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Conto - Até Amanhã, Uma Herança

por Jorge Soares, em 13.06.15

até-amanhã.jpg

 

 
Dinheiro vivo, terras fecundas, imóveis em bom estado de conservação, testamento, joias, fotografias desbotadas feitas do jeito antigo à base de traquitanas analógicas e processo de revelação em quarto escuro. Aposto que a palavra herança te remete a essas figuras. Acontecia comigo, até que comecei uma fase estranhíssima de olhar para as coisas e para as pessoas de casa sem vê-las completamente. Tinha uma ponta de ausência enchendo o meu ver. Estavam todos ali, acordando, trabalhando, reclamando da falta de tempo, esperando o próximo aniversário para reunir a parentada num churrasco. Tudo criando raiz como a muda de manjericão que plantei na lata do achocolatado. Tudo por perto, mas me deixando a impressão de que me faltaria, de que terminaria a qualquer momento sem deixar fio, registro, vínculo.
 
Minha inicial em cursiva, cheia de voltas e um laço, num risco só. O guardanapo passado no prato antes de servir a comida no restaurante, a cor do meu cabelo, o desenho das unhas, a repulsa por queijo, a risada, uns desejos, umas melancolias. São hábitos e traços que fui pegando sem licença e passando para o meu nome. Constam no meu inventário imaginário. Não é preciso morrer para deixar legado. O herdar se faz até quando alguém toma para si uma maneira bem nossa de dizer, de fazer, de entender coisas, quando se ensina ou se aprende. Meu pai herdou o meu “até amanhã”. Não inventei a expressão, óbvio, mas costumo usar em todas as despedidas. Antes de dormir, depois do boa noite emendo um até amanhã. Digo até amanhã para as visitas, mesmo que nosso reencontro só seja possível no próximo verão. Assino meus e-mails com até amanhã. E na maioria das vezes tenho vontade, realmente, do contato no dia seguinte. Agora o pai entendeu onde eu queria chegar com o meu até amanhã e o adotou.
 
Não sei explicar, mas nunca quero viajar. Evito. Nem a passeio, menos ainda a trabalho. E na segunda eu precisava participar de uma reunião na capital. Ô, saco. Final de domingo e eu com o carro cheio de mala, livros, sacos de biscoitos, muito contrariada começo a partir e o pai ali, esperando para fechar a garagem. Resmungo que não quero ir, que me dói a barriga, torcendo para que ele ainda possa me mandar ficar. Não pode. A vida adulta herda dos pais o poder sobre os filhos. Vai tranquila, filha. Dirige com calma, deixa o telefone ligado, e volta assim que puderes. Vamos te esperar com uma janta especial na quarta, lembra disso. Bufo, faço beiço e me conformo: tá certo, pai. Então, até amanhã, já que não tenho alternativa. Até, me responde, com aquele sorriso sossegado que só ele tem. Dou play na Norah Jones e sigo devagarinho, quase desistindo de andar as quatro ou cinco horas de estrada, os olhos molhados. Sou ridícula com esse tanto de apego, mas estou sozinha e me deixo chorar um pouco alto. Dane-se o rímel. Meu pai, parado em frente ao portão, espera que meu carro suma no horizonte da avenida larga. O semáforo do primeiro cruzamento está verde para mim, é um sinal, penso. E penso pela última vez. A caminhonete no sentido perpendicular fura o vermelho, me atravessa e fim.
 
 
Andreia Pires
 
Retirado de Roda de Escritores

publicado às 21:13

Conto - Ivovivo

por Jorge Soares, em 25.01.14

Ivo vivo

 

Na sala de espera do consultório do dentista, um menino aguarda o retorno da mãe ao fim da consulta. A secretária distraída mal percebe a presença da criança que balança as pernas no ar, sentada na beira da cadeira. Inquieto, João tem pouco menos de cinco anos e olhos muito redondos e piscantes. Vê, então, um aquário de verdade pela primeira vez. Levanta e encosta mãos e nariz no vidro. Fica a encarar o pequeno peixe laranja. 

