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Conto:Cartas de amor atraiçoado II

por Jorge Soares, em 06.03.10

 

Conto:Cartas de amor atraiçoado, isabel allende

 

Continuação do conto Cartas de amor atraiçoado de Isabel Allende

 

Os esposos Torres viviam na propriedade adquirida pelo pai de Analía quando era ainda uma região meio selvagem, terra de soldados e bandidos. Agora encontrava-se junto da estrada e a pouca distância de uma povoação próspera, onde todos os anos se realizavam feiras agrícolas e de gado. Legalmente, Luis era o administrador da propriedade, mas na realidade era o tio Eugênio quem cumpria essa função, porque Luis aborrecia-se com os assuntos do campo. Depois do almoço, quando pai e filho se instalavam na biblioteca a beber conhaque e a jogar dominó, Analía ouvia o tio decidir sobre os investimentos, os animais, as sementeiras e as colheitas. Nas raras ocasiöes em que ela se atrevia a intervir para dar uma opinião, os dois homens ouviam-na com aparente atenção, assegurando-lhe que tomariam em conta as suas sugestöes, mas logo a seguir actuavam a seu bel-prazer. às vezes, Analía saía a galope pelas pastagens até aos limites da montanha desejando ter sido homem.

 

O nascimento de um filho não melhorou em nada os sentimentos de Analía pelo marido. Durante os meses de gravidez acentuou-se o seu carácter retraído, mas Luis não se impacientou, atribuindo tudo ao seu estado. De qualquer modo, ele tinha outros assuntos em que pensar. Depois de dar à luz, ela mudou-se para outro quarto, mobilado apenas com uma cama estreita e dura. Quando o filho fez um ano e ainda a mãe fechava à chave a porta do seu aposento evitando toda a ocasião de estar a sós com ele, Luis decidiu que já era tempo de exigir um trato mais considerado e advertiu a mulher de que mais valia mudar de atitude antes que partisse a porta a tiro. Ela nunca o tinha visto tão violento. Obedeceu sem comentários. Nos sete anos que se seguiram, a tensão entre ambos aumentou de tal maneira que acabaram por tornar-se inimigos dissimulados, porque eram pessoas de bons modos e diante dos outros tratavam-se com uma exagerada cortesia.

 

Apenas o menino suspeitava do tamanho da hostilidade entre os pais e despertava a chorar a meio da noite, com a cama molhada. Analía ocultava-se numa couraça de silêncio e, a pouco e pouco, pareceu ir secando por dentro. Luis, pelo contrário, tornou-se mais expansivo e frívolo, abandonou-se aos seus múltiplos apetites, bebia demasiado e costumava perder-se por vários dias em inconfessáveis aventuras. Depois, quando deixou de dissimular os seus actos de esbanjamento, Analía encontrou bons pretextos para se afastar dele ainda mais. Luis perdeu todo o interesse pelas tarefas do campo e a mulher substituiu-o, contente por essa nova posição. Aos domingos, o tio Eugênio ficava na sala de jantar discutindo as decisöes com ela, enquanto Luis mergulhava numa longa sesta, da qual ressuscitava ao anoitecer, ensopado em suor e de estômago a dar horas, mas sempre disposto a ir outra vez para a farra com os amigos.

 

Analía ensinou ao filho os rudimentos da escrita e a aritmética e tratou de iniciá-lo no gosto pelos livros. Quando o menino fez sete anos, Luis decidiu que já era tempo de lhe dar uma educação mais formal, longe dos mimos da mãe. Quis mandá-lo para um colégio na capital, para ver se ele se fazia homem depressa, mas Analía fez-lhe frente com tal ferocidade que ele teve de aceitar uma solução menos drástica. Levou-o para a escola da aldeia, onde ficou interno de segunda a sexta, aos sábados de manhã ia o carro buscá-lo para regressar a casa, até domingo. Na primeira semana, Analia observou o filho cheia de ansiedade, procurando motivos para o reter a seu lado, mas não pôde encontrar nenhum. A criança parecia contente, falava do seu professor e dos companheiros com sincero entusiasmo, como se tivesse nascido entre eles. Deixou de urinar na cama. Três meses depois, chegou com a caderneta escolar e uma nota do professor felicitando-o pelo seu bom rendimento. Analía leu-a a tremer e sorriu pela primeira vez em tanto tempo. Abraçou o filho comovida, interrogando-o sobre cada pormenor, como eram os dormitórios, que lhe davam de comer, se fazia frio à noite, quantos amigos tinha, como era o seu professor. Parecia muito mais tranquila e não voltou a falar em tirá-lo da escola. Nos meses seguintes o rapaz trouxe sempre boas classificaçöes, que Analía coleccionava como tesouros e retribuía com frascos de marmelada e cestas de fruta para toda a classe. Fazia por não pensar que essa solução apenas servia para a instrução primária e que dentro de poucos anos seria inevitável mandar o menino para um colégio na cidade, só o podendo ver durante as férias.

