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Conto - De mãe para Filho

por Jorge Soares, em 14.03.15

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Hoje é com você que quero falar, meu filho, e é pra você que escrevo.
 
Casei-me aos vinte e dois anos, você sabe, mas o que não sabe é que tinha mentalidade de quinze. Como à época era o que se esperava, queria filhos. Engravidei logo, mas quis o destino que o feto não vingasse e, por motivos que agora não vêm ao caso, não engravidei mais. Seis anos depois, meu casamento com seu pai por um fio, uma relação sexual esporádica e... Olha aí, eu grávida! Não era mais o que eu esperava ou queria. Pensava em me separar, outros sonhos, outros planos, tudo adiado.  E a gravidez não foi fácil. Passei nove meses enjoando. Enjoava de tudo e de todos. Comidas, rostos, cheiros, cigarros, cores, pastas de dente, escovas de cabelos, até do enxoval do bebê enjoava. Pra você ter uma ideia, fui para a sala de parto enjoando. Masquei montanhas de chicletes e li montanhas de livros sobre como cuidar de recém-nascido. Quanto mais eu lia, mais me apavorava. Tinha certeza absoluta que não daria conta. E é sobre isso que quero lhe falar, de como uma mãe sem vocação conseguiu, afinal, ser mãe. 
 
Há 42 anos, o dia cinco de março caiu numa segunda-feira de carnaval. Nesse dia, às 18h50, colocaram em meu colo um rebento forte, cabeludo, que mexia e se remexia, parecendo não saber como se acomodar e, confesso, ao olhar pra você, meu primeiro, décimo, centésimo, milésimo e milionésimo sentimento foi de pânico. Eu era, então, uma jovem confusa e despreparada, mas tive a exata noção da imensa responsabilidade que depositavam em minhas mãos, tão desastradas esses minhas mãos! Nem preciso dizer o que foram os primeiros meses, um verdadeiro “deus nos acuda” e, não fosse minha mãe, aquela santa da sua avó, sei lá se nos primeiros banhos você não teria se afogado, ou engasgado com as primeiras mamadeiras. Mas você, meu filho, era forte e resistiu bravamente a todas trapalhadas de sua mãe, transformando-se num lindo bebê que parava as pessoas na rua, admiradas com sua formosura. Certo que meu excesso de medo gerou um excesso de zelo que, por sua vez, gerou uma criança excessivamente limpa e bem cuidada. Contudo eu me questionava: por que aquela sensação de perda? Cadê aquele amor na minha incondicional dedicação? Eu não deveria estar padecendo num paraíso? Que paraíso era aquele que mais parecia um suplício? Que tipo de mãe eu era? Acho que nem preciso falar daquele sentimento antipático e irritante chamado “culpa” que tomou conta de mim, né? Eu continuava lendo, agora tudo o que existia sobre psicologia infantil. E, de novo, quanto mais lia, mais culpa e responsabilidade sentia. Rezei para todas as Madonas que conhecia e olha que são muitas. Nenhuma delas me deu qualquer resposta imediata. Até que um dia... Um “insight”, finalmente uma luz! Descobri que, desde a gestação, havia estabelecido com você um laço de, de... Obrigação talvez? Um encargo? Qualquer coisa que queira, mas não de naturalidade, não de amor. Então resolvi seguir minha intuição, chutar o balde e mudar tudo. Comecei, transferindo a culpa que sentia para toda a literatura que os entendidos no assunto me fizeram engolir e doei toda aquela porcaria. Deixei que o amor encolhido sob a carga de responsabilidade e culpa aflorasse, e vi que era bom.
 
Mesmo assim, foi aos trancos e barrancos que fui desempenhando meu papel de mãe, muitas vezes de maneira equivocada.  Mas você, filho, com sua alma antiga e sábia, parecia compreender minhas limitações e, muito provavelmente, por trás dos meus erros e defeitos, via a sombra gigantesca daquele amor que se mostrava, agora escancarado. O tempo foi passando e eu acompanhando passo a passo suas dificuldades. Sua obstinação e perseverança na busca de seus objetivos. Chorei com você suas derrotas, vibrei com você suas vitórias.
 