 

Se fosse meu, chamaria de Ivo, pensou. Será que gosta de arco-íris, de bolhas de sabão, de estilingue, de colecionar tampinhas de refri, de gelatina de morango, pergunta para dentro. O peixe nada devagar entre paredes transparentes. Parece triste demais para o gosto de João. O bicho além de preso vive sozinho, sem mãe para passear de mão. O coitado nem tem mãos, mas perto da cabeça tem uns pontinhos azuis tão bonitos e brilhantes, que devem ter sido feitos de canetinha, conclui. 

 

João enfia a mão na água, lá no fundo, e caça o peixe. A secretária não repara, concentrada que está em mascar chiclete e enrolar a caneta na mecha fina de cabelo. Guardou o então Ivo dentro do bolso grande do macacão. Agora esse peixe vai ver o que é bom, pensou satisfeito. A mãe não demorou. Vamos, filho? Lá se foram João e o peixe: o primeiro pela mão com a mãe, cheia de pressa, e o segundo, seguro e aquecido no bolso do macacão. 

 

João, feliz, imaginava como seria na escola, ele de uniforme, com cadernos e giz de cera, mochila, lancheira e Ivo o acompanhando. Cantariam Escravos-de-Jó, aprenderiam a amarrar cadarços de tênis, recortariam anjos e corujas de papel para colar na parede do quarto. Fariam coisas incríveis juntos e quando adultos viajariam pelo litoral de Santa Macarina, ou Catarina, de jipe – já havia entendido que na tevê litoral era o mesmo que praia, e jipe um tipo diferente de chapéu. O nome da santinha é que não tinha ouvido bem.

 

Em casa, engoliu o leite achocolatado que a mãe mandou tomar e saiu. Correu para mostrar a novidade aos companheiros das partidas de bolinhas-de-gude. Ofegante ainda, João catou do bolso o que trazia. Olhou para aquilo tão surpreso quanto os amigos. Fechou as mãozinhas em concha, Ivo aconchegado no fundo da mão, estático. Ele se mexia, bem rápido, eu tenho certeza. Vocês tinham que ver como abanava essas coisinhas penduradas que parecem rabo, tinham que ver… – disse, fazendo um esforço danado para não chorar.

 

Os guris riram e foram embora. João sentou no cordão da calçada sem desfazer a concha das mãos. Os planos desfeitos, nada de anjos, corujas, jipes ou Escravos-de-Jó. Daí o João chorou bem forte para a mãe chegar. Eu só queria que ele fosse feliz assim, mãe, que nem eu... Entendo, filho. Vamos consertar as coisas? Antes de o dia acabar, o aquário do consultório do dentista recebeu novo hóspede laranja e o quarto do João ganhou mais um morador miúdo, dentro de uma casa de vidro azul: o Ivovivo.

 

Andréia Pires

 

Retirado de Samizdat

publicado às 21:26

Conto - A revolta de Maria

por Jorge Soares, em 02.11.13

Maria

Imagem minha do Momentos e Olhares


Qualquer semelhança com um clássico do cinema não será coincidência.


Maria é uma mulher real, com dilemas comuns e sonhos, um punhado de sonhos, simples, fáceis de concretizar. Maria quer o básico: ser feliz. Maria quer o básico através da tríade convencional: casar, ter filhos e estabilidade (financeira, leia-se). Em momento de ousadia onírica, Maria detalhou para si perspectivas: queria casar com um homem moreno-forte-bonito, ter dois filhos, um casal, o menino primeiro, e uma casa arejada, com suíte e churrasqueira, um carro de quatro portas, e grana suficiente para viajar para Camboriú no mínimo uma vez por ano, a renovar lua de mel. Maria também queria parecer com atrizes de novela: ora ter cabelo liso, longo e louro, ora crespo graúdo, castanho mel e Chanel médio, ora usar dourado e pedrarias, ora usar prateado e pingentes solitários, e ser magra. Sempre. Não precisava ser, assim, muuuuito magra, só o suficiente para entrar no jeans 36 da adolescência, que terminou faz pouco.

Digamos que Maria tenha conseguido realizar em parte o punhado de sonhos simples que tinha e segue tendo. Maria namorou, noivou e casou com Charleson, que é demais da conta: tão moreno que no verão dá para desenhar à unha em sua pele bronzeada, tão forte que concentra energia na região do abdome e tão bonito que sobra formosura nas fotos do casal. Pois Charleson é comerciante, autônomo, de sucesso. Vende por sua conta lenços, meias de lã, cedês e devedês copiados, calculadoras, relógios de pulso digitais, bolsas, carteiras, canetas, baralhos e mais um monte de coisas importadas. O dinheiro chega. A renda de Charleson paga o essencial da família e os luxos da esposa, normalmente na lojinha de acessórios preço-único. E eles já têm o primeiro filho, o Ricardinho, com três anos de pura traquinagem, cheio de saúde e gosto por futebol.