 

Numa noite de farra na aldeia, Luis Torres, que tinha bebido demasiado, dispôs-se a fazer piruetas num cavalo alheio para demonstrar a sua habilidade de cavaleiro em frente de um grupo de compinchas de taberna. O animal atirou-o ao chão e com uma patada rebentou-lhe os testículos. Nove dias depois, Torres morreu uivando de dor numa clínica da capital, para onde o levaram com a esperança de o salvar da infecção. A seu lado estava a mulher, chorando de culpa pelo amor que nunca lhe pudera dar e de alívio porque já não teria de continuar a rezar para que ele morresse. Antes de voltar ao campo com o corpo num caixão para o enterrar na sua própria terra, Analía comprou um vestido branco e meteu-o no fundo da mala. Chegou de luto à aldeia, com a cara coberta por um véu de viúva para ninguém lhe ver a expressão dos olhos, e assim se apresentou no funeral, de mão dada com o filho, também vestido de preto. No final da cerimónia, o tio Eugênio, que se mantinha muito saudável apesar dos seus setenta anos bem vividos, propôs à nora que lhe cedesse as terras e fosse para a capital viver das rendas, onde o menino terminaria a sua educação e ela podia esquecer as penas do passado.

 

- Porque percebo que tu, Analía, e o meu pobre Luis nunca foram felizes - disse ele.

- Tem razão, tio. Luis enganou-me desde o princípio.

- Por Deus, minha filha, ele sempre foi muito discreto e respeitoso contigo. Luis foi um bom marido. Todos os homens têm pequenas aventuras, mas isso não tem a menor importância.

- Não me refiro a isso, mas a um engano irremediável.

- Não quero saber do que se trata. Em todo o caso, penso que na capital o menino e tu estariam muito melhor. Nada vos faltará. Eu tomarei conta da propriedade, estou velho mas não acabado, ainda posso virar um touro.

- Ficarei aqui. O meu filho ficará também, porque tem de me ajudar no campo. Nos últimos anos trabalhei mais nas cavalariças do que em casa. A única diferença é que agora tomarei decisöes sem pedir opinião a ninguém. Finalmente, esta terra é só minha. Adeus, tio Eugênio.

 

Nas primeiras semanas, Analía organizou a sua nova vida. Começou por queimar os lençóis que havia partilhado com o marido e mudar a sua cama estreita para o quarto principal; depois estudou a fundo os livros de administração da propriedade, e mal teve uma ideia precisa dos seus bens, procurou um capataz que executasse as suas ordens sem fazer perguntas. Quando sentiu que tinha todas as suas rendas sob controlo procurou na mala o vestido branco, passou-o a ferro com esmero, vestiu-o e assim ataviada foi no seu carro até à escola da aldeia, levando debaixo do braço uma velha caixa de chapéus.

 

Analía Torres esperou no pátio que a campainha das cinco anunciasse o fim da última aula e que os rapazes em tropel saíssem para o recreio. Entre eles vinha em alegre correria o filho, que ao vê-la estacou, porque em a primeira vez que a mãe aparecia no colégio.

 

- Mostra-me a tua aula, quero conhecer o teu professor. à porta, Analía fez sinal ao rapaz que se fosse embora, porque se tratava de um assunto privado, e entrou sozinha. Era uma sala grande de tectos altos, com mapas e desenhos de biologia nas paredes. Havia o mesmo cheiro a quarto fechado e a suor dos rapazes que tinha marcado a sua própria infância, mas nessa ocasião isso não a incomodou, pelo contrário, aspirou-o com prazer. As carteiras estavam em desordem por um dia de uso, havia alguns papéis no chão e tinteiros abertos. Conseguiu ver uma coluna de números no quadro de ardósia. Ao fundo, na secretária sobre um estrado, estava o professor. O homem levantou a cara surpreendido e não se pôs de pé, porque as suas muletas estavam a um canto, demasiado longe para as alcançar sem arrastar a cadeira. Analía atravessou o corredor entre duas filas de carteiras e parou em frente dele.

