possa te servir de casa em tempo algum. Do meu desgosto jamais nasceria exemplo e retidão de heranças para ti. Eu não tenho nada de bom para te oferecer, nem buscando lá no fundo. Cinquenta e cinco. Não sou nada. Acho que nunca cheguei a ser. Laura dizia coisa para dentro, numa conversa longa e necessária, sem perder-se nas contas.
Respirou fundo e, decidida, arrancou a agulha dos pontos, passando-a para baixo do cobertor. Sem provocar suspeitas dos pais que iam e vinham do campo e entravam na casa com frequência, envolvidos que estavam com as ovelhas, puxou com calma a saia para cima das coxas, arredou a calcinha para o lado com uma das mãos. Segurou firmemente a agulha e cravou o próprio ventre. Diversas vezes. Aguentou a dor sem choro até o fim. Até o frio. Anoitecia e Laura tinha olhos vidrados no horizonte de árvores verdes.
Andreia Pires
Retirado de Samizdat
pecado
Pouco a pouco tem-se vindo a fazer luz sobre os motivos que levaram Bento XVI a abdicar, entre noticias sobre lavagem de dinheiro no banco do Vaticano, as fugas do seu secretário pessoal, esta semana surgiu em Itália uma noticia em que teria sido um extenso relatório sobre os abusos sexuais e a existência de uma rede prostituição homossexual protegido por um lobby gay que estenderia os seus tentáculos ao próprio Vaticano, o que teria levado à demissão do papa.
Entretanto por cá foi noticia a existência de queixas de assédio sexual por parte de um padre católico contra o bispo Carlos Azevedo, queixas que seriam do conhecimento de muita gente e da própria cúria religiosa portuguesa.
De tudo o que fui lendo durante a semana há coisas que me parecem que são mais que evidentes, pelos vistos ninguém tem duvidas nem nega que o Bispo seja homossexual, o que não impediu que este continuara o seu percurso dentro da igreja, sendo inclusivamente um dos principais nomes para suceder ao patriarca da igreja portuguesa.
Tudo isto só prova como a igreja católica consegue ser hipócrita, se por um lado condena veementemente a homossexualidade, o casamento entre pessoas do mesmo sexo e qualquer tipo de relação que fuja ao que para eles é normal, por outro lado não tem problema nenhum em fechar os olhos quando há suspeitas de que entre os seus principais há homossexuais, mesmo quando estes são formalmente acusados de assédio sexual.
Entretanto hoje foi noticia no Sol que para a igreja católica, pelo menos quando estão envolvidos membros da sua hierarquia, o pecado prescreve ao fim de 5 anos, ou seja, os supostos crimes de assédio sexual cometidos pelo bispo há muito que deixaram de ter importância..
E pensar que há tanta gente que na hora da morte se arrepende de tudo o que viveu só porque acha que está condenado ao inferno... alguém lhes devia dizer que não, que é só os pecados dos últimos 5 anos... pelo menos tinham uma morte mais descansada... por outro lado, isto devia fazer a todos os crentes terem uma perspectiva diferente da vida... afinal, quem é que está a pensar morrer nos próximos 5 anos?
Jorge Soares
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Nos tempos de Homero, era público que os deuses interferiam na vida dos homens, às vezes por motivos mesquinhos e de maneira impertinente. Nos tempos que correm, não pensamos em deuses traquinas quando as nossas vidas tomam rumos inesperados, mas ficamos desconfiados da qualidade do argumentista da nossa realidade.
Há tempos, na Alemanha, um casal, desesperando de não conseguir ter filhos, como tantos outros, obteve dos testes de fertilidade a mais cruel das respostas: o marido era infértil.
Para qualquer ser humano, esta é uma notícia perturbadora. O seu eu físico, genético, fica por ali, não se prolonga para lá dele, a eternidade fica condenada. Resta a possibilidade de prolongar o seu eu cultural, memético, que, para muitos, é até mais identitário. Para isso, há que arranjar uma criança, dê por onde der: adopção, barriga de aluguer, inseminação artificial. Nesta última, ao menos, a parte genética da esposa está presente.