Maria preferiu dedicar-se à casa, ao marido e ao filho, trabalhando diária e incansavelmente pela concretização do sonho simples de ser feliz e estava praticamente lá. A irmã para Ricardinho já está encomendada para daqui cinco anos, os passeios para o Rio de Janeiro e a Bahia, além de Camboriú no fim do ano estão marcados, para onde vão no carro próprio zero quilômetros, não falta nada, pensa. Maria enumera, faz listas, risca itens e seu cálculo não fecha. Falta ela. Obesa, cabelos oleosos com três tons de cor, chinelo e meia, meia barra de chocolate na mão esquerda, um cesto de roupas para estender na corda, outro para dobrar e guardar nos armários.

Maria investe em si, mira e atira, mas erra a pontaria: escolhe o exemplo feminino a seguir na novela das oito, assiste Bem Estar e o quadro Medida Certa do Fantástico para aprender a lidar com as estrias, as gorduras localizadas, os joanetes e o cocô, consome livros de maquiagem como se a decoração do rosto fosse acontecer pela leitura, compra roupas na seção teen e estoca alimentos integrais na promessa de voltar ao peso ideal do corpo antigo. Faz dieta da proteína, do carboidrato, do iogurte, da sopa, do sol e da lua e se flagra comendo pão com mortadela de madrugada, escondida do mundo, em quem bota a culpa quando não consegue perseverar.

Maria é uma perseguida. Todo mundo acha que ela é gorda porque tem bochechas no quadril, acha que ela é feia porque tem o nariz de batata e cachos indefinidos, acha que ela não é boa mãe porque deixa o Ricardinho ver a Barbie na tevê, acha que ela é uma infeliz porque não tem profissão. Só falta a Maria parecer com a protagonista da novela para a felicidade estar completa, mas para o mundo todo, não. E quando o mundo todo diz que Maria não consegue, não tem, não pode, não é, aí é que ela se enfurece e se entristece para valer. Então Maria come. Porque comer alivia, acalma, devolve Maria à Maria.

Foi em meio a mais um intenso período de restrição alimentar que a revolta de Maria se deu. Ventava como nunca na varanda, naquele entardecer, fazendo os cachos indefinidos de Maria soltarem do coque frouxo e enredarem-se uns nos outros, misturados aos restos de capim cortados por Charleson, pela manhã. Algo subindo por dentro aquecia o ventre de Maria, que rumava para a horta familiar, cheia de alfaces, couves e rúculas verdinhas. Não era mais a qualquer a quem todo mundo inquiria, a Maria era um gigante em batalha, uma lança em curso, um rifle pronto ao disparo. Estava a dois passos do cercado quando decidira, por fim, tomar na mão a própria vida e mudar de rumo, mudar de sonho, mudar seu mundo. Maria atirou-se de joelhos sobre as couves e arrancou molho por molho, puxou salsinhas, cenouras, rabanetes e nabos pelos talos. O quente da barriga saiu pela boca, num urro ardido e prolongado:

- Por Deus eu juro! Por Deus, eu juro, eles não vão acabar comigo e quando terminar, jamais sentirei fome de novo. Nem eu nem minha família. Mesmo tendo que matar, mentir, roubar ou trair, eu juro por Deus, jamais sentirei fome novamente!

Suja de terra, semblante fechado, Maria juntou o resultado da colheita intempestiva e foi para a cozinha. Haveria um banquete – de saladas – para o jantar.


 

publicado às 19:21

Andreia Pires

Imagem minha do Momentos e Olhares


Dizem que quando a gente morre passa um filme. Mentira. Pelo menos comigo não foi assim. Tive para mim duas sequências que se alternaram durante longo tempo, uma à noite, outra de dia. Não sei precisar o quanto nem quantas vezes cada uma repetiu. Dentro disso eu perdi a noção de quase tudo, desaprendi as horas, a fome, a resistência, o meu nome, boa parte das sensações. Ainda me sabia mulher e dona daquele sobrado por onde vaguei até cansar do cansaço. Cada recomeço de cena me trouxe um detalhe novo e eu fui ficando, aconchegada, nesse movimento de carrossel.