 

- Sou a mãe de Torres - disse, porque não lhe veio à cabeça nada melhor.

- Boa tarde, minha senhora. Aproveito para lhe agradecer os doces e as frutas que nos tem enviado.

- Deixemos isso, não vim cá para agradecimentos. Vim pedir-lhe contas - disse Analía colocando a caixa de chapéus sobre a mesa.

- Que é isto!

 

Ela abriu a caixa e tirou as cartas de amor que tinha guardado todo aquele tempo. Por um longo momento ele correu os olhos por aquele monte de sobrescritos.

 

- O senhor deve-me onze anos da minha vida - disse Analía.

- Como sabe que fui eu quem as escreveu? - balbuciou ele quando conseguiu usar a voz que se lhe tinha escondido nalgum lado.

- No dia do meu casamento descobri que o meu marido não as podia ter escrito e, quando o meu filho trouxe para casa as suas primeiras notas, reconheci a caligrafia. E agora, que estou a olhar para si não tenho dúvidas, porque eu vi o senhor em sonhos desde os meus dezasseis anos. Porque fez isto? 

- Luis Torres era meu amigo e quando me pediu que escrevesse uma carta para a sua prima não me pareceu que houvesse nada de mal nisso. Foi assim com a segunda e a terceira; depois, quando a senhora me respondeu, já não pude voltar atrás. Esses dois anos foram os melhores da minha vida, os únicos em que esperei alguma coisa. Esperava o correio.

- Estou a ver.

- Pode perdoar-me?

- Depende do senhor - disse Analía, passando-lhe as muletas.

 

O professor vestiu o casaco e levantou-se. Os dois saíram para o bulício do pátio, onde ainda não se tinha posto o Sol.

 

Isabel Allende em Contos de Eva Luna

 

publicado às 20:07

Conto:Cartas de amor atraiçoado

por Jorge Soares, em 27.02.10

A mãe de Analía Torres morreu de uma febre delirante quando ela nasceu, o pai não suportou a tristeza e duas semanas mais tarde deu um tiro de pistola no peito. O irmão Eugênio administrou as terras da família e dispôs do destino da pequena órfã segundo o seu critério.

 

Até aos seis anos, Analía cresceu agarrada às saias de uma ama índia nos quartos de serviço da casa do seu tutor e depois, mal teve idade para ir à escola, mandaram-na para a capital, interna no Colégio das Irmãs do Sagrado Coração, onde passou os doze anos seguintes. Era boa aluna e amava a disciplina, a austeridade do edifício de pedra, a capela com a sua corte de santos e o seu aroma de cera e lírios, os corredores nus, os pátios sombrios. O que menos a atraía era o bulício das pupilas e o cheiro acre das salas de aula. Todas as vezes que tentava enganar a vigilância das freiras, escondia-se num canto, entre estátuas decapitadas e móveis partidos, para contar contos a si mesma.

 

Nesses momentos roubados, afundava-se no silêncio com a sensação de se abandonar a um pecado.

 

De seis em seis meses recebia uma curta carta do tio Eugênio recomendando-lhe que se portasse bem e honrasse a memória de seus pais, que tinham sido dois bons cristãos em vida e ficariam orgulhosos de que a sua única filha dedicasse a sua existência aos mais altos preceitos da virtude, quer dizer, entrasse como noviça para o convento. Mas Analía fez-lhe saber, desde a primeira insinuação, que não estava disposta a isso, mantendo a sua postura com firmeza simplesmente para o contradizer, porque no fundo gostava da vida religiosa. Escondida sob o hábito, na solidão última da renúncia a qualquer prazer, talvez pudesse encontrar paz perdurável, pensava; no entanto o seu instinto advertia-a contra os conselhos do tutor. Suspeitava que as suas acçöes eram motivadas pela cobiça das terras, mais do que pela lealdade familiar. Nada vindo dele parecia digno de confiança, em qualquer canto estava a armadilha.

 

Quando Analía fez dezasseis anos, o tio foi visitá-la ao colégio pela primeira vez. A madre superiora chamou a rapariga ao escritório e teve de os apresentar porque ambos tinham mudado desde a época da ama índia dos pátios traseiros e não se reconheceram.