Hoje, olhando para trás e revivendo esses anos todos, constato impressionada que você nunca, nunca, mas nunca mesmo, teve qualquer gesto de impaciência, qualquer palavra áspera para comigo ou seu pai. Suas decepções conosco podiam, por vezes, se refletir em seu semblante ou nos seus olhos marejados, mas jamais se traduziram em qualquer atitude minimamente agressiva ou grosseira. Só agora me dou conta, filho, do quanto você me ensinou a ser uma pessoa melhor. Com você, e por você, aprendi o valor da renúncia, o valor da luta honesta e boa. Foi por você que aprendi a ser valente, a encarar as dificuldades de peito aberto, a lutar corajosamente pela nossa sobrevivência material e emocional. Só agora, filho, me dou conta do presente maravilhoso que me deram ao cair da tarde daquela segunda-feira de carnaval. Talvez tanto enjoo fosse o disfarce da espera ansiosa pelo nosso encontro. Talvez eu soubesse, sem saber, que você viria para me transformar, para me ensinar o valor da generosidade, para me mostrar que a vida só vale a pena ser vivida se houver desafios. Filho, você é muito. Você é um ser humano precioso e raro, daqueles que, quando a gente encontra, nos fazem acreditar em nossa natureza divina.
 
Então, hoje, no dia do seu aniversário, quando deveria lhe presentear, concluo que tenho mesmo é que lhe agradecer. Obrigada por sua presença e carinho sempre constantes. Obrigada por sua bondade, pela sua compreensão e tolerância. Obrigada pelo seu belíssimo caráter e integridade. Obrigada por me fazer ter vontade de levantar a cada manhã. Obrigada pelo meu coração dilatado de orgulho e admiração. Obrigada por fazer sentir-me mãe, ainda que sem vocação. Devo a você, a alegria de ser.
 
Quando você nasceu, filho, uma melodia estava prestes a começar. No início a afinação dos instrumentos irritava meus ouvidos. Mas quando - enfim afinados - os primeiros acordes soaram, uma magnífica melodia encheu os ares. Seu compasso tem marcado o ritmo de nossas vidas desde então. Tenho certeza que ela continuará vibrando vida a fora, através de seus filhos, dos filhos de seus filhos e assim por diante, por toda a eternidade. 
 
Deus lhe abençoe.
 