Fazia uma noite quente, com vento que mal, mal sacodia a cortina da janela aberta. Eu mesma bordei as barras do tecido branco, escolhi o varão que o suspendeu e os arremates dourados. Estou no quarto onde vivi com meu marido madrugadas de sono pesado, roncos e algum amor. Minha cama cuidadosamente estendida, os lençóis bem passados e os travesseiros arrumados do jeito que eu gosto. Tenho a impressão de que faz muito tempo que não se dorme aqui. Vejo-me sentada sobre o baú de madeira que pintei de branco. Herança da família. Pensei que trocando a cor daria à peça a chance de pertencer ao quarto do casal, combinando com o resto da mobília. Ajoelho-me em frente ao baú e tento abri-lo, mas não tenho a chave do cadeado que o encerra. Quero ter meus livros nas mãos, rever meus recortes, botar meu perfume preferido, olhar as fotos do meu filho. Em vão. Chego a chorar e bater com os punhos sobre a tampa, peço ajuda, socorro, e ninguém vem. Sou apenas eu diante do baú no meio da noite.

Então muda e faz um entardecer alaranjado. Caminho devagar nos corredores do andar térreo. Na sala, o piano de cauda está no lugar onde deixei. Aproximo-me e toco as teclas, ensaio uma sonata, mas não produzo nenhum som. Não desisto. Circulo entre as poltronas e avisto nas paredes alguns retratos. Somos nós em quatro quadros: o clã ao redor do macho provedor, meu filho em seu terceiro aniversário, meu filho no colo dos avós, e eu, rosto e ombros. Gosto do meu penteado assim, em coque no alto da cabeça e a risca dividindo a cabeleira ao meio. Os brincos de ouro são meus preferidos. De repente passa rente às minhas pernas uma menina de uns dois anos, como se me atravessasse. Atrás dela uma jovem que não conheço solicitando disciplina e calma à criança. O que fazem essas pessoas na minha casa, me pergunto. Não demora, entra pela porta telada da cozinha um rapaz de calça caqui e camisa azul, carregando uma pasta marrom. Reconheço os cabelos lisos e castanhos muito escuros como os meus. Meu filho cresceu. Sinto um misto de orgulho e tristeza, quero me fazer presente e não consigo. Posso, no máximo, deslizar entre eles, observá-los de perto, esperar.

Um dia, a mulher ruiva interrompeu a sequência. Apareceu pela primeira vez de visita, com uma conversa mole sobre vida e satisfação pessoal, cigarro entre os dedos, meu filho atento, a jovem também, sentados ao redor da mesa da cozinha. Ela me percebeu. Me viu e passou a falar coisas olhando bem na minha direção. Fiquei irritada, mandei sair da minha casa. Somente ela ouviu. E ignorou. Voltou outras vezes até que conversamos diretamente. Perguntou se eu já tinha visto o jardim naquele dia. Que dia? - perguntei. Agora, já. Aproximou-se tanto que foi como se ocupássemos o mesmo lugar na cozinha. Ela e eu caminhamos, misturadas, até a porta telada. Ela disse que eu merecia cruzar a linha, vencer o limite. Abriu a porta, disse vai, e eu corri feito criança até a grama. Senti o capim sob os pés e o sol. O sol. Parece terrível assim, a repetição da repetição sem fim. E é. Mas o depois foi pior. Quando cessaram as sequências me ficou o nada. Eu fadada a ser ninguém na claridade. 


Andréia Pires

Retirado de Samizdat

publicado às 21:30

Conto - Sulfite e Cartolina

por Jorge Soares, em 27.07.13

Sulfite e cartolina

Imagem de aqui


Era uma vez um castelo de papelão, habitado por uma corte de lego, rei vermelho, rainha azul, súditos de peças de três pinos e seis encaixes, cercado por um povoado de tampinhas de garrafa, pobres moradores de plástico e metal. Na torre mais alta do castelo vivia confinada uma princesa de papel sulfite, que olhava a vastidão do reino através de uma pequena janela recortada com tesoura sem ponta e envidraçada com celofane amarelo. De vez em quando uma ama de plástico-bolha aparecia e trocava, junto com os lençóis de papel de seda, o celofane desbotado por um novo de outra cor.

