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Conto - A minha avó lia Nietzsche

por Jorge Soares, em 19.07.14
cartas

 

Toco a campainha. Gesto ridículo. Costume. Entrar na casa da avó sempre foi um ritual. Tocar, esperar que seus passos lentos  equilibrassem o corpo magro e velho em direção à porta, escutar os quatro ou cinco cliques das chaves e cadeados feitos para impedir algum bandido de forçar a entrada para roubar móveis antigos e bibelôs saudosistas. Bolo de cenoura ou de milho, café passado na hora, manteiga de verdade, pães fresquinhos.
Coloco no chão as caixas de papelão que trouxe desmontadas e começo a testar as chaves nas trancas, bem devagar. Tão devagar que desperto os olhares do homem no fim do corredor de portas iguais. Ele entra indeciso no elevador, imaginando se sou a nova inquilina ou uma ladra bem vestida.
Estou dentro. O corpo retesado procurando fantasmas. Das minhas narinas sai um vento quente e rápido que conheço de sobra. Desde o meu divórcio tumultuado que é assim. Passei meses hiperventilando por qualquer besteira que me causasse ansiedade. E tudo me causava ansiedade. Até que a avó me viu em plena crise. Abriu a gaveta do móvel da cozinha e tirou de lá um saquinho marrom de papel, desses de padaria. Põe na boca, depois inspira e solta o ar dentro do saco, ela me disse. Recusei a oferta. Anda, ela insistiu, faz o que eu estou dizendo. Fiz. Parei de ficar tonta. E melhorei ainda mais um ano depois, após começar a terapia. Mas o artifício dos saquinhos carreguei comigo. Dentro da bolsa. Até hoje, em qualquer lugar, quando sinto que a respiração começa a descompassar, é só me afastar para um canto e soprar.
Os pelos do gato ainda estão nas almofadas. Talvez eu deva levar todas elas para casa, agora que Oscar Wilde está morando comigo. Ele vai gostar. Gato estranho. Desde que saiu daqui, parou de miar. O veterinário me diz para esperar, porque os gatos são avessos às perdas. Como as pessoas. Mas eu acho que ele não mia de pirraça. Não gostou de se mudar.
Quantos livros. Vou encaixotar e mandar tudo para uma biblioteca. Nada disso me interessa. Coleções encadernadas de receitas, atlas, dicionários. Romances antigos de M. Delly que pertencem à minha mãe, constato pela assinatura nas folhas de rosto. Biblioteca das Moças é o nome da coleção. Um mundo condicionante de felicidade para jovens bem comportadas. 
Interessante. Nas prateleiras mais altas, Byron, Lorca, Flaubert, Balzac. Bela safra. Edições originais misturadas a livros traduzidos. São da avó, com certeza. Meu avô só lia jornais e novelas policiais. É uma estante ambígua. Definitivamente, ambígua. 
Vou montar mais uma caixa. Ainda faltam os livros da última prateleira. Deve ter uns vinte lá em cima. O que não tem é escada. Levei para casa junto com o gato. Tudo bem. O cabo do rodo resolve. Só tenho que cutucar. E aí vem o primeiro. A Gaia Ciência. Nietzsche...? A avó lia Nietzsche? Talvez tenha sido presente de alguém. Uma folheada e vejo as expressões "Deus está morto" circuladas a lápis. São três. No rodapé de uma das páginas, escrita com a letra miúda e desenhada da avó, a anotação: "declarar a morte é reconhecer a existência?", seguida de outras duas que não consigo ler. Em outra página, há uma frase inteira marcada: "Há qualquer coisa de estupidificante e monstruoso na educação das mulheres da alta sociedade, talvez nada mais haja tão paradoxal. Todos estão de acordo em educá-las numa ignorância extrema das coisas do amor...". 
Além dos comentários em Nietzsche, há expressões grifadas e questionamentos anotados em Sartre, Beauvoir, Camus. Desconcertantes. Como a mulher que os escreveu.
Finalmente, o último livro da prateleira vem para as minhas mãos. A capa amarrada por uma fita estreita chama a atenção. Cartas a um jovem poeta. Rilke subjugado, sequestrado, preso em seu próprio livro é um pensamento idiota. Mas é tudo o que me vem à cabeça. Desfaço o laço empoeirado e quatro envelopes amarelados caem no meu colo. Eu me pergunto se devo ler; se quero ler. Mas meu constrangimento não resiste ao argumento conveniente de que as fatalidades não devem ser desprezadas.