 

 - Vejo que as Irmãzinhas têm cuidado de ti, Analía - comentou o tio, mexendo a chávena de chocolate. - Estás sã e até bonita. Na minha última carta disse-te que a partir da data deste aniversário receberás uma mesada para os teus gastos, tal como foi estipulado no testamento pelo meu irmão, que descanse em paz.

 

- Quanto?

- Cem pesos.

- É tudo o que meus pais me deixaram?

- Não, claro que não. já sabes que a fazenda te pertence, mas a agricultura não é tarefa de mulher, sobretudo nos tempos de greves e revoluçöes. Por agora far-te-ei chegar uma mensalidade. Depois veremos.

- Veremos o quê, tio?

- Veremos o que mais te convém.

- Quais são as minhas alternativas?

- Precisarás sempre de um homem que administre o campo, menina. Eu fi-lo todos estes anos e não foi tarefa fácil, mas é a minha obrigação, prometi-o a meu irmão na sua última hora e estou disposto a continuar a fazê-lo por ti.

 

- Não deverá fazê-lo por muito mais tempo, tio. Quando me casar tomo conta das minhas terras.

- Quando se casar, foi o que a moça disse? Diga-ma, madre, ela tem algum pretendente? 

- Não pense nisso, senhor Torres! Cuidamos muito das meninas.

-É só uma maneira de falar. Esta rapariga diz cada coisa! 

 

Analía Torres pôs-se de pé, alisou as pregas do uniforme, fez uma leve reverência com uma careta, e saiu. A madre superiora serviu mais chocolate ao cavalheiro, comentando que a única explicação para aquele comportamento descortês era o pouco contacto que a jovem tivera com os seus familiares.

 

- Ela é a única aluna que nunca vai de férias e a quem nunca mandaram um presente de Natal - disse a freira num tom seco.

- Eu não sou homem de mimos, mas asseguro-lhe que estimo muito a minha sobrinha e tenho cuidado dos seus interesses como um pai. Mas a irmã tem razão, Analía necessitava de mais carinho, as mulheres são sentimentais.

 

Antes de passarem trinta dias, o tio apresentou-se de novo no colégio, mas nessa ocasião não pediu para ver a sobrinha, limitou-se a dizer à madre superiora que o seu próprio filho desejava manter correspondência com Analía e pedia-lhe que lhe fizesse chegar as cartas para ver se a camaradagem com o primo reforçava os laços de família.

 

As cartas começaram a chegar regularmente. Simples papel branco e tinta preta, uma escrita de traços grandes e precisos. Algumas falavam da vida no campo, das estaçöes e dos animais, outras de poetas já mortos e dos pensamentos que eles escreveram. às vezes o sobrescrito incluía um livro ou um desenho feito com os mesmos traços firmes da caligrafia.

 

Analía resolveu não as ler, fiel à ideia de que qualquer coisa que tivesse a ver com o tio escondia perigo, mas no aborrecimento do colégio as cartas eram a sua única possibilidade de voar. Escondia-se no canto, não já para inventar contos improváveis, mas para reler com avidez as cartas enviadas pelo primo, até conhecer de memória as inclinaçöes das letras e a textura do papel. A princípio não lhes respondia, mas ao fim de pouco tempo não pôde deixar de o fazer. O conteúdo das cartas foi-se tornando cada vez mais útil para enganar a censura da madre superiora, que abria toda a correspondência. Cresceu a intimidade entre os dois e depressa conseguiram pôr-se de acordo quanto a um código secreto com o qual começaram a falar de amor.

 

Analía Torres não se recordava de ter visto alguma vez esse primo que assinava Luis, porque quando ela vivia em casa do tio o rapaz estava internado num colégio da capital. Tinha a certeza de que devia ser um homem feio, talvez doente ou aleijado porque lhe parecia impossível que uma sensibilidade tão profunda e uma inteligência tão precisa desse origem a uma situação tão atraente. Tentava desenhar na sua mente uma imagem do primo: gordo como o pai, com a cara picada pelas bexigas, coxo e meio calvo; mas quantos mais defeitos lhe juntava mais começava a amá-lo. O brilho do seu espírito era a única coisa importante, a única que resistiria à passagem do tempo sem se deteriorar e que iria crescer com os anos, a beleza desses heróis utópicos dos contos não tinha qualquer valor e até podia tornar-se em motivo de frivolidade, concluía a rapariga, embora não pudesse evitar uma sombra de inquietação no seu raciocínio. Perguntava a si própria quanta deformidade seria capaz de tolerar.