Foi isso que os membros do casal alemão – ele de ascendência grega, 29 anos, e ela por aí – decidiram, mas, em vez de recorrerem a um banco de esperma, contrataram um vizinho para cumprir a parte do fornecimento seminal, devido ao facto de ter extraordinárias parecenças físicas com o marido infértil. Além disso, o vizinho dava garantias de sucesso: era casado e pai de dois filhos, bem bonitos, por sinal.
Será que, a partir daí, entregaram o processo a um laboratório que se encarregasse de recolher o esperma do vizinho e o colocasse no útero da mulher? Não. Fosse porque desconfiam da tecnologia, ou por outra razão não revelada, o combinado foi que o vizinho copulasse com a senhora, de modo natural, três vezes por semana, até que ela engravidasse.
Não sabemos o que sentiu o vizinho quando foi convidado, mas adivinhamos. Deve ter agradecido a todos os deuses do panteão germânico a graça que lhe tombou na cama. Copular de forma descomprometida, sem ameaças de responsabilidades futuras, é a ambição de quase todos os homens. Todas as fantasias masculinas tilintam de alegria ante tão excitante perspectiva. Além disso, consta que a senhora é uma estampa de mulher, pelo que não se percebe por que foi preciso pagar 2000 euros ao vizinho que, com 34 anos, não devia precisar de tal incentivo. Estamos, certamente, perante um excelente negociador que obteve um pagamento pelo que teria feito de graça, alegremente. Na verdade, foi só com o dinheiro que estava a ganhar que ele argumentou à própria esposa, quando ela tomou conhecimento do propósito das inúmeras saídas nocturnas do marido.
Neste ponto, tudo parecia correr bem e a contento de todos: o vizinho tinha o melhor trabalho do mundo; a sua mulher confortava-se com a entrada da receita extra; o homem esperava ter em casa, brevemente, uma criança parecida consigo, para educar; a mulher iria, finalmente, ser mãe, de maneira totalmente humanizada, sem ter de recorrer a impessoais burocracias e frios procedimentos laboratoriais. Mas, pode-se especular que o facto de saber quem era o pai poderia vir a ser de enorme utilidade, se fosse necessário apontar a paternidade biológica, em caso de futuras carências económicas da criança – que estas contas não se pensam, mas estão sempre presentes na contabilidade genética inconsciente de cada um – que os genes não brincam na hora de garantir a preservação.
Foi neste ínterim que Zeus – quem mais? – interveio, para gorar os planos deste grupo tão bem conluiado. Talvez se tenha apiedado da posição humilhada do seu infértil compatriota, talvez tenha querido mostrar a Odin qual o panteão mais poderoso, ou talvez tenha ficado invejoso da sorte olímpica do vizinho – que ele, apesar de Zeus, tem de tomar formas de cisne, de touro, ou outras, para conseguir unir-se à mulher ou até à deusa que deseja.
Bem que o vizinho alemão se esforçava, pontual e assiduamente, mas a senhora não engravidava. A eficiência do copulador contratado não merecia reparos, mas, ao fim de seis meses e setenta e duas jornadas de trabalho, o casal começou a duvidar da sua eficácia para terminar a obra dentro do prazo previsto e intimaram-no a provar as habilitações. Mais uma vez, a resposta laboratorial foi desoladora – também o vizinho era infértil – só que, desta vez, com consequências mais devastadoras.
O alegre copulador passou, repentinamente, de o mais feliz dos homens para um dos mais castigados pela sorte: não só a mulher o tinha traído, como os filhos não eram seus e – supremo golpe – não poderia vir a tê-los.
Ela, quando confrontada sobre a origem da prole, ainda tentou desculpar-se com Odin, disfarçado de padeiro, uma vez, e de técnico de televisão por cabo, da outra, mas o marido já não vai em mitologias e exigiu o divórcio.
Do casal de soluções criativas, a mulher voltou à estaca zero, ou antes, à estaca um, e, provavelmente, tenta lembrar-se onde é que viu um outro homem parecido com o marido; este, dada a ausência de resultados do contrato em que tanto investiu, sente-se o mais manso dos herbívoros e, para readquirir alguma dignidade, lançou um processo judicial contra o vizinho, para tentar recuperar, ao menos, os 2000 euros. Além disso, deve precisar deles para o próximo contrato.