No primeiro deles, uma carta que me parece em escrita lusitana. José de Arimatéia Sobrinho é o remetente. O texto é curto. A despedida magoada e piegas de um amante ressentido. "Não te importunarei mais. A nossa história morrerá comigo. Eu só estou a cismar como há-de ser possível que consigas viver ao lado desse gajo que teu pai te escolheu para marido, porque eu sei que não és rapariga de aceitar cabrestos. Mas como tu mesma o disseste, isso não é da minha conta. Envio-te os retratos que pediste, e que tanta apreensão te causam."
Quem é esse homem? Que fotos são essas? A data na carta não deixa dúvida: a avó ainda era bem jovem quando a recebeu: Rio de Janeiro, 20 de Setembro de 1950. Foi escrita aqui mesmo e não vejo carimbo dos correios, o que me leva a crer que tenha sido entregue por um mensageiro ou por um amigo comum, cúmplice de histórias obscuras. 
No segundo envelope, a data da carta é anterior à primeira: Rio de Janeiro, 4 de junho de 1950. Talvez revele um pouco mais. Mas não. O tal José de Arimatéia pede desculpas por não ser um homem livre e declara-se apaixonado. Mais adiante, escreve um parágrafo de desprezo por Alberto Vargas, a quem se refere como "o marido de conveniência”.
Não, José de Arimatéia. Alberto Vargas não foi um marido de conveniência. Foi o meu avô amado. Que me dava escondido as balas e os chocolates que mamãe proibia. Que me ensinou a andar a cavalo, a jogar cartas, a gostar de viajar, a caminhar pela praia às seis da manhã. Que foi o único pai que eu tive, depois que o meu morreu tão cedo. Você, sim, é um oportunista, José de Arimatéia. E eu não gosto de você. Aliás, eu detesto você. 
O terceiro envelope não está sobrescritado. Dentro dele, um recorte de jornal, com data de 23 de setembro de 1950, mostrando o desfecho daquela história incompleta: "Fogo em Laranjeiras mata empresário português". Na matéria, a dúvida da polícia entre acidente e incêndio criminoso, seguida de uma declaração da mulher do morto e de uma breve  menção aos três filhos do casal. 
No último envelope, também não endereçado, quatro fotografias em preto e branco. E é você, avó, em cada uma delas. 
Você, exibindo os seios para o homem atrás da câmera. Você, de braços levantados, de pernas abertas, equilibrando o corpo despido sobre os saltos altos. Você e uma nudez descarada sobre a cama desfeita de um quarto qualquer. Você feliz. De uma felicidade que dá estocadas nos meus olhos. 
Você sabia que seria eu. Quem mais? Sabia que eu encontraria o seu segredo, e que as minhas narinas iriam respirar rapidamente em descompasso, e que eu precisaria usar de novo os saquinhos de papel marrons, e que eu vomitaria no banheiro o meu pudor oportunista. Porque somente eu viria aqui. Para levar o gato. Para esvaziar o apartamento. Para folhear seus livros. Para invadir a sua morte. Você sabia. E preparou a armadilha da fita amarrada. Só não me preparou para você.
Tenho que levar as almofadas para Oscar Wilde. Ele sente falta delas. Colocar em caixas separadas as roupas de cama, a louça, os bibelôs. Avisar à transportadora que pode vir buscar os móveis da sala, da cozinha, dos quartos. Levar comigo os quadros menores; a coleção de M. Delly que vou devolver à mamãe; a caixa com os existencialistas, que acabo de doar a mim mesma para poder ler com atenção cada anotação da avó.
Preciso de mais tempo para me decidir se vou rasgar estas fotos. Ou para me convencer de que isso já não faz diferença. Rasgada ou intacta no envelope amarelado, não importa, a avó dos bolos e da manteiga de verdade não é mais de verdade. Mas talvez a mulher nua das fotos seja. A mulher que esperou a morte para se apresentar honestamente a mim. 
Cinthia Kriemler
Retirado de Samizdat

