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Conto - Saudade

por Jorge Soares, em 30.11.13

Saudade


Era triste aquela minha vizinha do 202. Tudo nela era triste. Seu andar, seus gestos, até suas roupas eram tristes. Só não lhe via os olhos, sempre baixos. De comum comigo, talvez a mesma idade e o fato de morar sozinha. Assim eu imaginava, porque não percebia movimento em seu apartamento. Eu vivia sozinha por opção. Escrevia o dia inteiro. Só parava para tomar banho ou comer alguma coisa, pouca, que não sou de comer muito. Minha vida, trágica, merecia um livro. Tão dedicada estava nesse projeto, que não tinha tempo sequer para me olhar no espelho. Fazia meses que não o usava. Mal saía às ruas. A não ser, bem cedinho, para comprar pão. Foi assim que conheci aquela mulher tão sombria.


Coincidentemente, saíamos à mesma hora. Como eu, ela parecia não gostar de elevador. Descíamos as escadas, caminhávamos até a padaria, voltávamos e subíamos as escadas, sempre juntas e mudas, apenas ligeiros acenos de cabeças. Nessas idas e vindas, bem queria puxar conversa, mas faltava-me coragem. Tanta melancolia me inibia. Aquela mulher não me saía da cabeça. Por que tão triste? O que teria acontecido em sua vida?... Matutava, curiosidade despertada.


Uma vez ousei, toquei sua campainha, com um pedaço de bolo que acabara de assar. Nem era de assar bolos, mas precisava de um pretexto para me aproximar. Abriu a porta, sorriu aquele sorriso triste, olhos baixos. Meio sem jeito, ofereci-lhe o prato e perguntei-lhe o nome.


“Saudade” – disse, num fio de voz.


Recusou gentilmente, não comia doces, agradeceu-me e fechou a porta. Voltei para o computador, pasma. Saudade?! Isso lá é nome?!...  Curiosidade aguçada. Não conhecia ninguém naquele prédio, antissocial que sou, reconheço. Meus vizinhos também não eram muito melhores. Nas raríssimas vezes em que cruzei com alguns deles, passavam cabisbaixos, me olhando de soslaio – e, para ser sincera, achava bom. Cada um na sua. Só que agora me deparava com um dilema. A quem perguntar sobre a vizinha? Saudade...


Bem, a solução poderia ser a reunião de condomínio que aconteceria dali a três dias. Nunca comparecera a nenhuma, verdadeiro pavor que tinha de reuniões, principalmente as de condomínio. Na próxima iria, decidi. Lá, daria um jeito de saber mais sobre Saudade. Chegado o dia, compareci, atrasada é fato, mas compareci. Vencendo o pânico, atravessei o saguão sob olhares curiosos, dando uma geral, mas Saudade não estava lá. Vai ver tínhamos mais este ponto em comum, não gostar de reuniões de condomínio. Não dei qualquer opinião que, aliás, ninguém me pediu, nem prestei atenção no que falavam. Só esperava uma brecha para perguntar se alguém conhecia a vizinha do 202, não diria o nome, claro, para respeitá-la. Diria que estava preocupada porque não a via fazia tempo, morava sozinha, coisas assim.


Na primeira oportunidade, perguntei, olhando para todos e para ninguém especificamente. “Mas aquele apartamento está vazio faz mais de ano!” – exclamaram. Pairou no ar um silêncio pesado. Olhavam-me assustados, e eu me senti desestruturar. Sai dali abruptamente e tão descontrolada que, pela primeira vez desde que morava lá, entrei naquele elevador, parado no térreo com a porta aberta. Foi então que me vi, refletida no revestimento de espelho. E era Saudade quem me devolvia o olhar desamparado, alucinado, insano...


Cecília


Retirado de Samizdat

publicado às 17:59


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