Respiro. De olhos fechados, respiro. Com o fim da tarde, batem-me à porta as obrigações da noite. Antes de acender os castiçais de porcelana, sento-me diante do espelho e procuro enxergar minha face refletida na superfície enegrecida pela rotação do tempo. Porém, nada vejo. Apenas uma lembrança indelével, um paladar experimentado, uma faca ameaçadora no meio de minhas pernas, mas nunca meu rosto.
Tendo já o quarto iluminado, surge-me o semblante do rapaz que há tempos eu fora: olhos inexpressivos, lábios cerrados, alma arisca e pensamentos ligeiros. O reflexo atira-me em um túnel de cores neutras e conduz-me à teimosa viagem em busca do que não pode ser revivido.
Crianças correm no terreiro, um cheiro de café-com-pão flutua no hálito da casa-grande, o irritante som de uma rede que balança no alpendre. Será meu avô? Procuro retornar à frente da penteadeira, mas já me encontro mergulhada no inevitável espetáculo de reminiscências traídas. Repentinamente, outros sons. As melodias chegam como um grito da natureza em meus tímpanos, parecem pardais que gorjeiam, gorjeiam. “Jesus, Jesus”, alguém grita meu antigo nome do outro lado da cerca e eu me escondo no mato. Um aroma de eucalipto inunda meu peito e uma caranguejeira se retorce dentro do fogo. Se eu ficar, papai me capa. Atiram meus pertences dentro de uma carroça. Estou partido. Estou partindo. Adeus.
De volta ao quarto. Já são quase vinte horas e preciso aprontar-me com monumental esmero. Passo levemente os dedos sobre a maquiagem e me pergunto: Por que eu não esconderia o rosto deste timorato? Os batons organizados em nuanças, as fivelas e broches postos na caixinha-de-música que, ao abri-la... No Belo Danúbio Azul. Essa peça musical já não me parece tão doce, soa como o prelúdio para que Madalena chegue e destrua o que já fora tantas vezes destruído. Fecha-te, caixa. Escuta.
Estou mais uma vez na fazenda de meus pais. Sou proibido de ter contato com os peões; todos riem de mim, menos um deles. Não o mais bonito, o menos covarde. O trote de um cavalo aproxima-se e excita meu vernal coração. Descubro, quase sem querer, que os homens são uma possibilidade muito mais atraente. Não corro. Não correrei até a janela para que ninguém perceba que eu, desde minha infância, já o aguardava.
Haverá mesmo uma festa de aniversário para mim? O que me dará de presente? Quero-o dentro de mim. Já falei que estou cansado de esfregação e beijos de língua atrás do engenho. Não há honra a ser preservada entre homens e não estou me guardando para a Igreja, como minha irmã beata. Mamãe percebe tudo, é uma ave de rapina que regurgita ave-marias; reprova-me com um gesto na boca. O cavalo se afasta antes que os tiros o alcancem, ele escapa com vida. Após uma reunião de família, sou mandado embora para o esquecimento. Fragmentado.
O vestido dourado e as sandálias de prata, roubados da casa de uma puta que morreu aqui perto, descansam sobre minha cama. Aguardam que eu os preencha com meus seios de estopa e meus pés grandes demais para calçados femininos. Por que a noite insiste em batizar-me com a máscara? A fantasia, após tantos anos, já não me incomodo em vesti-la; mas o disfarce em meu rosto, como esse me dói. Enterrar o menino que fui é um funeral cuja rotina me apodrece.
Passo a espuma sobre minha face, a fim de prepará-la para a arte da pintura que não quero. Sinto-me velho e ridículo, não tenho mais o viço jovial de meus dezoito anos de idade. A lâmina de barbear apara-me os pelos que brotam em meu rosto como indesejáveis lembranças daquele que um dia eu fora. Cortar o próprio pescoço e sangrar até a morte seria apenas um acidente. Ninguém é condenado ao inferno por ferir-se sem querer. Não é por querer que, dia após dia, mutilo-me.
Pressiono levemente a toalha contra minha cara de palhaço afeminado, livro-me do restante de espuma e das pequenas poças de sangue em meus poros, penso em morrer sufocada. Deus, por que temo a morte se há tempos caminho sem vida por estas ruelas que hospedam solidões e sodomias?
Vermelho. Vermelho nas unhas e nos lábios. Hoje usarei batom vermelho sobre esta boca pálida e entristecida pela constante falta de doçura em suas palavras. Pronto. Meus lábios já foram traídos e as unhas transformadas em garras. Mas, e quanto aos olhos? O que fazer para disfarçar esse olhar que só enxerga fotografias e visões de sonho? Isso mesmo. Uma sombra violeta em minhas pálpebras jamais permitirá que meus olhos revelem o homem derrotado que, aos poucos, deixa de existir no espelho. Ruge nas maçãs do rosto, um lápis escuro a delinear-me a raiz dos cílios, um arquear pedante de sobrancelhas, um sorriso forçado. Odeio escolher perucas. Loira ou morena? Loira ou morena? Que moldura destacaria melhor a pintura feita sobre minha tela de armação carcomida e tecido envelhecido? Hoje, serei loira. Quando loira, suporto mais as surras dos policiais, desses fregueses inadimplentes que me obrigam a sodomizá-los sempre que estão de folga.
A outra chegou. Atrás da superfície de vidro, não há mais lembrança movediça capaz de engolir-me. Os homens de bem me aguardam, é melhor que eu vá de vez ao encontro das esquinas que me garantem o sustento e mantêm contidas minhas aflitivas saudades. A pressa não se deve à noite, que já se faz alta, mas porque temo que o rapaz preso em meu reflexo retorne sem que eu esteja protegida pela fronteira vítrea que há tempos nos dividiu. Minha cotidiana sina permanecerá até que eu acabe como a finada quenga que me garantiu sapatos novos. Ao inferno que roubar dos mortos traga azar! Amanhã, o rito se dará da mesma forma. Jesus dormirá até que a claridade dê lugar à escuridão e o flagelo se repita. Eu, diante da face perdida, que me tortura, que me castra. É quando Madalena chama.
Emerson Braga
Retirado de Samizdat