Na pátria dos Aqueus, em tempos de ninfas e faunos, a vida decorria airosa e prazenteira. Vivia-se ao sabor das estações, aproveitando as benesses que a Natureza generosa estendia aos habitantes daquela ampla península sulcada por múltiplas enseadas abertas ao Mar Egeu.
Hélade, jovem e bela helena na flor da idade, tinha crescido, muito tempo depois, nesse mesmo benévolo ambiente, e instruíra-se na cultura do seu país, pelo que nenhuma das principais antigas mitologias lhe era estranha. Por isto, estando um dia em folguedos com as amigas, na almargem litoral das terras de seu pai, não estranhou, quando um boi muito branco se separou da manada e se aproximou das donzelas, manso e sedutor. Imediatamente lhe acudiu ao pensamento a história pitoresca da sua antepassada Europa, que, por via da mansidão encantadora de um boi resplandecentemente branco, fora raptada, levada para Creta e seduzida.
O relato mitológico não era completamente inquietante, porque o boi que raptara Europa não fora outro senão Zeus disfarçado, querendo aproximar-se da formosa mortal sem suscitar os ciúmes mais do que justificados de sua mulher, Hera, e também porque o desenvolvimento da história não tinha terminado completamente mal: Europa tinha tido três filhos de Zeus, que foram homens importantes do seu tempo. Os chifres do boi que se acercou do grupo de Hélade tinham a mesma forma de duas luas em quarto crescente e, como na lenda, deitou-se aos pés da jovem. Assim, foi quase natural acariciar-lhe o lombo e a cornadura e, pouco depois, enfeitá-la com grinaldas de malmequeres e outras flores silvestres. O pelo macio e resplandecente do boi, a sua mansidão, a euforia juvenil do grupo e ― não o escondamos ― a expectativa ainda que inverosímil de uma grande e excitante aventura levaram a donzela a arriscar subir para o dorso do belo animal. Como ela temia ― ou desejava? ― o boi levantou-se e em passo ligeiro dirigiu-se para a praia, atravessou a areia e entrou no mar, sob os gestos animados e os risos divertidos do grupo de jovens.
Hélade, apreensiva, mas muito entusiasmada, fez todo o percurso arquitetado pelo boi que, nadando até ao mar alto, se transformou em uma águia-de-cabeça-branca e, sempre com a jovem mediterrânica no dorso, rumou à América, onde tinha o ninho. Ali, aliciou-a com todas as comodidades e todos os gadgets que a civilização global consegue produzir: iPhones; iPads; CD; tablets; iPods; DVD; consolas; smartphones; pent-house; home cinema; GPS; localizadores de lojas em promoções; e tudo o mais que não caberia neste rol. Sem precisar de pagar nada. Tudo a crédito. A jovem argiva sentia-se a mais ditosa das mediterrânicas. Nem sabia como agradecer ao seu benfeitor. Mas este não parecia querer que a donzela se preocupasse com ninharias. E convenceu-a a desfrutar da sociedade de consumo. O que Hélade fez despreocupadamente. Tornou-se amante de luxos e sofisticações, frequentadora de eventos de arte e moda e até caprichosa investidora da Bolsa.
Quando Hélade já não sabia o que mais queria possuir e já não tinha mais palavras para agradecer, o génio que a raptara começou por fim a falar em crise e na necessidade de pagar os créditos que ela tinha contraído. A conversa foi inesperada, mas Hélade continuou a ter dificuldade em perceber o que implicava a mudança de discurso do até aí simpático raptor. Mas ele foi perentório:
― Minha menina, não há brinquedos grátis. Não te ensinaram lá no Peloponeso? Se não pagas de uma maneira, pagas de outra...
Então, possuiu-a pela primeira vez. Se Hélade há muito tinha efabulado com esta romântica eventualidade, a maneira economicista e quase vingativa de ele concretizar um ato que devia ser de amor entristeceu-a: além do mais, teve ainda a suprema insensibilidade de dizer que lhe fazia uma gentileza ― abatia-lhe dez mil dólares no valor em dívida!
Nos tempos que se seguiram, possuiu-a repetidamente, fazendo-se pagar em géneros, pelos inúmeros bens tecnológicos que adiantara. Com juros. Pelas contas do tratante, Hélade pagaria com o corpo, à razão de uma penetração por cada 100 dólares de dívida.
― Obrigas-me a alugar o corpo, que é o que estou a fazer, e só queres que eu valha 100 dólares? ― indignou-se Hélade, na primeira vez. ― Ainda ontem valia dez mil dólares…
― Estamos a falar de produtos diferentes, rapariga. O teu rating triplo A de ontem, entretanto, baixou para A+, como deves compreender…
Quando a dívida cresceu para valores que o vigor sexual do malandro já não acompanhava, começou a alugá-la a tempo, a bandeiradas de quarto de hora, concedendo-lhe 10 dólares por hora. Enquanto ele guardava um valor não revelado, a título de serviços de angariação, promoção e facilitação de negócio.