 

A correspondência entre Analía e Luis Torres durou dois anos, ao fim dos quais a rapariga tinha uma caixa de chapéus cheia de sobrescritos e a alma definitivamente entregue. Se alguma vez lhe chegou a passar pela cabeça a ideia de que aquela relação poderia ser um plano do tio para que os bens que ela herdara do pai passassem para as mãos de Luis, pô-la de parte imediatamente, envergonhada da sua própria mesquinhez. No dia em que completou dezoito anos, a madre superiora chamou-a ao refeitório porque havia uma visita à sua espera. Analía Torres adivinhou quem podia ser e esteve quase a esconder-se no canto dos santos esquecidos, aterrada ante a eventualidade de enfrentar finalmente o homem que tinha imaginado durante tanto tempo. Quando entrou na sala e ficou em frente dele necessitou de vários minutos para vencer a desilusão.

 

Luis Torres não era o anão retorcido que ela tinha construído em sonhos e aprendera a amar. Era um homem bem apessoado, com um rosto simpático de traços regulares, a boca ainda infantil, uma barba escura e bem cuidada, olhos claros de longas pestanas, mas vazios de expressão. Parecia-se um pouco com os santos da capela, demasiado bonito e um pouco bobalhão. Analía refez-se do impacte e decidiu que, se tinha aceitado no seu coração um marreco, com maior razão podia querer a este jovem elegante que a beijava na face, deixando-lhe um rasto de lavanda no nariz.

 

Desde o primeiro dia de casada, Analía detestou Luis Torres. Quando ele a estendeu entre os lençóis bordados de uma cama demasiado macia, soube que se tinha apaixonado por um fantasma e que nunca poderia passar essa paixão imaginária para a realidade do matrimónio. Combateu os seus sentimentos com determinação, a princípio afastando-os como um vício e depois, quando lhe foi impossível continuar a ignorá-los, fez por chegar ao fundo da alma para os arrancar de vez. Luis era gentil e até divertido por vezes, não a incomodava com exigências sem sentido nem quis modificar a sua tendência para a solidão e silêncio. Ela própria admitia que com um pouco de boa vontade da sua parte podia encontrar nessa relação certa felicidade, pelo menos tanta como tivera debaixo de um hábito

de freira. Não tinha motivos precisos para essa estranha repulsa pelo homem que amara durante dois anos sem conhecer. Nem conseguia pôr em palavras as suas emoçöes, mas se o tivesse podido fazer não teria tido ninguém para o comentar.

 

Sentia-se enganada por não poder conciliar a imagem do pretendente epistolar com a daquele marido de carne e osso. Luis nunca mencionava as cartas e quando ela tocava no assunto, ele fechava-lhe a boca com um beijo rápido e uma ou outra observação ligeira sobre esse romantismo tão pouco adequado à vida matrimonial, na qual a confiança, o respeito, os interesses comuns e o futuro da família importavam muito mais que uma correspondência de adolescentes. Não havia entre os dois uma verdadeira intimidade. Durante o dia cada um desempenhava os seus afazeres e à noite encontravam-se entre as almofadas de penas, onde Analía acostumada ao catre do colégio julgava sufocar. às vezes abraçavam-se à pressa, ela imóvel e tensa, ele com a atitude de quem cumpre uma exigência do corpo que não pode evitar. Luis adormecia imediatamente, ela ficava de olhos abertos no escuro e um protesto atravessava-lhe a garganta. Analía tentou diversos meios para vencer a recusa que ele lhe inspirava, desde o recurso do fixar de memória cada pormenor do marido com o propósito de o amar por pura determinação, até o de esvaziar a mente de todo o pensamento e mudar-se para uma dimensão onde ele não pudesse alcançá-la. Rezava para que fosse apenas uma repugnância passageira, mas passaram os meses e em vez do alívio esperado cresceu a animosidade até se transformar em ódio. Uma noite, surpreendeu-se a sonhar com um homem horrível que a acariciava com os dedos manchados de tinta negra.

 

Continua ...

 

Isabel Allende in Contos de Eva Luna

publicado às 20:00


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