O vizinho, que também pode vir a precisar, foi quem mais perdeu, apesar das benesses. Não quer devolvê-los, argumentando que forneceu a mão-de-obra – salvo seja – conforme combinado, mas nunca garantiu a consecução do projecto.
O caso está para ser decidido pelo tribunal de Estugarda, e é por isso que dele tomámos conhecimento, através do jornal Bild – que pela boca de Zeus jamais o saberíamos.
Joaquim Bispo
Retirado de Samizdat
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Semana passada, ia eu andando pela Avenida Paulista e, como era bom admirar tantos casais imprevisíveis, inter-raciais. Muito japa com preto, coisa rara de se ver no Rio de Janeiro. Entre tanta gente, meu olhar mais se fixava nos gays. Vi uma menina beijando outra, tão meigas, tão doces; sincera a cena me pareceu. É bonito e democrático sentir e compartilhar a presença do amor entre homens e entre mulheres, mãos dadas na urbanidade. Reparo e curto, pois não estou acostumada a ver o homo- amor assim pelas ruas; (será que vão pensar que é um tipo de sabão em pó só para amantes?). Acho que falta esse tipo de amor como romance. Não se vê nas telenovelas uma história normal, um idílio entre iguais em gênero. O amor, para que saibam, não é um privilegio de héteros. Assim fosse, seria proibido com eficiência que se apaixonassem e se queressem. Mas não, o que o famoso senso comum, a moral dominante e as leis conseguiram era impedir a oficialização das uniões, mas não às uniões. Faltam mais filmes no circuito popular, mais circulação de livros sobre o amor entre os do mesmo sexo. Não precisa ser só vídeo de sacanagem e na hora da sacanagem. São histórias de amar como qualquer outra. E o amor é lindo onde estiver. Prefiro milhões de vezes assistir ao lindo segredo de Brokeback Mountain do que ao amor entre uma mocinha boba e um vampiro e suas sangrias. Todo mundo sabe que vampiro não é bom partido para ninguém. Portanto se apaixonar e ter como príncipe aquele que nos chupa o sangue, pode não ser educativo para uma mulher cuja sociedade ainda não admite que o homem não seja seu dono absoluto.
Tenho tantos amigos gays e isso não me incomoda nada. Qual o problema de existir quem se queira e seja do mesmo sexo? Por que isso ameaça tanto? O que realmenta ameaça? Já é hora da civilização, que se acha tão moderninha, se perguntar essas coisas de gente grande. Ter uma conversinha consigo mesmo e parar de dar bandeira, de se tornar tão vulnerável, de se sentir tão ultrajada pelo amor entre iguais. Se eu namorasse alguém assim, homofóbico, obsecado pelo tema, eu ia avaliar com mais profundeza a masculinidade dele. Ninguém faz vestibular para escolher seu objeto de amor. Quando se sabe que se é, já se é há muito tempo.
