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Conto - “A infinita fiandeira”

por Jorge Soares, em 16.04.16

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A aranha, aquela aranha, era tão única: não parava de fazer teias! Fazia-as de todos os tamanhos e formas. Havia, contudo, um senão: ela fazia-as, mas não lhes dava utilidade. O bicho repaginava o mundo. Contudo, sempre inacabava as suas obras. Ao fio e ao cabo, ela já amealhava uma porção de teias que só ganhavam senso no rebrilho das manhãs.


E dia e noite: dos seus palpos primavam obras, com belezas de cacimbo gotejando, rendas e rendilhados. Tudo sem nem finalidade. Todo bom aracnídeo sabe que a teia cumpre as fatias funções: lençol de núpcias, armadilha de caçador. Todos sabem, menos a nossa aranhinha, em suas distraiçoeiras funções.

Para a mãe-aranha aquilo não passava de mau senso. Para quê tanto labor se depois não se dava a indevida aplicação? Mas a jovem aranhiça não fazia ouvidos. E alfaiatava, alfinetava, cegava os nós. Tecia e retecia o fio, entrelaçava e reentrelaçava mais e mais teia. Sem nunca fazer morada em nenhuma. Recusava a utilitária vocação da sua espécie.

– Não faço teias por instinto.
– Então, faz porquê?
– Faço por arte.

Benzia-se a mãe, rezava o pai. Mas nem com preces. A filha saiu pelo mundo em ofício de infinita teceloa. E em cantos e recantos deixava a sua marca, o engenho da sua seda. os pais, após concertação, a mandaram chamar. A mãe:

– Minha filha, quando é que acentas as patas na parede?
E o pai:
– Já eu me vejo em palpos de mim…
Em choro múltiplo, a mãe limpou as lágrimas dos muitos olhos enquanto disse:
– Estamos recebendo queixas do aranhal.
– O que é que dizem, mãe?
– Dizem que isso só pode ser doença apanhada de outras criaturas.

 

Até que se decidiram: a jovem aranha tinha que ser reconduzida aos seus mandos genéticos. Aquele devaneio seria causado por falta de namorado. A moça seria até virgem, não tendo nunca digerido um machito. E organizaram um amoroso encontro.

– Vai ver que custa menos que engolir mosca – disse a mãe.

E aconteceu. Contudo, ao invés de devorar o singelo namorador, a aranha namorou e ficou enamorada. Os dois deram-se os apêndices e dançaram ao som de uma brisa que fazia vibrar a teia. Ou seria a teia que fabricava a brisa?

A aranhiça levou o namorado a visitar sua coleção de teias, ele que escolhesse uma, ficaria prova de seu amor.

A família desiludida consultou o Deus dos bichos, para reclamar da fabricação daquele espécime. Uma aranha assim, com mania de gente? Na sua alta teia, o Deus dos bichos quis saber o que poderia fazer. Pediram que ela transitasse para humana. E assim sucedeu: num golpe divino, a aranha foi convertida em pessoa. Qaundo ela, já transfigurada., se apresentou no mundo dos humanos logo lhe exigiram a imediata identificação. Quem era, o que fazia?

– Faço arte.
– Arte?

E os humanos se entreolharam, intrigados. Desconheciam o que fosse arte. Em que consistia? Até que um, mais-velho, se lembrou. Que houvera um tempo, em tempos de que já se perdera memória, em que alguns se ocupavam de tais improdutivos afazeres. Felizmente, isso tinha acabado, e os poucos que teimavam em criar esses pouco rentáveis produtos – chamados de obras de arte – tinham sido geneticamente transmutados em bichos. Não se lembrava bem em que bichos. Aranhas, ao que parece.

 

Mia Couto

No livro “O Fio das Missangas”

Retirado de Revista Pazes

publicado às 21:13

Conto - O menino no sapatinho

por Jorge Soares, em 12.12.15

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Imagem de aqui 

 