Haviam dito muitas vezes a essa princesa que vida de nobreza é uma barbada, que a de princesa na torre, então, é chuva de purpurina, que depois de alguns anos, de tranças feitas e desfeitas, de lágrimas que adormecem e despertam, de rosas que perdem as pétalas e de feras que se transformam nas almas mais puras do universo lilás, sempre aparece um cavalheiro disposto a levar a moça da torre para outro castelo fincado num reino tão-tão-distante, onde ela poderá engravidar muitas vezes, e tricotar até acabarem-se os fios de lã.

No fundo, mas bem no fundinho, brotava na princesa de papel sulfite uma dúvida pequenina e insistente, um buraquinho de traça no meio do livro velho, ela não sabia se gostava da ideia de esperar, engravidar, envelhecer e tricotar, ou se preferia saltar pela janela e sair sem rumo reino adiante, a descobrir o que havia do lado de lá do riacho que a janela enquadrava.

O tempo passava e passava e a dúvida crescia e crescia e a princesa de papel sulfite percebia que estava perdendo o controle de si, que sua ansiedade e impaciência estavam causando rasgos e fissuras na própria pele de papel, o que naturalmente doía. Da dor sabia que não gostava. A dor insistente indicava que seria preciso fazer alguma coisa, tomar providências, decidir. Mas como? Como resolver ir ou permanecer, aceitar ou recusar, abrir a porta ou trancar, se havia passado a vida aprendendo a andar no meio-fio, entre o dentro e o fora, entre ser e não ser?

Ao reconhecer um momento definitivo, desses que não se pode voltar atrás (e não seriam assim todos os instantes?), a princesa de papel sulfite experimentou profundo desalento: por dentro havia algo tão dolorido crescendo e pedindo passagem, vazão, que a moça desistiu de suportar e chorou. Chorar quase sempre é uma coisa boa, limpa os olhos e afrouxa o que tem dentro do nariz e do peito, o alívio sai no papel higiênico. Mas no caso da princesa era grave. Era praticamente suicídio.

Pela fresta da janela espiava uma luzinha laranja, que passou ao lado de dentro da torre quando a princesa de papel sulfite começava a se amolecer em lágrimas. Diante da moça surgiu uma mulher de cartolina ruiva, segura e sorridente. Vestia um sobretudo laranja de papel crepom, jeans claro justíssimo e calçava botas de massa de modelar, que a princesa de sulfite jamais havia visto. Reconhece o tipo? Fadas madrinhas são sempre providenciais.

Antes que a princesa lançasse qualquer pergunta, a fada foi logo tirando de dentro da bolsa canetinhas, giz de cera, cola bastão e estilete. Disse um "vem cá" enérgico e incontestável e em dois tempos a princesa estava, amarrotada, diante do espelho. A fada dispôs os apetrechos diante da moça e ficou ali, de braços cruzados, "tudo contigo. Não era disso que precisavas, fazer escolhas? Começa escolhendo a ti e as tuas cores. Não parece razoável?"

Parecia. Logo a princesa desvestiu o vestido de sulfite branco, esticou-o no chão da torre e dele recortou uma minissaia rendada, uma bermuda, um colete e um top franzido. Desenhou riscas, bolinhas, pedrarias, zíperes, flores coloridas e botões de madrepérola. Recebeu da fada poucos de massa de modelar e fez as próprias botas e com as sobras um par de scarpins dourados, capazes de devolverem-lhe ao lar. Combinou as botas novas com a minissaia e o colete, guardou o resto na bolsa da amiga e sorriu.

A princesa já havia recobrado bom humor e esperança no futuro quando a fada puxou da bolsa uma chave de plástico. Entregou-a à princesa, que já sabia o que fazer: abriu a porta da torre, por onde saíram as duas de mãos dadas e às gargalhadas. Os empregados tentaram interpelar as moças, queriam saber para onde iam, mas elas deixaram a eles apenas vento.

Fora do castelo, à beira do riacho de lantejoulas, a fada perguntou se a princesa sabia nadar. Não sabia. "Sabes voar?", tentou novamente. Não sabia. A fada, então, recortou um par de asas em papel de chiclete e colou nas costas da companheira. Atravessaram a água aos voos e riram muito deitadas na grama, ao aterrissarem na outra margem.