― Ou preferes vender órgãos? ― ripostara o patife, aos protestos de Hélade.
Só demasiado tarde Hélade percebeu que este esplendoroso boi que a seduzira nada tinha que ver com aquele lúbrico, mas generoso, boi que raptara Europa. Este não era outro senão o terrível Minotauro Global, mutação maligna para cujos malefícios o oráculo Varoufakis já advertira, mas adorado pelos mercados que, agradecidos, lhe tinham erigido uma enorme escultura em Wall Street. A ingénua jovem descobriu então que este Minotauro era vezeiro neste tipo de manobras de engano. Os primeiros contactos eram sempre de ajuda e proteção, mas depois vinha a fatura. Muitas jovens e efebos por esse mundo fora tinham caído nas malhas dessa generosidade com intenções escondidas. Luso era um deles; Hibernia, outra.
Hélade não sabia como se livrar deste cárcere de grades económicas que a dívida odiosa lhe impunha. Nada seria suficiente, percebeu, quando a dívida cresceu para valores estratosféricos ― tanto quanto o que conseguiria auferir em mais de dois anos de sexo vertiginoso. Mais indignada ficou quando percebeu que lhe estavam a ser imputadas dívidas de supostos helénicos cujo nome ela nem conhecia.
― Mas o que é que eu tenho que ver com essa gente? ― choramingava a jovem helena, indefesa e capturada por todo o tipo de manobras capciosas.
― Todo o heleno é responsável pelas dívidas de qualquer outro heleno ― ripostou o grande monstro, imbuído da maior das seguranças argumentativas. ― Eu é que não posso perder! Deixa-te de lamúrias e manda vir todas as amigas que folgavam contigo, nos campos do teu pai.
Só então, Hélade, não suportando mais a tirania, evocou os seus bravos antepassados aqueus e lançou um “NÃO!” que se ouviu na Terra inteira. Muitos dos deuses que na Antiguidade cuidavam dos Homens e das suas dificuldades acordaram, alarmados.
Inteirado da situação, Zeus reuniu-os e incitou-os a fazer alguma coisa por esta humana, duma nação que os deuses tanto amavam. Hermes foi o primeiro a levar uma mensagem de indignação ao Minotauro, mas voltou humilde e um pouco assustado, quando o monstro global lhe lembrou que a força negocial dele era nula, desde que adquirira, como Hélade, ativos tóxicos ao banco Caiman Brothers. A seguir, avançou Hefesto, que ameaçou o Minotauro com métodos mais violentos, aqueles ligados ao raio e ao fogo, mas também ele voltou humilhado, quando o Minotauro lhe mostrou o poder bélico do complexo militar e industrial.
― Viste o que aconteceu a Santorini? ― sibilou o Minotauro, ameaçador. ― Não se compara ao que aconteceria a toda aquela lamentável região…
Mas nem todos os deuses foram mal sucedidos. Hera ofereceu-se para tentar negociar, argumentando que tinha alguma experiência com espécimes bovinos… Na verdade, a intenção inicial dela era avaliar se havia alguma similitude entre Europa e Hélade e eventualmente vingar-se nesta pelas penas de outrora. Já na pátria do Minotauro Global, apercebeu-se que não só havia muitas semelhanças entre Europa e Hélade, como ainda sentia um ódio penetrante relacionado com o remoto episódio. E que o rancor se estendia à maioria dos outros deuses que, na altura, se tinham divertido com a sua situação de esposa traída.
Senhora de muita experiência, deu-se relativamente bem com o Minotauro, a quem encontrava semelhanças com o seu esposo quando jovem. Louvando o liberalismo e a legitimidade do poder do mais forte, com modos sedutores, conseguiu afagar o ego de macho alfa do Minotauro, e assim obter dele algumas graças ― uma delas, experimentar carnalmente a pujança taurina, vivência que invejara a Europa.
A partir daí, as negociações foram mais fáceis, mas sempre numa ótica economicista. Hera voltou com um contrato específico que, a ser aprovado pelo Concílio dos Deuses, iria atenuar por alguns anos as penas da dívida de Hélade e, com esperança inconfessada, trazer alguma animação ao Olimpo, para irritação provável da maioria dos seus esquivos companheiros divinos. Tratava-se da privatização do Monte Olimpo, onde se previa a instalação de um imenso parque temático, aberto todo o ano, cujas receitas de bilheteira e de todo o merchandising associado à mitologia autóctone seriam naturalmente controladas pelo Minotauro.
― Amorzinho, de certeza que o Concílio não vai aceitar de bom grado os pontos do contrato que obrigam os deuses a estar sempre visíveis e a interagir com os visitantes humanos... ― advertira Hera, genuinamente apreensiva.
― Deixa-os decidir! ― resfolegara o implacável touro mutante. ― Por enquanto…
Imagem de Nikolai Burdykin, na net.