publicado às 21:37

Conto - Sulfite e Cartolina

por Jorge Soares, em 27.07.13

Sulfite e cartolina

Imagem de aqui


Era uma vez um castelo de papelão, habitado por uma corte de lego, rei vermelho, rainha azul, súditos de peças de três pinos e seis encaixes, cercado por um povoado de tampinhas de garrafa, pobres moradores de plástico e metal. Na torre mais alta do castelo vivia confinada uma princesa de papel sulfite, que olhava a vastidão do reino através de uma pequena janela recortada com tesoura sem ponta e envidraçada com celofane amarelo. De vez em quando uma ama de plástico-bolha aparecia e trocava, junto com os lençóis de papel de seda, o celofane desbotado por um novo de outra cor.

Haviam dito muitas vezes a essa princesa que vida de nobreza é uma barbada, que a de princesa na torre, então, é chuva de purpurina, que depois de alguns anos, de tranças feitas e desfeitas, de lágrimas que adormecem e despertam, de rosas que perdem as pétalas e de feras que se transformam nas almas mais puras do universo lilás, sempre aparece um cavalheiro disposto a levar a moça da torre para outro castelo fincado num reino tão-tão-distante, onde ela poderá engravidar muitas vezes, e tricotar até acabarem-se os fios de lã.

No fundo, mas bem no fundinho, brotava na princesa de papel sulfite uma dúvida pequenina e insistente, um buraquinho de traça no meio do livro velho, ela não sabia se gostava da ideia de esperar, engravidar, envelhecer e tricotar, ou se preferia saltar pela janela e sair sem rumo reino adiante, a descobrir o que havia do lado de lá do riacho que a janela enquadrava.

O tempo passava e passava e a dúvida crescia e crescia e a princesa de papel sulfite percebia que estava perdendo o controle de si, que sua ansiedade e impaciência estavam causando rasgos e fissuras na própria pele de papel, o que naturalmente doía. Da dor sabia que não gostava. A dor insistente indicava que seria preciso fazer alguma coisa, tomar providências, decidir. Mas como? Como resolver ir ou permanecer, aceitar ou recusar, abrir a porta ou trancar, se havia passado a vida aprendendo a andar no meio-fio, entre o dentro e o fora, entre ser e não ser?

Ao reconhecer um momento definitivo, desses que não se pode voltar atrás (e não seriam assim todos os instantes?), a princesa de papel sulfite experimentou profundo desalento: por dentro havia algo tão dolorido crescendo e pedindo passagem, vazão, que a moça desistiu de suportar e chorou. Chorar quase sempre é uma coisa boa, limpa os olhos e afrouxa o que tem dentro do nariz e do peito, o alívio sai no papel higiênico. Mas no caso da princesa era grave. Era praticamente suicídio.

Pela fresta da janela espiava uma luzinha laranja, que passou ao lado de dentro da torre quando a princesa de papel sulfite começava a se amolecer em lágrimas. Diante da moça surgiu uma mulher de cartolina ruiva, segura e sorridente. Vestia um sobretudo laranja de papel crepom, jeans claro justíssimo e calçava botas de massa de modelar, que a princesa de sulfite jamais havia visto. Reconhece o tipo? Fadas madrinhas são sempre providenciais.