Conheço mil relatos de meninos que, aos onze ou até antes, se surpreenderam quando perceberam o desejo pelo coleguinha. Criados para casarem com a namoradinha, no horror desta descoberta de ser portador de tão horroroso pecado, os pequenos gays vivem com muito medo desta verdade da qual por não saberem que não é um erro, também não sabem que não são culpados! Na minha infância quando a fofoca do bairro comentava: menina o Zé Maria, virou, né? Minha avó, mesmo sendo católica e apostólica, dizia logo sem surpresa: “ah, isso é mais antigo que Roma!” Pura verdade. Não houve um ano, que eu saiba em que se disse do ADVENTO da homossexualidade. Sempre houve e é dos humanos e alguns outros animais. Sempre houve, só que mais escondido que hoje. Tinham, quando homens, que se casar com uma mulher, desejando o irmão dela. Ou, se mulheres, sonhando com a cunhada. Quando finalmente é permitida aos gays a união oficial e oferecido às escolas um conteúdo de educação de gêneros que não exclua nem discrimine as relações homo-afetivas, estamos falando de Direitos humanos! Se eu preferisse mulheres eu ia andar, mesmo que fosse na Paulista com medo de ser agredida por que estou apaixonada pela minha namorada e o demonstro na rua como fazem os casais onde o amor está vivo e permitido. Por isso é inadmissivel que o Bolsonaro, ocupando um cargo federal, recebendo salário pago pelo povo, traia este povo com tantos absurdos. Bizarras atitudes e palavras o tem exposto aos que ele representa, da pior maneira. Cabe ao parlamentar, é de sua competência, representar o povo, pelo povo e para o povo que o colocou ali através do voto. E se um viado desavisado votou nele? (desculpem, não podia perder a rima e a graça). E ainda que não tenha votado, o que acho difícil, isto não importa. Governa-se para todos. Pra mim é grave o que estamos assistindo. Creiam-me, os que respeitam a liberdade pela qual tantos morreram para conquistar: Quanto mais brancos se posicionarem e não facilitarem a disseminação do racismo, melhor para todos; quanto mais homens contra a violência doméstica, quanto mais héteros se declarando pelos direitos dos gays, mais reforço e credibilidade ganham os temas . Senão, pode parecer papo de gueto. Tanta violência na TV, nos computadores, incitando e ensinando a violência seguida de morte e isso não incomoda tanto quanto o romance entre os homossexuais. Arma de fogo é que não é normal. Há uma flor que se chama Amor dos Homens. Meu coração não suporta guerras. Prefiro a flor e o amor dos homens.
Elisa Lucinda
Retirado de GÊNERO, SEXUALIDADE, EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE
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Quando achamos que já vimos tudo, afinal,... é que nem sei bem o que dizer, que coisas como estas aconteçam no nosso país em pleno século XXI, diz muito sobre a forma como ainda nos falta evoluir como sociedade. Infelizmente este tipo de comportamentos tem por base a ignorância e o desconhecimento. Existem uma série de mentiras e estereótipos associados à diferença que as pessoas dão como verdades absolutas, como se só os heterossexuais merecessem respeito. Para eles o que é diferente, o que não segue os seus preceitos de "normalidade", não merece respeito.
Há muita gente que vive amarrada aos seus fantasmas, como se só elas fossem donas da verdade, sem aceitar que existam pessoas que pensam, que agem, que vivem de forma diferente. E não é necessário ser homossexual para se ser vitima, porque esta realidade aplica-se a toda e qualquer diferença, se pensarmos bem, qualquer um de nós pode ser vitima de um destes comportamentos, porque afinal, o que é ser "normal"?
Quanto a mim este senhor devia ter sido preso por maltrato ao filho e tentativa de abandono, como dizia alguém hoje no Facebook: "era bom que a noticia terminasse com: "...e polícia, após o sucedido, entregou pai na instituição de ajuda mental mais perto, sendo que até ao momento não se perspectiva a saida do mesmo nos próximos anos."
Jorge Soares
Por enquanto, ela se dispunha só assim: de olhos fechados. E se abrisse os olhos e se lhe perguntassem para onde olhava, não saberia responder — decidira-se, por fascinação, a um inicio; inclusive se havia disposto a estar somente de olhos fechados. Tudo era partida: despira a roupa e postara-se de quatro, sobre os joelhos e sobre as palmas das mãos, e ainda sem entender o que viria a seguir, pensou — um pensamento capaz de assombrar a precariedade que tem uma mulher nua, de quatro e de olhos fechados — pensou que se uma pessoa fizesse apenas aquilo que alcança o entendimento, não avançaria um passo. Mas não era caso de avançar, não era caso de entender, era só caso de dispor-se ali, à espera, nua, de quatro, olhos fechados, conforme lhe fora dito. Conforme lhe ordenara o homem de alguma idade que se havia sentado na cadeira junto à cama e que lhe pedira tire a roupa, não me olhe, quero lhe ver primeiro. Para não ficar sozinha, para não ficar sem ele, obedeceu.