"Estou feliz, fada. Obrigada. Estou leve", iniciou a princesa, numa conversa necessária. Deitadas lado a lado, as moças ficaram muito tempo olhando fundo uma nos olhos da outra, sem procurar nada, nem respostas, nem pistas, nem explicações. A princesa olhava e admirava a coragem da fada, as linhas no rosto da fada, a pureza e a verdade na fada. A fada, por sua vez, contemplava a resignação e a força da princesa, o conflito da princesa, a intensidade e os olhos castanhos da princesa.

Não saberiam precisar quanto tempo deixaram-se ficar estendidas ali no capim, mas estar lá era libertador. Daqueles risos em diante escolheriam a estrada e os novos planos. Talvez se separassem e viajassem para terras distantes, talvez casassem com camponeses de E.V.A, talvez virassem assalariadas, qualquer rotina seria sempre possível, mas ali naquela grama, eram apenas as duas e isso era muito, era possibilidade, era amor.

O dragão não apareceu, o príncipe de laminado não veio, a princesa nunca foi perfeita e a fada madrinha não foi embora. Não se sabe se viveram juntas para sempre, mas foram felizes como raros sabem ser. Na história daquelas duas não havia espaço para Era uma vez. Todos os inícios começavam diferente, Eram muitas vezes. 


Andréia Pires


Retirado de Samizdat

publicado às 21:19

Conto - Agulha número 4

por Jorge Soares, em 23.03.13

Adolescente Grávida

Imagem de aqui


De repente, tudo o que se fala tem a ver com bebês. Descoberta de gravidez, previsão de chegada, batimentos cardíacos normais, ultrassons, chás de bebê, decoração de quarto de recém nascida, partos sem grandes traumas, visita à maternidade, estado de graça, babação, fotos e mais fotos, muito contentamento. Adoro crianças, especialmente as menores, e acho que essa movimentação de vida que começa dá uma leveza ímpar aos humores das pessoas, faz durar nosso estado de alegria. Tenho reparado até certa cobrança, afinal de contas quando se cumprem as regras sociais que dão origem às famílias no sentido tradicional não é apenas o relógio biológico que pede satisfações. Apesar de a última semana ter sido cheia de notícias assim, há uma lembrança sobre gestação que dá voltas na minha cabeça, uma história difícil.

A Laura nunca foi do tipo que arrasta tristeza pelo chão, mas nos últimos meses olhava para sua vida e não conseguia ver nada de bonito, de colorido, de seu. Do lado de fora da porta de entrada, aconchegada sob o cobertor na cadeira de balanço, ela desembrulhou sem entusiasmo o presente de Daniel. Era a décima oitava terça-feira desde aquele dia e o primo insistia em fabricar uma intimidade que, por Laura, jamais teria lugar para existir. Os dois foram criados muito próximos e os parentes tratavam com naturalidade a mania que ele tinha de cercá-la. Um dia isso passa, comentavam após almoços, deixa ele conhecer mulher, garantiam os tios. Mas não passou. Numa manhã bem cedo Daniel valeu-se da ausência dos pais de Laura na casa do campo, entrou sem fazer barulho, subiu as escadas, abriu a porta do quarto dela e entrou. Houve grito, houve socos, houve choro e pedido de socorro, mas não havia ninguém por perto, com ouvidos de ouvir.

Dentro da caixa do presente, novelos de lã vermelha e sapatinhos de bebê recortados da revista. Perdeu o que restava de graça a Laura, que nos últimos dias sentava no mesmo lugar, na mesma hora, a tricotar um blusão cinza de gola alta. Pensou na avó paterna, que lhe ensinou a colocar os pontos na agulha e a tramar as primeiras carreiras. Lembrou da rigidez da velha e quase ouviu a voz grave de repreensão: isso não é ponto que se dê, criatura! Apertado desse jeito, vai terminar um ninho de camundongos o teu tricô. Pode desmanchar e fazer de novo, com decência. Teve medo de imaginar como a avó a trataria se fosse viva e soubesse que.