Antes que a princesa lançasse qualquer pergunta, a fada foi logo tirando de dentro da bolsa canetinhas, giz de cera, cola bastão e estilete. Disse um "vem cá" enérgico e incontestável e em dois tempos a princesa estava, amarrotada, diante do espelho. A fada dispôs os apetrechos diante da moça e ficou ali, de braços cruzados, "tudo contigo. Não era disso que precisavas, fazer escolhas? Começa escolhendo a ti e as tuas cores. Não parece razoável?"

Parecia. Logo a princesa desvestiu o vestido de sulfite branco, esticou-o no chão da torre e dele recortou uma minissaia rendada, uma bermuda, um colete e um top franzido. Desenhou riscas, bolinhas, pedrarias, zíperes, flores coloridas e botões de madrepérola. Recebeu da fada poucos de massa de modelar e fez as próprias botas e com as sobras um par de scarpins dourados, capazes de devolverem-lhe ao lar. Combinou as botas novas com a minissaia e o colete, guardou o resto na bolsa da amiga e sorriu.

A princesa já havia recobrado bom humor e esperança no futuro quando a fada puxou da bolsa uma chave de plástico. Entregou-a à princesa, que já sabia o que fazer: abriu a porta da torre, por onde saíram as duas de mãos dadas e às gargalhadas. Os empregados tentaram interpelar as moças, queriam saber para onde iam, mas elas deixaram a eles apenas vento.

Fora do castelo, à beira do riacho de lantejoulas, a fada perguntou se a princesa sabia nadar. Não sabia. "Sabes voar?", tentou novamente. Não sabia. A fada, então, recortou um par de asas em papel de chiclete e colou nas costas da companheira. Atravessaram a água aos voos e riram muito deitadas na grama, ao aterrissarem na outra margem.

"Estou feliz, fada. Obrigada. Estou leve", iniciou a princesa, numa conversa necessária. Deitadas lado a lado, as moças ficaram muito tempo olhando fundo uma nos olhos da outra, sem procurar nada, nem respostas, nem pistas, nem explicações. A princesa olhava e admirava a coragem da fada, as linhas no rosto da fada, a pureza e a verdade na fada. A fada, por sua vez, contemplava a resignação e a força da princesa, o conflito da princesa, a intensidade e os olhos castanhos da princesa.

Não saberiam precisar quanto tempo deixaram-se ficar estendidas ali no capim, mas estar lá era libertador. Daqueles risos em diante escolheriam a estrada e os novos planos. Talvez se separassem e viajassem para terras distantes, talvez casassem com camponeses de E.V.A, talvez virassem assalariadas, qualquer rotina seria sempre possível, mas ali naquela grama, eram apenas as duas e isso era muito, era possibilidade, era amor.

O dragão não apareceu, o príncipe de laminado não veio, a princesa nunca foi perfeita e a fada madrinha não foi embora. Não se sabe se viveram juntas para sempre, mas foram felizes como raros sabem ser. Na história daquelas duas não havia espaço para Era uma vez. Todos os inícios começavam diferente, Eram muitas vezes. 


Andréia Pires


Retirado de Samizdat

publicado às 21:19

As mulheres e a psicologia dos ramos de flores

por Jorge Soares, em 15.02.12

Rosas no dia dos namorados

Imagem minha do Momentos e Olhares

 

Ouvido à hora do almoço:

 

- Ontem quando fui comprar o ramo de flores para a minha namorada, estava lá um tipo a comprar três ramos!

- Assim é que é, um para a Mãe, um para a filha e outro para a mulher! - Diz a menina da direita

- Nãaa, um para cada uma das amantes! - Diz a menina da esquerda!

 

Após um silêncio mais ou menos constrangedor, o rapaz acrescenta:

 

-Nesse caso as amantes ficam caras, porque eu paguei 10 Euros e ele pagou 55.

 

A psicologia feminina é mesmo estranha... digo eu.

 

Jorge Soares

publicado às 12:58


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