Cecília Maria De Luca
 
Retirado de Samizdat

publicado às 20:26

Conto - Primavera no Inverno

por Jorge Soares, em 21.06.14

Primavera no Inverno

Andam falando que não sou mais a mesma, que não me importo mais com as pessoas à minha volta, que ando deixando velhos amigos de lado. Que eu, antes tão disponível e generosa, tornei-me egoísta, egocêntrica e com meu ego inflado. 
Pensei muito sobre tudo isso. Não gosto de ferir ninguém e não seria agora que o faria. Mas por mais que me tenha analisado, não vejo ponto de retorno. Sim, eu mudei, mas para melhor. Por favor, meus queridos e velhos amigos, é para vocês que tentarei explicar e, também, a quem mais possa interessar.
Sempre procurei entender a ordem natural de todas as coisas e com ela me acomodar. Comparo-me à natureza: lua nova, crescente, cheia e minguante; primavera, verão, outono, inverno; infância, juventude, maturidade e velhice. Simples e lógico, pois não? E se era simples, lógico e natural, tentava me convencer e enfrentar, serena, o inverno que chegava. Não seria tão ruim. Teria livros e livros para ler, filmes e filmes para assistir, não precisaria me preocupar com aparência, roupas novas e coisas do gênero. Seria até interessante, pensava, como pensava no saldo de amigos que me restou – pequeno, é verdade. Em nossos encontros, a conversa sempre girava em torno das últimas gracinhas e feitos dos netos, níveis de colesterol e glicose, quem adoeceu, quem se recuperou, quem morreu e, claro, falávamos do passado. Dessa parte até gostava porque tive uma vida bem vivida e havia muita coisa para lembrar e relembrar. Estava assim, sem tristeza ou melancolia, sem saudade ou nostalgia, conformada, acomodada e... Ganhando peso. Como engordei!
Aos poucos, fui perdendo a vontade de sair de casa. Jantar fora? Nem pensar. Cinema? Ora tinha os telecines da vida. Shows, teatro, pra quê? – perguntava - olhando para a quantidade de DVDs na estante. Os livros empilhavam-se à minha cabeceira sem que tivesse ânimo de ler, eu que sempre os devorava avidamente. À pergunta dos familiares se não iria retocar a raiz dos cabelos ou se ficaria de chinelos o dia todo, respondia com um simples sacudir de ombros. Meu interesse resumia-se a ler resultado de exames médicos e a assistir aos noticiários, demonstrando em voz alta para a mobília da sala minha revolta contra fatos tão mórbidos, políticos tão corruptos e meu time do coração tão displicente. Depois, nem isso. Já não lia sequer os jornais do dia. A única coisa que sobrou foi minha disposição para ouvir e a ajudar quem precisasse. Tinha tempo e certa disponibilidade financeira para socorrer amigos e parentes em apuro, o que me fazia sentir útil. Se não fosse pelo fato de gostar ainda de rir e de me interessar sinceramente pelas pessoas ao meu redor, poderia cogitar em estado depressivo. Mas não, não era depressão. Estava apenas enferrujada e enregelada pelo frio da última estação que vivia, sem muito ânimo para sair da minha hibernação. 
Foi então que a sorte, o destino, os deuses, o universo, seja lá o que ou quem for, resolveu agir.  Por mero acaso, numa rede social, cerquei-me de amigos jovens. Jovens de uma, duas, três e até quatro gerações depois de mim. Minha natureza inquieta voltou a se manifestar. A vida pipocava dentro de mim num movimento crescente e, como se fora uma apoteose, a primavera explodiu no meu inverno. Vi a lógica se inverter. Não queria mais falar sobre netos, doenças, perdas, não queria recordar mais nada, médicos uma vez por ano e olhe lá. Queria apenas viver! Ah... as risadas, a alegria, os impulsos que só os jovens sabem ter! E com eles troco ideias, discuto fatos, acontecimentos e, principalmente, dou risada. Alguns se revelaram verdadeiros amigos, já não mais meramente virtuais. Estivemos juntos pessoalmente, eles me devolvendo a juventude que julgava perdida, eu retribuindo como podia a experiência já vivida. 

 

Cecília Maria De Luca

 

Retirado de Samizdat

publicado às 21:46

Conto - Fuga do tempo em fragmentos roubados

por Jorge Soares, em 15.03.14

Fuga do tempo para fragmentos roubados

 

Um belo dia, senti que fiquei sozinha. Foi quando, naquela luminosa manhã, abri a janela e o sol entrou. Olhei pra mesa onde faltava ele, faltava ela... Faltavam tantos eles e elas!

 

Ouvi batidas na porta. Era o tempo. E, antes que começássemos a eterna discussão sobre quem passou ou não passou, resolvi que iria sair por aí, levando minha vida debaixo do braço.

 