Sabia que estava perdida, nem sinal de menstruação. Confirmou o adiantado do blusão, já tinha as mangas e as costas prontas. Começava a frente com as agulhas mais finas, de número 4, como havia aprendido. Quinze, dezesseis, dezessete pontos, aflição. Olha, não é que eu não te queira, não é isso. Vinte e nove, trinta. Eu não posso contigo e não suporto de onde tu vens. Não tenho um corpo que possa te servir de casa em tempo algum. Do meu desgosto jamais nasceria exemplo e retidão de heranças para ti. Eu não tenho nada de bom para te oferecer, nem buscando lá no fundo. Cinquenta e cinco. Não sou nada. Acho que nunca cheguei a ser. Laura dizia coisa para dentro, numa conversa longa e necessária, sem perder-se nas contas.

Respirou fundo e, decidida, arrancou a agulha dos pontos, passando-a para baixo do cobertor. Sem provocar suspeitas dos pais que iam e vinham do campo e entravam na casa com frequência, envolvidos que estavam com as ovelhas, puxou com calma a saia para cima das coxas, arredou a calcinha para o lado com uma das mãos. Segurou firmemente a agulha e cravou o próprio ventre. Diversas vezes. Aguentou a dor sem choro até o fim. Até o frio. Anoitecia e Laura tinha olhos vidrados no horizonte de árvores verdes.


Andreia Pires


Retirado de Samizdat

publicado às 21:25

Conto - Segunda Voz

por Jorge Soares, em 09.03.13

Segunda voz

Imagem de aqui

Destino é invenção de gente insegura. Diná as vezes tinha vontade de mandar fazer uma camiseta com a sentença estampada em caixa alta. Em vermelho sinaleira, para não restar dúvida e evitar a aproximação da turma do “Deus sabe o que faz”. Consciente de que andava azeda, entendia também que a fossa era inevitável. Tinha obrigação de cumprir o ciclo cinza até o final, esgotar a dor, antes de retomar o colorido. Podia lidar com contratempos, com imprevistos, com problemas, com tragédias, até, mas não contava com a sequência de catástrofes em sua vida. Estava sufocando debaixo de tanto infortúnio e não alcançava as tintas para se repintar.

Realizava tarefas cotidianas como máquina, porque alguém deveria fazê-las, mas era como se mandasse apenas o corpo para a rua. A alma ficava perdida entre as gavetas do armário, cheia de nada. Segundo dia do mês, péssimo para ir ao banco. Era isso ou arcar com uma multa gorda e o beiço do marido. Senha na mão, Diná sentou-se na cadeira vaga na área de espera. Perderia coisa de uma hora naquela bobagem. O senhor ao lado puxou conversa, ignorando sua cara de não-quero-papo. Entre sorrisinhos e concordâncias, lá pelas tantas o homem professa, hoje em dia tem filho a mulher que pode e não a que quer. Depois dos trinta a capacidade de engravidar cai pela metade e a mulher tem tantas tarefas, tantos compromissos que vai deixando a formação da família em segundo plano e quando vê não dá mais tempo, perdeu o bonde. Por que raios ele entrou nesse assunto, pensou Diná, enquanto respondia ah é para o falante senhor, não por acaso obstetra aposentado. 

Saiu com a conta paga e a resistência por um fio. Chega, sabe? Não posso acreditar que estou nessa vida para colecionar perdas feito troféus ao avesso. Perdi o viço buscando a colocação que eu merecia na empresa, depois de anos de dedicação e estudo. Perdi a confiança no meu marido, que provavelmente me trai com alguma ordinária da firma e pensa que me engambela com a conversa da hora extra, da pilha de relatórios para amanhã ou de que ficou preso no trânsito ou. Perdi o emprego para uma criatura mais jovem, mais magra e mais alta, com quilômetros de lattes. Perdi a criatividade. Perdi a energia. Perdi meu filho na sexta semana da gestação, pela segunda vez. E já passei dos trinta. Impressionante como nada evolui, nada nasce de mim. Voltou a pé para casa. Subiu os seis lances de escada. Entrou. Num impulso, foi até a sacada e sentou no parapeito. A vista dava para os fundos do prédio, circundado com grades pontiagudas e cerca elétrica. Despencar dali era morte indiscutível. 