E então, na troca de um momento a outro, sentiu-se tocada com a polpa macia de lábios e se contraiu num espasmo que não era ainda desejo, um espasmo que era a nascente de uma expectativa. Na solidão escura dos olhos fechados,já não estava sozinha sobre a cama. Nua, indefesa e sem saber das coisas adiante, transformara-se numa pessoa de intensa espera.
Um rastro de tepidez alisou a coxa, a nádega e as costas, e a respiração morna do outro ergueu-lhe um arrepio. Suave, o homem, agora tão irreconhecivelmente suave, o homem filigranou as voltas de sua conformação, cioso trabalho de minúcia, demorando a boca e língua onde ela desejava — onde ela ia, aos poucos, querendo. Assim, lenta, se armou a cobiça, feito maré montante, feito mar de braços abertos arfando num pulso de ida e vinda. O homem falava coisas, falava; e ela entendia, entendia. Logo foi um refluxo de queimor, e o pulmão agitava-se, e se revolvia no ventre uma força tão grande de agudeza, que sua vontade era estar entregue — como se, nua, olhos fechados, de costas para o outro, representasse a confiança máxima, como se bastasse confiança para estar entregue. Quero lhe ver primeiro, não me olhe, era a vontade do outro, aquele que dizia coisas, que lhe raspava as ancas com as unhas, que lhe fustigava com os dedos cavando um oco no meio do ventre, um buraco a ser tapado, um buraco. Ela, que não sabia, que ainda não olhava, quis dar volta com o corpo, quis ver no rosto a quem lhe pedira, não me olhe. Mas nada podia, olhar não podia, ver não podia, e fez na mente o rosto do homem, esse de alguma idade, de músculos frouxos, cabelos ralos, óculos postos, que entrava na sala de aula em alguns dias da semana, que na saída da classe de hoje, depois de apagar as equações no quadro-negro, chamara por ela: vem comigo. Vem comigo, e ela crescera de repente, tornando-se grande para conter a si mesma dentro da exigüidade de menina, tão agitada, tão ansiosa, tanto de tudo o que vinha de sonhar com aquele homem, o mesmo que agora subtraía-lhe da visão e que, dizendo coisas, a sulcava. Tentou, mas não pôde, imaginá-lo na nudez e, forcejando, numa intensa abstração, viu-o na ardência — ardente por ela. Deu-se conta que se armara uma pose de bicho, como um bicho roçando a carne que a mimava, como um bicho impelindo-se contra o rosto do outro, feito bicho fermentando o desejo na pele dos dedos e na dureza das unhas do homem; era um animal querendo a queimação. Tinha virado nisso, numa corda tensa, os músculos vibrando sangue, os braços já quase dormentes, o ventre pedindo, os seios suspensos sobre o travesseiro, o rosto tapado de escuridão. Ela inteirava-se de seu estado de mulher estando com um homem, não mais um menino, um homem mesmo, de punhos duros, veias salientes, pêlos grossos, como se fosse essa a grande generosidade do mundo. E então era isso, como se, conforme ele dissera, conforme ele prometera — desobrigara-a de amá-lo e, sem obrigação de amor, ela podia exonerar-se do mundo e não mais precisava estar perturbada com a piedade. Sabia que estava bem perto de ser feliz, quase ali, ao alcance, um pouco mais, e não o olhava, porque, se olhasse, na certa acabaria por ter laços, aqueles que estava proibida de ter. Porque, se olhasse, a mágica estaria acabada e seriam dois infelizes naquele quarto.
De repente, sentiu a pressão e o peso sobre as costas, tudo demais para seu corpo: o rosto afundou contra o travesseiro, as ancas levantadas, as mãos de poder retendo-lhe a carne, atando-a, ele um ser de músculos frouxos, cabelos ralos, locupletando-se, e ela sem poder olhá-lo no rosto, sem poder enxergar a contração da boca, os sulcos das rugas, a boca crispada. Buscando apoio nos punhos, jogou-se com força para trás, e o homem retribuiu o impulso com força e mais força e disse-lhe coisas, arremeteu-se ainda com mais vigor, e ainda mais, até que ela não suportou, o corpo desistiu, estirando-se no colchão, o rosto em atrito contra o travesseiro, os seios nos lençóis, e ele veio junto, como se estivesse grudado, como se fosse de arrasto, como se fosse legítimo ele negar-se à visão, como se só fosse legítimo os dois corpos ligados. O homem gemeu. Para ela, por mais que ansiasse, foi de repente a compreensão: já não havia tempo. Mais uma vez o homem gemeu e lançou-se sem dó, sem pena. Mais uma vez o gemido, e outro, e ele, rápido, arfou e disse coisas e insistiu nela, cada vez mais rápido, cada vez mais, e ela agora sem jeito, dispondo-se, contornando-se ao prazer alheio, fazendo-se o vaso das coisas que viriam. Foi quando ouviu:
— Meu amor.
