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Conto - Desejo

por Jorge Soares, em 18.01.14

desejo

 

Olhou-a pelo canto do olho. Timidamente. Nada. Nenhum gesto, nenhum sinal de que ela o percebia ali tão próximo. Tossiu, esperando que o barulho a fizesse virar-se. Ao contrário. Ela abaixou ainda mais a cabeça na direção da revista que a entretinha. Podia jurar que a tinha irritado. Será?

Era assim já havia um tempo. Ele se consumindo de paixão e de tesão a cada vez que entrava naquela sala apertada. Se esta sala fosse maior...

 

Se pelo menos as nossas mesas fossem mais afastadas... Tolice. Consumia-se dia após dia entre os batimentos acelerados e a vontade que crescia dentro das calças. E agradecia a Deus e ao diabo pela mesa de trabalho que encobria os seus desejos. Talvez se eu tivesse coragem de conversar com ela, se eu pudesse mostrar que sou um cara legal... Ilusão. Só os dois naquela sala apertada; e ele travado. Rotina. Ele, com seus documentos e processos. Ela, sempre ao telefone, no computador ou na sala do chefe.

 

No fim do ano, na festa da empresa, esbarrara nela uma ou duas vezes. De propósito. Só para pedir desculpas e obrigá-la a dar-se conta de que ele existia. Mas nem um muxoxo. Enquanto ainda dizia “desculpe”, ela já tinha sumido. Um inseto. Uma mosca. Era o que ele era. Não. Uma mosca chamaria a atenção pelo barulho irritante, mas chamaria a atenção. Ele, não. Não era mosca. Nem isso.

 

Naquela manhã, entrou na sala com ares de “hoje vai”. Perfume francês que só colocava para ir a festas ou a motéis baratos, das raras vezes em que aparecia uma mulher para transar. Roupa de missa; sapatos de Ano Novo; cabelos de boate — com topetinho feito a gel. "Topa sair comigo hoje?". Não, não estava bom. “E aí, gata, que tal um barzinho hoje?”. Que droga! Nem que tivesse 15 anos. “Escuta, tem tempo que ando querendo convidar você pra sair...”. Assim estava melhor, com reticências. Afinal, o máximo que podia acontecer era levar um fora. Um fora, esse era o problema. Não pela rejeição, à qual estava acostumado, mas por antever como seria a sua vida naquela sala apertada depois do fora. Convivência impossível, vergonha, frustração.

 

Desistiu, mais uma vez. Até a hora do almoço. Certo de que precisava dar um jeito no que sentia no coração e dentro das calças, tomou duas cervejas e um copinho de pinga durante a refeição. De comida mesmo, só umas três garfadas para forrar o estômago. Almoço de boteco: comida ruim, pinga barata. Que pena que não tenho grana pra mais um copinho, pensou, recontando o dinheiro. Conferiu o relógio de pulso e viu que ainda tinha uns trinta minutos, mas preferiu voltar para o escritório assim mesmo. Queria treinar o convite que faria a ela, antes de colocar na boca as balas de menta que comprara com o troco do almoço. Ah, hoje vai!, pensou, animado pelo álcool.

 

Assim que chegou, viu que o escritório ainda estava todo apagado. Dirigiu-se, então, à sala do chefe para fazer o que era de costume: quem chegasse primeiro, pela manhã ou depois do almoço, tinha a tarefa de ligar seu ar condicionado, arrumar sua mesa e recolher o lixo do cesto.

 

Entreabriu a porta. Silencioso e lento como sempre. E aí ouviu os gemidos. Parado na soleira, acostumou a vista à penumbra até conseguir enxergar os dois corpos contorcendo-se em sexo sobre a mesa de reuniões que ficava mais à direita, ao fundo. Macho e fêmea em sexo irrestrito. Sexo de braços, pernas, bocas e suor. Sexo com sons que ele nunca ouvira.

 

Pensou em sair bem devagar, pé ante pé. Depois, em sair e voltar para bater à porta. Por último, em sair e esquecer o que vira. No entanto, continuou ali, na porta, no escuro, consumindo a beleza daquelas nádegas que cavalgavam um corpo que bem podia ser o seu. Mas não era.

 

Ele e um medo súbito de ser visto. Ele e um medo covarde de que sua respiração entrecortada pudesse ser ouvida. Ele e um medo horrível de ser despedido e de ter que passar a viver sem ela, sem a sala apertada, sem o tesão embaixo da mesa. Foi quando lembrou que não era inseto. Não era mosca. Não fazia barulho. Nem isso. E seus olhos mergulharam novamente naquelas nádegas galopantes.

 

Cinthia Kriemler

 

Retirado de Samizdat

publicado às 21:50



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