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Conto - A espera

por Jorge Soares, em 27.09.14
A Espera
Imagem de aqui
Já faz um punhado de dias que ele entrou no mar e não voltou mais. Faz esse mesmo punhado que eu me paro aqui na beira da água pra esperar que ele saia. Nem tinha amanhecido direito e o homem já tava na rua, as rede nas costa, o lampião e a marmita na mão, pronto pra subir no caíco. Naquela madrugada eu tinha sonhado coisa ruim, avisei pra ele não ir, mas o desinfeliz não me escutou e ainda saiu a passo, que tava atrasado, então eu não tava vendo os outros cinco lá na frente, já embarcado? É claro que eu tava vendo. E isso era o pior. Sonho ruim parece que fica acontecendo e acontecendo e acontecendo nas vista depois que a gente se acorda.
Ele foi o último a embarcar. Tava com as bermuda marrom de pescar e a camisa branca que a minha sogra deu. Era pra ter levado o casaco, que de noite esfria, mas nem isso ele atinou. E eu voltei pra casa dar jeito na vida, plantar umas muda de tomate gaúcho e limpar as tainha pra janta. Gosto mais frita, mas ele queria ensopada, não custou fazer. E arroz. Passou e muito da hora de dormir, as panela esfriaram em cima do fogão de lenha, brasa apagada, a mesa posta – pras mosca – e ele nada de passar pela porta, assobiando daquele jeito embalado, raspando os calçado na grama pra tirar o barro. Não preguei o olho sentada na cadeira de pelego, uma agonia medonha.
Terminou a madrugada e do meu homem nem sinal. Aí foi a primeira vez que eu me fui pra beira da praia esperar. Com a camisola que a mãe me deu de casamento. Meus cabelo tavam solto e como tinha vento – aqui sempre tem – eles voavam na cara. De vez em quando eu amarrava os cabelo com cabelo mesmo e ficava reparando na bainha de croché na altura do meus joelho. Na minha cabeça eu achava que uma hora eu ia olhar pra frente de novo e ele ia tá ali, parado, de braço aberto, pedindo desculpa. Perdi as conta de quantas vez repeti essa esperança, molhando os pé na água e rezando, misericórdia, pra virgemaria me devolver o marido logo. O tempo foi muito, tanto que a minha barriga cresceu, nasceu a criança e ele inda não veio.
Ele não veio. Não veio. Não veio, não. Teve um dia que saiu um homem do mar, mas não era o meu. Molhado, esfarrapado, fedendo a podre, a camisa aberta na volta do bucho inchado, os olho arregalado tudo branco, as perna riscada de variz e ferida. A criatura veio na minha direção chamando o meu nome e chorando. O susto foi tamanho que gritei praquela assombração subir ou descer, me deixar em paz, e disparei até a vila. O nenê depois reboleava na minha barriga, eu tava quase ganhando. Fiquei duas noite de cama, adoecida pra parir, quase que morri tendo as dor, eu. Minha nossa. A mãe não saiu da cabeceira e a tia Eva me botava compressa na testa. A coisa foi assim até que o guri nasceu. E me tiraram. A mãe tremia que nem sei, mas não impediu. Levaram meu pequeno embora e eu berrava que era meu, era meu, e eles diziam que louca não tem condição de criar filho. Quando consegui me aprumar e andar sozinha, comecei tudo de novo. Que quando meu homem voltar do mar vai me encontrar esperando por ele, vai saber do que me fizeram, onde já se viu. E vai se arrepender de ter demorado.
Andreia Pires
Retirado de Samizdat

publicado às 21:42

Conto - Que bonito seria se pudesse voar

por Jorge Soares, em 02.08.14
Voar
Gira o copo entre os dedos e o resto de líquido amarelo se agita em redemoinho. É o último gole do whisky roubado do pai. A garrafa atirada no tapete pinga o fim da bebida formando uma pequena poça, suficiente para encher a sala de um cheiro adocicado que faz arder o nariz. Mas Augusto nem repara mais. Tem a garganta aquecida e uma vontade constante de vomitar. E de morrer. O que vier primeiro está de bom tamanho para ele, parado no canto da ampla janela do oitavo andar, nu, a cabeça encostada no vidro há mais de três horas. Augusto olha o mais para baixo que pode e acompanha o movimento dos carros da direita para a esquerda, da esquerda para a direita, da bifurcação para longe, e imagina que bonito seria se pudesse voar, dali, e pousar no topo da antena telefônica que fica atrás do posto de gasolina. Só para sentir o sol nas costas e o vento nos joelhos enquanto observa o trânsito de uma distância em que o silêncio abafa as buzinas e suas ideias feias. 
 