Comum em duplas sertanejas, a segunda voz normalmente é feita pelo sujeito menos expressivo e mais discreto, que tem o papel fundamental de dar o eixo à voz principal. É quem faz pouco sucesso com fãs, mas segura as pontas e apara os exageros do protagonista, não deixa a canção se perder em agudos, não descompassa, pelos dois. Diná não cantava, literalmente, mas é possível que sua ladainha mental tenha encorajado uma segunda voz. Pensa melhor, Diná, disse o rapaz quase transparente, debruçado ao lado dela. Olha bem, olha fundo, olha ao redor. O que mais fazes é gerar. Apavorada com a ideia de estar louca, para completar a derrota, desceu de onde estava, correu para a cama, cobriu-se com o lençol até a cabeça e ferrou no sono. O rapaz fez sua parte. Regou as violetas, o pé de salsa, o de manjericão e o tomateiro de Diná, que recém dava as primeiras flores amarelas, e sumiu.

 

Andreia Pires

Retirado de De solas e Asas

publicado às 20:44

Conto - Para ela, que não virá

por Jorge Soares, em 23.02.13

Para ela, que não virá

Imagem minha do Momentos e Olhares


Chega. De antemão te peço desculpas por não insistir mais em caber no molde. Eu tentei, me esforcei, mesmo. Namorei sério, morei junto, amei para valer, criei a cena adequada, posicionei os personagens, e não. Suportei cobranças das mais descabidas, desnecessárias e antigas, perdi para a frustração e ganhei dela tantas vezes, segui à risca anos de terapia, mas não consegui. O desejo de dar a passagem nunca nasceu em mim. Não é pessoal, não tenho nada contra quem és ou quem te tornarias. Estou certa de que serias alguém decente e realizada apesar da minha proximidade. Tu, do lado de fora, não me assustas. Meu fracasso está no meio do processo. Minhas mãos suam e algo na região da barriga se retorce quando te imagino ganhando o mundo, descolada de mim. Sofro de pavor, de agonia, de medo de morrer com dor, urrando. São pensamentos assim e outros piores que preenchem qualquer espaço vago que haja para a vontade da maternidade.

As vezes sinto que não seria segura a nossa convivência, pelo menos nos primeiros anos. Tenho tido um sonho recorrente, que me atordoa durante os dias que seguem o episódio: sou eu te olhando bem de perto enquanto dormes, meus braços apoiados no limite do berço, sou eu absolutamente feliz te contemplando. O sol da manhã ilumina o quarto e poucos de vento sacodem a cortina de voil branco. De repente, o calor me invade pelas tripas e sobe até a nuca, entendo que estou prestes a perder o controle e embora queira parar, é outra quem me comanda. É meio que possessão, estou em mim, mas me divido com esse duplo meu, uma louca. Grito forte que a outra não ouse, paraliso, e ela me ignora. Desliza as minhas mãos e age, não posso impedir. Apertamos o teu pescoço até que o contorno da tua boca de recém-parida escureça e teu choro acabe. Então, acordo desnorteada, querendo esquecer, mas é impossível. Não és tu o que me assombra, entendes? 

Difícil de admitir é que a minha parte insana talvez não more lá, em uma casa onírica. É provável que já tenha se mudado de mala, cuia e chinelinhos para a vida real. Tem sido rotineiro vê-la saltar e complicar as coisas. Faz pouco, surtamos. Repetiram aquela pergunta desgraçada, para a qual não sei dar a resposta que exigem com olhos e sorrisinhos maliciosos, “e quando vem o bebê”, me torturam. Que tanto querem saber, afinal? Ela não virá. Não virá. A informação me sai entre dentes. Não sei de onde tirei a certeza de que, caso viesse a gerar, meu broto seria mulher como eu. Me julgam pelas palavras. Dizem que me referir a ti assim já é meu corpo e minha alma querendo a tua presença aqui. Agora. Reparei que meus ossos, seios e cabelos estão diferentes e reconheço que o relógio biológico avança, pedindo também explicações. Perdoa, filha, por não te deixar me atravessar. Por favor, se não puderes entender, minimamente aceita que meu conflito escancara uma covardia tremenda. De um jeito torto, já te protejo, e quase me convenço que isso, por si, vai dando à luz uma mãe. É a melhor que podes ter. Por hora, sigo na combinação anticoncepcional/camisinhas, com todo meu respeito a ti. E a mim.


Andréia Pires


Retirado de Samizdat

publicado às 19:12


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