por Jorge Soares, em 16.11.13
Estou aqui. São minhas estas narinas que se dilatam, estas pupilas que mordem a escuridão. Meus estes passos indecisos e os tropeços que infligem sons de estouro à madeira do assoalho. Estou aqui. Com medo de cair no chão de tábuas. Esticando os braços para afastar o nada, esse medo maior. Dissolvida no breu.
Mas como há de ser que seja eu?
Eu estou aí fora, nessa mesa farta. Ocupando a boca com qualquer entulho. Com a comida que empurra silêncios para dentro. Com o vinho que abranda as bochechas enrijecidas pela falta do riso. Sim, sou eu mesma aí sentada. Reconheço os anéis, os brincos, o vestido de verão. E ainda assim, ainda assim... Como há de ser que seja eu?
Parece-se comigo. Apenas isso. Os traços, os gestos; os cabelos presos no alto. Olhos que nunca se afastam porque não sabem voltar. Semelhanças. Mas não sou eu. Eu estou aqui. Disforme, repleta de invisível. Mas aqui.
Essa que está aí brilha. E eu já me livrei da luz. Quebrei as lâmpadas com o cabo da vassoura. Senti nas solas dos pés os cacos finos que arrancaram sangue, que arrancaram lágrimas, que aleijaram a caminhada. Escondi as lamparinas. Joguei no tanque o querosene. E descartei pela janela os fósforos, fetos abortados. Virei ausência.
Eu estou aqui. Vendo nos seus olhos medrosos que ainda há reflexos de luz. Gestando a hora em que se apagarão e se aceitarão noite opaca. Então, você não estará mais aí, doendo em mim como cicatriz aberta. E seremos, enfim, apenas eu neste breu que me toca.
Cinthia Kriemler