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Conto - Ler, pensar, observar, meditar...

por Jorge Soares, em 30.08.14

 

 morte

 

 

Dizem-me fria, insensível, dura, porque não me espanto nem choro mais com a morte de alguém ainda que próximo. Não é bem assim. É lógico que sinto a dor da saudade quando um ente querido morre. O que não consigo é prolongar essa dor e, confesso, não entendo quem a prolonga. Entendo a tristeza, mas não entendo e não aceito o lamento. Lamentar a morte é não entender a vida.
Poderiam me perguntar: “e quando se enterra um amigo querido, um filho, uma criança, um pai ou mãe, um irmão? Você não lamentaria?” Não, não lamentaria. Claro que sofreria, mas não lamentaria como um dia já lamentei. Hoje encaro a morte como o final necessário de um ciclo, seja ele curto ou longo. A vida é sempre completa, dure ela um dia, um ano, um século. Vejo pessoas que morrem anciãs sem terem realmente vivido, como vejo outras que morrem depois de uma curta existência plenamente vivida. Nascemos todos com prazo de validade e, quando penso grande, percebo que, por mais que vivamos, não vivemos pouco mais que um século. Ora, o que são unidades, dezenas ou uma centena diante dos milhões de anos da existência humana na terra? Um grão de areia no oceano ou menos que isso. 
Uma vez ouvi um autor famoso dizer: “não tenho medo de morrer, tenho pena”. Pena de que? De deixar a vida? Não, não tenho pena. Imaginem a chatice infinda que seria viver se não soubéssemos que um dia morreríamos! Que incompletude, que “nonsense” um caminho que não tivesse fim! Ora, tudo na natureza tem começo, meio, fim e renovação, um ciclo interminável. Uma flor, por exemplo, nasce, desabrocha e morre. Qual seria sua graça se não houvesse a possibilidade de outra nascer no seu lugar? Se fosse sempre ela a estar ali? Um tédio, convenhamos. Além do mais, parece-me justa, razoável e salutar, a conclusão de que precisamos morrer para que outros nasçam, assim como outros morreram antes para nos ceder o lugar.

Há aqueles que dizem não terem medo da morte propriamente dita, mas da doença que a precede. Pensem bem, quando estamos doentes a vida perde muito da sua graça, pelo menos para mim. Na doença, a ideia de morrer é muito menos apavorante, já que o que se quer é que a dor ou o mal estar passe a qualquer custo. Uma dor de cabeça intensa, por exemplo, dá-me vontade de fechar os olhos para o mundo. Tomo comprimidos fortes o suficiente para me aliviar e me fazer dormir. Dormir... Eis a palavra chave!
Lembram-se de Shakespeare? “... Morrer... dormir... mais nada... Morrer... dormir... dormir... Talvez sonhar...” Para mim, essa passagem de Hamlet funcionou como um clarão e foi um dos motivos que me fez perder o medo da morte: se morro e não há sonhos, será o nada e nada saberei. Se sonhos houver, ainda que ruins, estarei no lucro.
Não pensem que aceitando a morte com essa naturalidade, estaria desvalorizando a vida. Muito pelo contrário. Considero a vida um milagre maravilhoso e, como tal, não canso de maravilhar-me, deslumbrar-me com ela. Por isso mesmo, eu a vivo de forma intensa. E o faço porque encaro a morte sem medo, pensando sempre na sua possibilidade iminente, com a percepção real de que morrer é natural como viver. Posso, assim, entender melhor aquele negócio de viver o dia de hoje como se fosse o último. Ah, a vida! A vida - nela contida a morte - é fruto de um acaso poderoso! Não é por acaso que o acaso tenha tanta força sobre nós, pois por causa dele é que existimos, já dizia um autor antigo. 
Não, não há porque temer a senhora da foice. Não, não tenho medo de morrer, nem pena. Medo por quê? Pena por quê? Acho a morte fascinante, afinal ela faz parte dessa coisa fascinante que é a vida.
Cheguei a essas conclusões por volta dos trinta anos. Até então só conhecia a morte por ouvir dizer, tão longe de mim distante andava. Manejava sua foice com parentes e conhecidos longínquos. Quando resolveu se aproximar, foi de tal forma abrupta e repentina que me chocou deveras. Sem mais nem menos, levou minha melhor amiga num acidente estúpido. Uma hora antes, ríamos escancaradas e intensamente para a vida. Uma hora depois, minha amiga não mais existia, esmagada que fora sob as ferragens de um carro. Foi nessa época que parei para pensar a morte e pensar seriamente sobre a precariedade da vida, mesmo porque, depois desse primeiro contato, a morte se aproximou inúmeras vezes, levando pais, irmãos, parentes e amigos.
A princípio, como quase todo mundo, tentei me socorrer com a ideia religiosa de vida depois da morte, promessa de todas as religiões do mundo, mas nada nesse sentido me satisfazia. Se estávamos certos do renascimento, soava-me incoerente tanta tristeza e luto. Deixei de lado essa ideia e parti em busca de outras respostas¸ procurando entender porque tememos e nos chocamos tanto com a única certeza da vida. Procurando entender porque vivemos como se a morte não existisse, não pelo menos até que ela se avizinhe. Nessa busca, observava o mundo, lia, pensava, meditava. De tanto filosofar, um dia percebi que não mais a temia. E não a temia porque a entendia e, oh prazer supremo, estava livre. Sim, porque quando se entende a morte consegue-se a liberdade. Filosofar é aprender a morrer, disse Montaigne.
Bem, vocês devem estar se perguntando aonde eu quero chegar com esse discurso. Pra falar a verdade, eu também não sei. À parte a falta de assunto, talvez uma tentativa de aplacar a ansiedade que sinto pelo resultado do Raio X que fiz ontem do tórax. Sou uma fumante inveterada e estou em pânico, sem saber o que conterá o laudo médico... Oops!
Aiaiai... Mas se cheguei a tantas conclusões, que medo é este que sinto agora diante de um resultado clínico? O que foi mesmo que Montaigne disse? Que filosofar é aprender a morrer? Será mesmo? Não e não, meu querido filósofo, não há filosofia no mundo que nos ensine a morrer. Não há quem, diante da morte iminente, consiga encará-la com naturalidade. Não há mãe que enterre seu filho sem se desequilibrar, sem levar para sempre um vácuo no coração. Não há filho que enterre seu pai sem que o chão lhe falte durante muito tempo. Não há quem não precise de muletas quando um grande amigo se vai. Não há filosofia que nos console nessas ocasiões. Filosofar é uma coisa, Montaigne, vivenciar é outra bem diferente. E, no entanto, nada mais certo, lógico e natural que morrer. Ah, a contradição humana! Eis um tema sobre o qual preciso me debruçar. Preciso ler, observar e meditar seriamente sobre isso...

Cecília Maria De Luca

 

Retirado de Samizdat

publicado às 21:26


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