Augusto acha que tem ideias feias. Ele próprio, de fora, não é feio inteiro. As orelhas de abano se disfarçam muito bem entre os cabelos desalinhados e compridos. Os lábios grossos, rosados, e os grandes olhos castanhos compensam com sobra a perna ligeiramente mais curta do que a outra. Ele escorado numa parede, ninguém diz. Faz um tempo, aparecem na cabeça de Augusto uns pensamentos-apito, daqueles que soam de repente e depois estancam, como que produzidos por um sopro forte. Não são iguais, mas tem por constância o objetivo de dolorir. Se Augusto se demora em pensar, quer explodir o açougue do João com garrafa de álcool gel e fósforos longos; quer cortar os tornozelos do padre com a tesoura de podar; quer vazar os olhos da diarista com a agulha de costura da mãe, depois de cavoucar a mãe pelo umbigo com a faca de churrasco; quer ver pane no semáforo para os carros baterem de frente; quer martelar a testa do vizinho enquanto ele dorme. Quereres que não cessam. 
 
Desde ontem cresce uma vontade nova, finalmente um pensamento para si. Já entendeu que precisa escrever e vai usar a pele em lugar de papel. O que registrar ainda não decidiu. Uma carroça carregada de areia grossa e pedra brita cruza a rua e some na esquina. De onde está, vê com nitidez a cola preta abanar enquanto o cavalo caga verde no asfalto. Que bonito seria se pudesse voar e pousar entre as orelhas do animal, cogita Augusto, que bonito. O copo já vazio escorrega das mãos e se estilhaça no piso frio. Os cacos transparentes estão por toda parte. Augusto, descalço, não se move: paralisa. Quer dominar o desejo absurdo de sambar que o inunda, hoje eu vou tomar um porre não me socorre que eu tô feliz. Não consegue. Samba. Samba feito passista nascida e criada em barracão do Rio de Janeiro. Que bom seria se pudesse voar e desprezar os pés que agora ardem, ardem, ardem. Então cata um pedaço pontiagudo de vidro e risca, começando entre os mamilos em direção à barriga, “Que bom seria se pudesse voar”. O sangue escorre pelas pernas. Augusto se afasta da janela uns cinco passos. Convencido de quão bonito é ser livre, toma impulso, corre, atravessa a vidraça e voa.

 

Andréia Pires

Retirado de Samizdat

 

publicado às 21:16

Conto - Porto Solidão

por Jorge Soares, em 12.04.14

 

 

Eu tenho essa dor funda e molhada, espalhada, ardida, gelada. Que a gente quando fica muito tempo no mar se destempera. Encaranga, mesmo. E eu não sei viver noutro lugar nem doutro jeito. Até sou homem de chão, de areia batida, mas bem antes de raiar sol já arremanguei as calça e empurrei o caíco pra dentro da lagoa atrás de camarão. Todos dia é assim. Tenho uns companheiro de arrasto, é verdade, mas é solito que gosto de ir. Pro mar. Fico sozinho, organizando as ideia, até sentir falta da mulher, da comida da mulher, da cama com a mulher. É bom. É difícil, mas é bom. A gente vai levando a vida. Ou ia.

 

Faz um tempo, que eu nem sei dizer quanto, que eu ando na volta. Repito tudo, tudinho mesmo, e me acho aqui, parado, descendo do trapiche, tentando chegar em casa, uma saudade medonha. Não sei que acontece, quando a mulher me vê grita que nem condenada, parece que viu assombração. Diz que é impossível, impossível, que não aguenta o meu fedor, que a virgemaria me leve pro céu, que eu descanse em paz. Não minto, esse berreiro me dá uma gastura. Eu consigo chegar bem pertinho da patroa, quase toco os ombro dela, e então ela se sacode de chorar me mandando embora em nome de Deus. Aí, eu sinto uma tontura e quando me dou conta tô de novo deitado de bruço, emborcado no meio do junco, o vento fazendo bater água na minhas costa.

 

Então, vem alguém de caíco e me desvira no remo, assobia – um curto e dois comprido - para avisar que me achou. O céu por cima é cinza, fumaça, cor da minha alma inchada de tanto molho. Levam o meu corpo para velar, para enterrar, para terminar comigo. Bem rápido para a patroa não me ver assim. Mas eu não sigo. Nem esqueço. Tem muita vida pra viver, peixe pra pescar, a cara do meu filho pra ver, a mulher tá barriguda quase parindo. Preciso ficar. Tento vê ela mais um pouco. Ela me corre. Fico sentado no trapiche de madrugada pensando que acertaram direitinho no nome desse porto: Solidão. Já sei o que isso é. Se não pisasse tanto o peito até que era bonito, as estrela, o vento no nariz, os lampião aceso, ficar sozinho vendo a vida passar sem fazer barulho.