Mas não vou parar em cada esquina não – pensei. Apenas caminhar, caminhar, caminhar, sem saber aonde chegar. Sim. Caminhar contra o vento, sem lenço nem documento. Deixar a vida me levar e soltar a voz nas estradas sem querer chorar.  Ver manhãs com gosto de maçãs, ver e ouvir o despertar das montanhas por onde eu passar e gritar: “eu quero amar, eu quero amar, eu quero amar...” Quem sabe, numa tarde silenciosa, eu chegue em Lindoia e veja o sol morrer tristonho, embora eu bem o preferisse risonho. Vou me sentar e pedir ao meu sonho que vá buscar quem mora longe e, como ele não buscará, vou me contentar em ver a dança das flores no meu pensamento, lembrando-me de momentos iguais aqueles em que eu o amei e de palavras iguais aquelas que eu lhe dediquei. Repetirei que eu sei e que talvez ele saiba que a vida quis assim, mas que, apesar de tudo, ela o levou de mim. Vou tentar me convencer de que quem anda atrás de amor e paz não anda bem, porque na vida quem tem paz amor não tem. Quando a noite chegar, vou olhar para a lua branca, cheia de fulgores e de encantos, pedir-lhe que me dê abrigo, não sem antes indagar: “quem sabe se ele é constante e, mesmo tão distante, se ainda é meu seu pensamento”.  Antes de adormecer, vou pisar no chão salpicado de estrelas e, espalhando meus olhos pela plantação, vou lembrar que amanhã será um lindo dia, cheio da mais louca alegria. Sim, porque amanhã quero ir para o mar e quando eu pisar na areia ele vai serenar. Vou olhar para a jangada saindo ao raiar do dia e para o barquinho que vai enquanto a tardinha cai. Vou, vou sim, porque lá na beira do mar, todo mar é um. Talvez lá eu me esqueça de que o Brasil mostrou sua cara e sua cara me assustou. Talvez lá eu me esqueça da gente que deveria se indignar e não se indignou. Talvez lá eu consiga evitar a dor que me aperta o peito pelo despeito de não ter como lutar. Talvez eu lá me esqueça de querer vingança e vingança aos santos clamar. Então vou deixar isso de lado, juntar tudo o que é meu, não seu, e recomeçar tudo de novo. Caminharei pra beira de outro lugar ou pra dentro do fundo azul. E lá irei eu pela imensidão do mar, ou voltar a andar, andar, andar até encontrar... O que? Sei lá, não sei, este vazio é tão grande que nem sei como explicar. Ah, não vou me esquecer de pisar em folhas secas caídas de uma mangueira. Pedirei à tristeza que, por favor, vá embora, não vou querer saber da minha alma que chora e, se ela insistir, lembrarei que a vida é tão linda que não pode se perder em tristezas assim. Vou olhar para a rosa na janela, não para me queixar, mas para lhe dizer: “ah, se todos no mundo fossem iguais a você!” Muito provavelmente vou querer conversar, comigo mesma, é claro. E, de conversa em conversa, vou me perguntar o por quê de meus olhos tão fundos, ao que responderei que guardo, senão toda, pelo menos boa parte da dor deste mundo.  Vou me perguntar se não vou voltar. Direi que sim. Sim, vou voltar, sei que ainda vou voltar para o meu lugar, mesmo sabendo que o meu lugar bem poderia ser por aí. Mas, antes de voltar, recordarei as três lágrimas que derramei nesta vida. A primeira quando minha vida se complicou. Éramos então duas crianças, cheias de vida e esperança. Lembro-me bem do seu olhar espantado quando me roubou um beijo bem roubado e uma lágrima dos olhos me rolou. A segunda, quando minha vida desmoronou. Tínhamos mais vinte anos, mágoas, saudade e desenganos. Ele me olhou com aquele olhar esquisito, surpreso, tão aflito! E uma lágrima dos olhos me rolou. A terceira, quando minha vida se acabou. Vinha pela rua amargurada, quando ouvi o seu chamado. Lembro-me só que, do nosso olhar, fugira a meiguice. Agora era apenas a velhice e uma lágrima dos olhos nos rolou.

 

Enfim, e por fim, nessa tristeza que vai, nessa tristeza que vem, com os olhos cansados de olhar para o além, sei que vou acabar sentindo saudade, uma torrente de paixão que me trará de volta para este lugar todinho meu. Esta casinha pequenina onde nosso amor, que nem aqui nasceu nem aqui morreu, aqui ficou encantado e cantado em versos fragmentados como estes roubados, sem qualquer pudor.

 

Despertei do meu devaneio, assustada com as batidas na porta, agora cada vez mais fortes. Afastando uma mecha de cabelos que teimava em me cair sobre a face, suspirei fundo: - Que viagem! E tudo para esquecer esta vida inexplicável. Tudo para fugir do tempo que, implacável e inexorável, esmurrava a porta.

 

Levantei, sacudi a poeira e, dando a volta por cima, criei coragem, deixando-o  entrar. O tempo não se fez de rogado, Entrou e me sorriu. Entreguei os pontos. Não iria mais discutir, nem resistir. Afinal, não era ele o senhor da razão? Deixei que ele dançasse e girasse à minha volta, repetindo cruel o seu refrão: eu passara, ele não.,. 

 

Cecília Maria De Luca

 

Retirado de Samizdat

publicado às 21:54

Conto - O homem que amei

por Jorge Soares, em 15.02.14

O HOMEM QUE AMEI
                                                                     

Houve uma época em minha vida que pensei ter voltado à terra para ir em busca do homem que amo. Era jovem e acreditava nessas coisas de outras vidas, retornos, enfim... Essas coisas que tornam mais digerível a existência. Então, procurei por ele. Procurei, procurei, até que, finalmente, o encontrei. E como o amei! Ainda hoje, em minha memória, parece que o vejo.
   