E ela, que não era amor de ninguém, compreendeu que estava alforriada pela impostura, que tudo estaria acabado a partir de agora: finalmente abriu os olhos, finalmente e a tempo de ver o homem que tombou abatido e inútil a seu lado na cama. Meu amor, ele ainda ousou repetir, esforçando os lábios numa palavra que não cabia em sua boca, não no meio daquela cama no meio daquele quarto de solteiro. O homem limpou-se com o lençol e, antes de fechar os olhos baços rumo ao sono, deu-lhe um sorriso, como se fosse meigo ou terno, brando só porque esteve nu e se repletou numa mulher.
Ela deu de mão no mesmo lençol, enfrentando, magoada, a textura úmida. Com as pontas dos dedos, arremeteu-o aos pés da cama. Afofou o travesseiro e estendeu-se ao lado do homem, apequenada numa espécie de resignação: ele fizera nela as coisas que são só ânsia, às quais não correspondem doçura nenhuma, nas quais só se ama, ou se diz que se ama, um pouco antes do fim. Quis, porque era moça, porque se acostumara à maciez da companhia, quis encostar o rosto ao peito magro, sentir o pulmão respirando em compasso sereno; quis, como quis, merecer o sagrado de uma pele que descansa. Não podia, não com aquele homem, não com aquele cuja imagem fazia nascer um enjôo doce.
No entanto, não sossegava. Como se ainda não pudesse caber na quietude, apoiou-se sobre o cotovelo e viu o homem de carnação débil e de músculos frouxos. Viu mais: o homem galante ao entrar na sala de aula, a fala pausada, um deus de letra redonda, pensou no que havia pensado que teria com ele, nas coisas que falava, no amor prometido por descuido, e reacendeu. Os dedos migraram sobre os pêlos grisalhos do peito, atravessando o ventre alteado, até espalmar a mão. Um tremor. Retrocedendo séculos, ela apenas queria, como uma ancestral épocas antes quisera. Mas era sozinha que tinha de estar com o outro, porque o outro que cabia naquela cama lhe havia roubado, com suas ordens e seu sono, a presença salvadora. E, vendo o homem que dormia, extinto do quarto e apagado das coisas, resolveu apaziguar-se. Com medo de mexer errado em si mesma, foi cuidadosa. Para si mesma, podendo olhar-se inteira, teve zelo e paciência.
Antes que o mundo lhe sobreviesse, antes de se tornar fina e limpa a atmosfera, antes mesmo de o prazer surgir da solidão a que fora arrojada, cometeu: beijou os lábios do homem. Foi então que se uniu a ele, só quando pôde beijá-lo e só naquele instante seco, para nunca mais. E depois de beijá-lo, depois de compor e desatar nós, e sem que ele sequer se inteirasse de um mundo que se construía e desmoronava a seu lado, a moça deitou-se de olhos abertos. E as pupilas estavam largas, tranqüilas, vingadas. A penumbra começava a azular as cores do quarto.
Acordou de um sono muito curto e sobressaltado. Ele continuava lá, de costas para ela. Naquele pouco tempo, fez-se o movimento das miudezas, e ele, com sua ausência, havia transformado a nudez e o prazer de ambos em blasfêmia. Cheia dos odores, acendendo as luzes pelo caminho, foi até o banheiro e encheu de água o côncavo das mãos, espargindo rosto e colo. Mas ainda não era o suficiente, e esqueceu-se muito tempo sob a água da ducha. Enxugou-se com uma toalha áspera. Foi até o quarto e, tateando, encontrou o interruptor que fez brilhar a lâmpada fraca e amarela. Vestiu-se. O homem dormia numa fragilidade tão grande de corpo lasso e de músculos frouxos. Cobriu-o com o lençol, protegendo-o. Piedosa, de volta ao mundo, juntando sua nova sabedoria, beijou-lhe a fronte.