Era uma vez o menino pequenito, tão minimozito que todos seus dedos eram mindinhos. Dito assim, "fino modo", ele quando nasceu nem foi dado à luz mas a uma simples fresta de claridade.De tão miserenta, a mãe se alegrou com o destamanho do rebento - assim pediria apenas os menores alimentos. A mulher, em si, deu graças: que é bom a criança nascer assim desprovida de peso que é para não chamar os maus espíritos. E suspirava, enquanto contemplava a diminuta criatura. Olhar de mãe, quem mais pode apagar as feiuras e defeitos nos viventes? Ao menino nem se lhe ouvia o choro. Sabia-se de sua tristeza pelas lágrimas. Mas estas, de tão leves, nem lhe desciam pelo rosto. As lagriminhas subiam pelo ar e vogavam suspensas. Depois, se fixavam no tecto e ali se grutavam, missangas tremeluzentes.Ela pegava no menino com uma só mão. E falava, mansinho, para essa concha. Na realidade, não falava: assobiava, feita uma ave. Dizia que o filho não tinha entendimento para palavra. Só língua de pássaro lhe tocaria o reduzido coração. Quem podia entender? Ele há dessas coisas tão subtis, incapazes mesmo de existir. Como essas estrelas que chegam até nós mesmo depois de terem morrido. A senhora não se importava com os dizquedizeres. Ela mesmo tinha aprendido a ser de outra dimensão, florindo como o capim: sem cor nem cheiro. A língua dela, à míngua. A mãe só tinha fala na igreja. No resto, ela pouco falava. O marido, descrente de tudo, nem tinha tempo para ser desempregado. O homem era um nada, despacha-gargalos, entorna-fundos. Do bar para o quarto, de casa para a cervejaria. Pois, aconteceu o seguinte: dadas as dimensões de sua vida e não havendo berço à medida, a mãe colocou o menininho num sapato. E cujo era o do pé esquerdo do único par, o do marido. De então em diante, o homem passou a calçar de um só pé. Só na ida isso o incomodava. Pois, na volta, ele nem se apercebia ter pés, dois na mesma direcção. Em casa, na quentura da palmilha, o miúdo aprendia já o lugar do pobre: nos embaixos do mundo. Junto ao chão, tão rés e rasteiro que, em morrendo, dispensaria quase o ser enterrado. Uma peúga desirmandada lhe fazia de cobertor. O frio estreitasse e a mulher se levantava de noite para repuxar a trança dos atacadores. Assim lhe calçava um aconchego. Todas as manhãs, de prevenção, a mulher avisava os demais e demasiados:- Cuidado, já dentrei o menino no sapato.Que ninguém, por descuido, o calçasse. Muito - muito, o marido quando voltava bêbado e queria sair uma vez mais, desnoitado, sem distinguir o mais esquerdo do menos esquerdo. A mulher não deixava que o berço fugisse da vislembrança dela. Porque o marido já se outorgava, cheio de queixa:- Então, ando para aqui improvisar um coxinho? - É seu filho, pois não?- O diabo que te descarregue!E apontava o filhote: o individuozito interrompia o seu calçado? Pois que, sendo aqueles seus exclusivos e únicos sapatos, ele se despromoveria para um chinelado? - Sim, respondeu a mulher. Eu já lhe dei os meus chinelos.Mas não dava jeito naqueles areais do bairro. Você sabe como é, mulher: a gente pisa o chão e não sabemos se há mais areia em baixo que em cima do pé. Além disso, eu é que paguei os tais sapatos. Palavras. Porque a mãe respondia com sentimentos: - Veja o seu filho, parece o Jesuzinho empalhado, todo embrulhadinho nos bichos de cabedal. Ainda o filho estava melhor que Cristo - ao menos um sapato já não é bicho em bruto. Era o argumento dela mas ele, nem querendo saber, subia de tom:- Cá se fazem, cá se apagam!O marido azedava e começou a ameaçar: se era para lhe desalojar o definitivo pé, então, o melhor fosse desafazerem-se do vindouro. A mãe estremecia, estarrecida, fosse o fim de todos os mundos.- Vai o quê fazer?- Vou é desfazer.Ela prometia-lhe um tempo, na espera que o bebé graudasse. Mas o assunto azedava e até degenerou em soco, punhos ciscando o escuro. Os olhos dela, amendoídos ainda, continuaram espreitando o improvisado berço. Ela sabia que os anjos da guarda estão a preços que os pobres nem ousam. Até que se o ano findou, esgotada a última folha do calendário. Vinda da Igreja, a mãe descobriu-se do véu e anunciou que iria compor a árvore de Natal. Sem despesa, nem sobrepeso. Tirou à lenha um tosco arbusto. Os enfeites eram tampinhas de cerveja, sobras da bebedeira do homem. Junto à árvore ela rezou com devoção de Eva antes de haver a macieira. Pediu a Deus que fosse dado ao seu menino o tamanho que lhe era devido. Só isso, mais nada. Talvez, depois, um adequado berço. Ou, quem sabe, um calçar novo para seu homem. Que aquele sapato já espreitava pelo umbigo, o buraco na frente autorizando o frio. Na sagrada antenoite, a mulher fez como aprendera dos brancos: deixou o sapatinho na árvore para uma qualquer improbabilíssima oferta que lhe milagrasse o lar. No escuro dessa noite, a mãe não dormiu, seus ouvidos não esmoreceram. Despontavam as primeiras horas quando lhe pareceu escutar passos na sala. E depois, o silêncio. Tão espesso que tudo se afundou e a mãe foi engolida pelo cansaço.Acordou mais cedo que a manhã e foi directa ao arbusto de Natal. Dentro do sapato, porém: estava só o vago vazio, a redonda concavidade do nada. O filho desaparecera? Não para os olhos da mãe. Que ele tinha sido levado por Jesus, rumo aos céus, onde há um mundo apto para crianças. Descida em seus joelhos, agradeceu a bondade divina. De relance, ainda notou que lá no tecto já não brilhavam as lágrimas do seu menino. Mas ela desviou o olhar que essa é a competência de mãe: o não enxergar nunca a curva onde o escuro faz extinguir as sementes.