O homem que amei tinha olhos que guardavam o mar em tarde de chuva.

O homem que amei tinha passos firmes e gestos largos. Por vezes assumia um ar arrogante que tentava disfarçar sua timidez e insegurança. Mas, embora tímido e inseguro, o homem que amei era extremamente arrojado em seus sonhos, projetos e realizações.

O homem que amei tinha a voz aveludada que nada dissimulava e um semblante melancólico. Sua voz e semblante revelavam as emoções que sentia: da mais doce ternura à raiva mal contida; da pureza quase infantil à ironia mais sutil; da profunda tristeza à alegria que contagia. Por falar em emoções – é espantoso – mas o homem que amei conseguia vivê-las todas num mesmo dia.

O homem que amei tinha extremos loucos. Aproximava-me de Deus com a mesma facilidade com que me fazia conhecer o demônio. Com a mesma facilidade dizia impropérios ou revelava pensamentos sublimes. Por vezes agia e reagia como criança e, quase sempre, com a grandeza do homem vivido e sofrido.

O homem que amei conseguia me fazer curvar de tristeza ou explodir de alegria porque, como ninguém, ele sabia chorar quando era preciso e rir quando era o momento.

O homem que amei desabava diante das mazelas do mundo, mas crescia ao defender suas ideias com contundência.

O homem que amei tinha sonhos lindos, desejos simples e gosto sofisticado. Existia um ponto de interrogação no semblante meigo e forte do homem que amei, tipo, por que complicar o que é simples? A bem da verdade, o homem que amei era uma confusão e, por isso mesmo, me confundia e conseguia me surpreender sempre.

O homem que amei deslocava-se feito peixe fora d’água em meio à parafernália moderna, mas era rei em meio à natureza e no mundo das palavras. Era perspicaz e observador. Escrevia o dia a dia e comovia. Transformava asfalto em poesia.

O homem que amei era sedutor. Tinha paixões e provocava paixões.

O homem que amei era fascinante e delirante.

O homem que amei era intenso e raro.

Eu o conheci em seu reino, o das Palavras, o da Poesia, diante de uma máquina de escrever, e o amei desde então. Encontrei nele reflexos da minha alma. Nele havia o amor que tanto buscara. Torcia para que aquele homem conservasse a mágica do primeiro instante. Torcia porque, se perdesse a magia, ele perderia sua alma. Se perdesse a alma, não seria mais um homem raro. Se não fosse mais um homem raro, não seria mais o homem que eu amava. E daí, bem, daí minha vida teria perdido o sentido da volta.

Mas tudo isso foi há muitos e muitos anos. Perdi o homem que amei no tempo e no silêncio. Enviei um telegrama, não obtive resposta. Mandei um livro, não obtive resposta. O silêncio foi enorme, brutal. Há silêncios que são eloquentes, mas o silêncio ditado pelo homem que amei eu não soube interpretar. Afinal, se até Inês – aquela do Adoniram - deixara um recado pro Mané, ainda que num papel jogado no chão perto do fogão, por que eu não mereceria qualquer explicação?

Vida que vem, vida que vai, vida que leva... E a vida me levou até que aquele amor se desfizesse no tempo, tempo que se alongou, fazendo-me pensar, volta ou outra, se o homem que amei existira mesmo ou se eu o inventara.
 
Foi então que, hoje, ao abrir minha caixa de recados, encontro uma mensagem do homem que amei. De repente, assim, do nada. E foi como se ouvisse sua voz macia, chegando de algum pedaço remoto do passado.

Contou de sua vida, de seus amores e dores, de sua saudade e de utopias.