Bateu a porta. No corredor do edifício, era partida.
Saiu à rua de olhos muito abertos. Pensou que uma pessoa deveria fazer apenas aquilo que entendesse. E seguiu pela avenida vazia de fascinação.
Cíntia Moscovich
Retirado de Releituras
Hoje foi a reunião na escola da R., como a P. tinha ido ontem à do N. a mim calhou-me esta, foi uma reunião pacifica, a directora de turma é daquelas que faz a festa toda, dá a música, atira os foguetes e apanha as canas, mas é pacifica e a coisa até correu bem.
O ponto alto da reunião foi quando se tratou do tema da educação sexual, a coisa até estava a correr bem, até que alguém tocou o tema da homossexualidade e é claro o assunto do momento que também ia pacifico até que uma das mães decide sair-se com a seguinte:
-Vejam lá o que aconteceu com aquela pobre criança, que se deixou levar pelas más influências e vejam no que deu.
É claro que ante uma afirmação destas eu não me podia calar,
-Criança, mas qual criança?
-Criança sim, porque ele era uma criança que se deixou influenciar
-Mas ele não tinha 21 anos?, isso não é uma criança, é um adulto que sabe bem o que quer.
-Não, ele era uma criança e deixou-se levar na conversa daquele tipo.
Aqui a professora entendeu que a coisa ia descambar e mudou rapidamente de assunto.
Eu não conhecia o Carlos Castro de lado nenhum, juro, nem sabia que o senhor existia, muito menos o Renato Seabra, muito menos da sua orientação sexual, mas a mim há uma coisa que me parece clara, independentemente do que estavam lá a fazer, se eram ou não namorados, estavam ali dois adultos e um matou o outro de uma forma que tem contornos de sadismo.
Não sei como, mas tal como aquela mãe na reunião da escola, há muita gente que parece que vê o morto como culpado e o assassino, que até já confessou, como a vitima. Parece que o facto de um ser homossexual e o outro um bom rapaz de Cantanhede faz as coisas mudar... deve ser da distância, Nova Iorque é muito longe e em inglês, agressão, morte violenta e castrado, dizem-se de outra forma.
Eu juro que já tentei, mas depois de tudo isto eu não consigo ver mais que alguém que morreu e alguém que matou, quanto ao facto de o assassino confesso ser um bom rapaz, espero que ninguém me leve a mal, mas o que define se alguém é boa ou má pessoa não é a opinião que os outros querem fazer passar, são os actos... e a mim não há quem me convença que quem mata com estes requintes de malvadez, é boa pessoa.
Jorge Soares
Encontrei a noticia no Público, o Cartaz acima faz parte de uma campanha da Juventude Socialista da Andaluzia que foi preparada para o Dia Mundial contra a Sida. É uma imagem forte e como seria de esperar, parece que está a causar um enorme burburinho em Espanha. Eu sou leitor habitual tanto do El Pais como do El Mundo, dois jornais de referência no país vizinho, curiosamente não tinha visto nada sobre este assunto... o tema do momento para nuestros hermanos é mesmo a paralisação "selvagem" dos controladores aéreos.
Quando fui ao El Pais à procura desta noticia, encontrei uma outra que diz o seguinte: A média de positivos com HIV nas análises feitas a jovens, multiplicou por 5 desde 2004.
A mesma noticia diz que a média de positivos em Madrid em jovens entre os 13 e os 20 anos passou de 1,8 em 2004 para 9,7 % em 2009. A noticia termina com uma chamada de atenção para a deficiente educação sexual entre os jovens que os está a levar a seguir comportamentos de risco... lá como cá!
Quando pensamos em 10% de jovens infectados entre os que fazem as análises, se calhar olhamos para o cartaz e já não o achamos assim tão violento, não acham?