 

E quieto eu me recordo, uma lembrança dentro da outra, que naquela manhã cedinho a mulher me puxava da camisa aberta e pedia chorosa pra eu ficar, que ela tinha sonhado coisa ruim. Na minha frente já iam os outros cinco, pegando as rede, não quero me atrasar. Beijo ela e peço que me espere com tainha ensopada, não vou me demorar. Só que me enganei. Feio. Umas parte do que teve mesqueci, ficou perdida da memória, acho. Teve uma briga, uns vagabundo querendo se criar, meio que lebrinava, era difícil de ver. Me derrubaram com um soco no cucuruto. Não deu pé. Afundei. Sumi. E pronto. Agora fico fazendo esforço de voltar pra minhas coisa, contar do que foi, sarar dessa ferida descascada, mesquentar. Quase dá. Quase. Daí a mulher foge, agoniada, que não pode com o barrigão e os olho branco que fiquei, que assim não me quer mais. E eu volto de onde parei: descendo do trapiche... 

 

Andreia Pires

 

Retirado de Samizdat

publicado às 20:59

Conto - Autodeclaração

por Jorge Soares, em 08.03.14

Pardos

 

Imagem de aqui 

 

 

Mal ou bem, já nos acostumamos. Cada vez que se tenta entrar numa rede social na internet é necessário prestar contas, minimamente, sobre quem se é. É o nome, o sobrenome, o jeito como deseja ser chamado, a data de nascimento, o trabalho ou a ocupação, interesses, preferências, restrições, e e-mails: o principal, o alternativo, o de segurança, etc. Depois de completar campos marcados com asteriscos e ficar em dúvida se gasta tempo ou não com os opcionais, a pessoa precisa ainda digitar como vê uma sequência de letras, números e outros símbolos misturados dentro de um retângulo editável. Para provar que não é um robô. Está assim de gente recorrendo a terapias para curar a crise existencial que momentos decisivos como esse disparam. Se na rotina virtual é dessa maneira, imagina na vida, ordinária, nessa, de todo dia?

 

Valéria vivia passando recibo a respeito de si, mas nem percebia de tão envolvida que sempre esteve com o futuro. Tudo nela parecia acusar, revelar, apresentar, dizer. Em parte. Em uma parte visível e fácil de lidar. Queria ser médica e andar pelo mundo tratando de doenças em regiões de onde normalmente tinha notícia somente pela televisão. Era cabeça, tronco, membros, pele, órgãos, células, sangue, oxigênio, bisturi, medicamentos, livros e mais livros sobre saúde e sobre como funcionam os corpos humanos, um interesse sem fim e o mesmo assunto compulsivamente, feito vinil arranhado, repetindo e repetindo e repetindo o mesmo trecho. Além da que tinha na escola, sabia o rumo das bibliotecas da cidade e da universidade e fazia desses lugares pontos estratégicos de concentração. Falta pouco para os exames de admissão e preciso estar pronta, dizia para dentro pelo menos uma dúzia de vezes, diariamente, como uma reza, um mantra particular, enquanto cumpria à risca seu plano de estudos. 

 

Prestaria provas em oito instituições de ensino superior, todas com seus calhamaços de exigências e formulários, curiosidades estapafúrdias - ô palavrinha que gostava de pronunciar: es-ta-pa-fúr-dia e suas variações – e prazos de inscrições abertos. Cheia de esperanças, juntou documentos e começou a preencher os requisitos da primeira. Com os novos rearranjos do governo para o ingresso nas universidades, as combinações poderiam ou não dar certo para Valéria. Andava sobre a linha que separa ou amarra esforço e sorte quando percebeu que, na verdade, não entendia o jogo. Havia estudado mais do que bastante, mas nem chegara perto do todo, do infinito.

 

Autodeclarar-se isto ou aquilo não era problema, o caso é que realmente não sabia. As certezas resvalando pelas teclas do computador. Olhou para as mãos abertas, correu os olhos pelos braços e. Não era preta, nem branca, nem amarela, que raio significava o termo “pardo”? Só lembrava do rolo de papel que na escola usavam para fazer cartazes. E sexo? Nunca tinha feito. Nasceu com vagina, mas não tinha tempo para desejar ninguém, podia muito bem gostar de mulheres e/ou de homens, tinha um apreço tão grande por gente, em especial por crianças e velhos. E que diferença fazia contar do salário da mãe e do pai, um morto outro sumido, se era ela e não eles quem auscultaria peitos e diagnosticaria dores dali para frente? Seria indígena? Compartilhava de cabelos lisos e negros e selvagens e de uma vontade inexplicável de verde com povos distantes. Por que não? Na dúvida, Valéria rasurou os espaços em branco e escreveu “sou um robô” em letras bem maiúsculas no espaço “observações”. Confusa, vestiu o cansaço, suspirou intenção e dúvida, e guardou a médica no bolso.

 

Andreia Pires

Retirado de Samizdat

publicado às 21:37


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