“Somos utopias. Utopias não deveriam falar, olhar, dizer, se expressar, se mostrar. Utopias deveriam apenas ser utópicas. Sonhadas, imaginadas, desenhadas, pintadas ao gosto de cada um. Nós dois nascemos utopias. Vivemos todo o tempo como utopia. Toda uma vida. Utopia é coisa linda para se levar na alma. Porque coração vai embora, a alma não. Utopia quando você ouve uma música, um som, um tom, um grilo. Utopias quando você, dentro de um avião, vê lá embaixo um belo horizonte e lembra que ali tem utopia. Quando você lê um verso, um conto, um livro, a biblioteca inteira e lembra utopias. Quando você passa num lugar e é atropelado por um utópico pensamento. Talvez a utopia venha num ônibus elétrico com letreiros apagados de um imortal Machado de Assis...”  A essa altura, as letras já embaçadas embaralhavam-se, parecendo dançar numa poça d’água. Bateu um cansaço infinito. Então desisti de ir até o final e deletei a mensagem.

Tirei os óculos, pensando nessa catarata que insiste em me lacrimejar os olhos. A velhice tem cada coisa... Preciso consultar um neurologista para saber a causa desse repentino tremor nas mãos. E um cardiologista também porque esta batida descompassada não é normal. Mas, antes, tenho que ver outro especialista, vai que esse nó na garganta seja coisa ruim...

 

Cecília Maria De Luca

Retirado de Samizdat

publicado às 21:17

Conto - Reflexão junto ao menino Jesus

por Jorge Soares, em 21.12.13

REFLEXÃO JUNTO AO MENINO JESUS

Menino Jesus, está chegando a data em que, simbolicamente, comemoramos o seu nascimento, e se tem uma coisa que gosto nesta época é de montar o presépio. Adoro fazer isto. Desde criança. E é com aquele mesmo prazer infantil que faço o meu presépio. Ponho você deitado na sua caminha de palha, com José e Maria, um de cada lado. Com a minha fértil imaginação, transformo o terreno árido onde você nasceu em campinas verdes e montanhas e vou colocando os pastores, os carneirinhos, a fazendeira que joga milho para as galinhas. Até rio tem no meu presépio, Menino Jesus. No meu tempo de infância, imitávamos a água com espelho. Hoje, veja, faço um riacho de verdade com água corrente passando por debaixo da ponte, com aquele barulhinho que adoro até a primeira meia hora, mas só até a primeira meia hora. Às margens do rio ficam os patinhos e sapinhos. Ponho os três Reis Magos com seus camelos vindo lá de longe, do leste, e a cada dia vou aproximando-os do estábulo. Ah, o estábulo! É aí que eu capricho mesmo. Meu estábulo fica lindo com suas vaquinhas, burrinhos, o pastor que carrega um carneiro em seus ombros, outro que toca uma flauta e lá na cumeeira o anjo, o maravilhoso anjo que estende uma faixa anunciando sua chegada. E faço o céu também, pois não faço? Um céu noturno cheio de estrelinhas e, claro, a estrela maior de todas que uns chamam d’Alva, outros de Vênus, outros ainda de Sirius. A brilhante estrela que os Reis seguiram para presenciar o seu nascimento, levando ouro, incenso e mirra. E fica lindo o meu presépio, principalmente no escuro, quando acendo as luzinhas e ele fica todo iluminado.

Bem, Menino Jesus, você deve estar se perguntando como é que eu consigo conciliar o dia e a noite ao mesmo tempo. O fato é que consigo e não é tão difícil assim, já que esta incoerência é fruto da própria incoerência de que sou feita. Sim, porque sou feita de luzes e de sombras. Agora, por exemplo, enquanto olho para sua figurinha fofa, linda, sou toda amor e adoração, cheia de boas intenções. Mas se meu vizinho jogar novamente cigarro aceso no meu jardim, sei que vou mandá-lo à merda, não sei antes levantar o dedo médio para ele.  Sou capaz de morrer pelos que amo da mesma forma que seria capaz de fuzilar sem piedade, se a lei o permitisse, todo político corrupto. Choro quando vejo imagens de crianças deformadas pela fome, mas tenho vontade de surrar os pivetes descalços que andam pelas ruas do meu bairro assustando as pessoas. Menino Jesus, sou capaz de desfiar milhares de exemplos da minha dualidade, dualidade de que não só eu sou feita, mas de que é feita toda a humanidade, toda a natureza, seja ela viva ou morta. Aliás, dualidade existente até em você, Menino Jesus. Veja se não tenho razão.  Você nos ensina a amar nossos inimigos, mas roga praga numa pobre figueira, fazendo-a secar, só porque a coitada não deu frutos. Você nos ensina a perdoar, mas se transgredimos você nos ameaça com a tortura do inferno, castigo tão cruel quanto inútil já que eterno e, se eterno, qual a sua finalidade?