Esta é a realidade Espanhola, alguém acredita que em Portugal é diferente?
Prevenção é preciso, educação é preciso.. campanhas como esta, fortes, directas, são definitivamente precisas.
Jorge Soares
Imagem do Público
Passaram 3 anos sobre a adopção da nova lei do aborto, aquela que foi aprovada como consequência dos nossos "Sim" no referendo. A efeméride foi noticia na maior parte dos jornais e telejornais, as abordagens foram diversas, na RTP a noticia era: 3 anos depois continua a existir aborto clandestino
Durante a hora do almoço tinha lido a mesma noticia no DN, não consigo entender, o que poderá levar uma mulher a um vão de escada, para praticar sem segurança nenhuma um acto que pode ser praticado de forma gratuita e com todas as condições de higiene e segurança num hospital?
Segundo esta noticia do Público, durante estes 3 anos foram praticados de forma legal e gratuitamente 54000 abortos, perto de 19000 por ano, um número que assim à primeira vista parece enorme e que mostra que para lá da aprovação da lei, há muito a fazer ao nível da educação e da informação. A percentagem de mulheres que nestes 3 anos praticou mais que um aborto anda pelos 1,5 %, mas o número de mulheres que falta à consulta de planeamento familiar obrigatória após a intervenção anda nos 2/3.
Estes números mostram que continua a faltar muito que fazer ao nível da educação e formação, não basta aprovar uma lei, é necessário muito mais, falta educação sexual nas escolas, faltam campanhas de planeamento familiar, faltam muitas coisas.
3 anos é tempo suficiente para que se avalie e se pondere, avaliar se há aspectos da lei que possam ser melhorados, avaliar se o prazo de 10 semanas é o mais adequado, tentar encontrar maneiras de obrigar a que a lei se cumpra e que as mulheres não faltem às consultas de planeamento familiar..e sobretudo, pensar que 19000 é um número muito grande, enorme..e encontrar estratégias para o fazer descer.
Se 3 anos depois ainda há abortos ilegais em Portugal, se ainda há mulheres que continuam a arriscar a sua vida em "clínicas" de vão de escada, já seja por vergonha, por medo do estigma, ou porque deixaram passar o prazo das 10 semanas, é porque ainda não fizemos tudo o que havia a fazer.. estamos à espera de quê?
Jorge Soares
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Duarte de Bragança citado Pela TVI24
Sempre achei Duarte de Bragança uma pessoa no mínimo singular, parece-me alguém sem a mínima capacidade ou discernimento politico, alguém que está longe, muito longe, do que é necessário para se poder aspirar a ocupar algum lugar de estado. Cada vez que ouço o senhor falar pergunto-me como é possível que exista gente que queira ser de alguma forma governada por ele?.. não tivemos já a nossa dose de governantes estranhos?
Para ele a educação sexual equivale a incentivar a fornicação... mas alguém ainda usa a palavra fornicação?, será que ele vive no mesmo século que nós? será que se apercebeu que o mundo gira e o tempo passa? Fornicar era o que fazia a nobreza com as mulheres da plebe quando as apanhavam desprevenidas, era o que faziam os fazendeiros com as escravas, era o que faziam os senhores com as servas.
As pessoas normais não fornicam, pretende-se que as pessoas normais estejam devidamente informadas sobre o seu corpo e sobre a vida de modo a que possam ter sexo seguro e de preferência prazenteiro, quando quiserem, como quiserem, mas de uma forma saudável e esclarecida. Ao contrário do que este senhor possa dizer, é para isso que deve servir a educação sexual.. para evitar que as pessoas forniquem... que pelos visto é o que ele costuma fazer.
Nunca consegui entender que exista em Portugal alguém que ache que deveríamos ser uma monarquia, se pensarmos bem, para que serve uma monarquia? Olhamos para a vizinha Espanha, para além de encher as páginas da Hola e dos custos milionários que representam manter uma casa real, em que é que eles são mais que nós por terem um rei, rainha, principes e princesas?... para que serve o rei de Espanha?
Jorge Soares