Menino Jesus, não fique ressabiado comigo, mas preciso confessar que não é sempre que acredito na sua história. Às vezes, assim como este meu presépio, acho tudo meio fantasioso e incoerente. Mas, fantasioso ou não, incoerente ou não, o que interessa de verdade é a simbologia disso tudo, o que você, Menino Jesus, representa. Aliás, não só você, mas tantos outros que tantas outras religiões dizem existir. Para mim, vocês representam a força espiritual que nos criou, que nos sustenta e que nos leva quando chega a hora. E nesta força, que por falta de outra palavra chamo de Deus, eu acredito, como acredito! Acredito neste Deus todo poderoso tanto para o bem como para o mal. Acredito neste Deus, também Ele feito de luzes e sombras, afinal não fomos feitos à sua imagem e semelhança?

Acredito na face iluminada de Deus quando percebo o milagre da vida e a perfeição do universo. Quando ouço uma sinfonia de Beethoven. Quando ouço a voz de Callas interpretando Verdi, ou mesmo quando ouço um samba de Noel. Quando leio um poema de Fernando Pessoa ou um texto de Clarice. Quando ouço a chuva cair alimentando a terra seca. Quando vejo um jardim cheio de flores das mais variadas formas e cores ou o sol se por num belo horizonte, iluminando as montanhas que o confrontam. Quando ouço o canto dos diversos tipos de pássaros que voltam em bando na primavera e vejo a perfeição dos ninhos que constroem. Acredito na face iluminada de Deus quando percebo a solidariedade do ser humano nas tragédias, a sua generosidade quando ajuda um amigo ou mesmo um desconhecido. Quando vejo o suor no rosto do homem que ergue a obra de um artista. Quando vejo o sorriso de uma criança ou quando me derreto ao ouvir os netos me chamando de vovó. Vejo a face iluminada de Deus na risada de um amigo, na emoção de uma torcida quando seu time é campeão, no balanço do meu peito quando recebo mensagens do homem que amo, na felicidade estampada no rosto de quem realiza um sonho.  São muitas as manifestações da face iluminada de Deus, assim como são muitas as manifestações da sua face sombria. A miséria, a fome de milhões de crianças, a fúria da natureza quando destrói e mata, a carnificina das guerras por motivos tão fúteis e tão estúpidos, o sofrimento de um amigo querido destroçado pela doença, o preconceito, a corrupção dos governantes, a inveja, a cobiça, o egoísmo e aqueles tantos outros pecados capitais dos quais somos vítimas. Sim, Menino Jesus, somos vítimas já que os pecados fazem parte da nossa natureza. Fomos criados assim e não temos culpa se Deus, nesta parte, errou o alvo. Errar o alvo é a origem da palavra pecado, né não? Soube que vem lá do grego (hamartia).

Se culpa temos é a de não fazer prevalecer o bem nessa eterna luta contra o mal. É o que deveríamos tentar diariamente.

Então, eu vou me ajoelhar diante de você, Menino Jesus, representante de Deus escolhido por mim, e que repousa tão lindo, tão terno no meu presépio. Não para lhe pedir paz, saúde, prosperidade e abundância como é costume nesta época. Tudo isso eu já peço e desejo para os meus amigos e parentes adorados, sempre e todos os dias. Este ano, nesta época, o meu pedido é outro: que saibamos entender esta dualidade, com ela conviver e dela fazer uso. Assim, nos tempos sombrios, quando as trevas dominam, saibamos olhar para o céu e apreciar as estrelas. Já, quando o tempo é de claridade, tanta que nos cega, saibamos meditar às sombras das árvores. Peço, ainda, Menino Jesus, que, no combate contínuo travado entre o bem e o mal, seja sempre a nossa face luminosa, a luz que existe em nós, a se sobrepor, triunfante e soberana, às trevas que nos habitam.

É o que desejo, do fundo do meu coração, para mim e para todos vocês.

Cecília Maria De Luca

 

Retirado de Samizdat

publicado às 20:42


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