 

Mia Couto

Retirado de aqui

publicado às 21:02

Conto - O cego Estrelinho

por Jorge Soares, em 10.10.15

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O cego Estrelinho era pessoa de nenhuma vez: sua história poderia ser contada e descontada não fosse seu guia, Gigito Efraim. A mão de Gigito conduziu o desvistado por tempos e idades. Aquela mão era repartidamente comum, extensão de um no outro, siamensal.

 

E assim era quase de nascença. Memória de Estrelinho tinha cinco dedos e eram os de Gigito postos, em aperto, na sua própria mão.

 

O cego, curioso, queria saber de tudo. Ele não fazia cerimónia no viver. O sempre lhe era pouco e o tudo insuficiente. Dizia, deste modo:

 

– Tenho que viver já, senão esqueço-me.

 

Gigitinho, porém, o que descrevia era o que não havia. O mundo que ele minuciava eram fantasias e rendilhados. A imaginação do guia era mais profícua que papaeira. O cego enchia a boca de águas:

 

– Que maravilhação esse mundo. Me conte tudo, Gigito!

 

A mão do guia era, afinal, o manuscrito da mentira. Gigito Efraim estava como nunca esteve S. Tomé: via para não crer. O condutor falava pela ponta dos dedos. Desfolhava o universo, aberto em folhas. A ideação dele era tal que mesmo o cego, por vezes, acreditava ver. O outro lhe encorajava esses breves enganos:

 

– Desbengale-se, você está escolhendo a boa procedência!

 

Mentira: Estrelinho continuava sem ver uma palmeira à frente do nariz. Contudo, o cego não se conformava em suas escurezas. Ele cumpria o ditado: não tinha perna e queria dar o pontapé. Só à noite, ele desalentava, sofrendo medos mais antigos que a humanidade. Entendia aquilo que, na raça humana, é menos primitivo: o animal.

 

– Na noite aflige não haver luz?

– Aflição é ter um pássaro branco esvoando dentro do sono.

 

 

 

Mia Couto

Do livro: “Estórias Abensonhadas”

 

retirado de Conti Outra

publicado às 21:13

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“Antigamente, não havia senão noite e Deus pastoreava as estrelas no céu. Quando lhes dava mais alimento elas engordavam e a sua pança abarrotava de luz. Nesse tempo, todas as estrelas comiam, todas luziam de igual alegria. Os dias ainda não haviam nascido e, por isso, o Tempo caminhava com uma perna só. E tudo era tão lento no infinito firmamento!

 

Até que, no rebanho do pastor, nasceu uma estrela com ganância de ser maior que todas as outras. Essa estrela chamava-se Sol e cedo se apropriou dos pastos celestiais, expulsando para longe as outras estrelas que começaram a definhar.

 

Pela primeira vez houve estrelas que penaram e, magrinhas, foram engolidas pelo escuro. Mais e mais o Sol ostentava grandeza, vaidoso dos seus domínios e do seu nome tão masculino. Ele, então, se intitulou patrão de todos os astros, assumindo arrogâncias de centro do Universo. Não tardou a proclamar que ele é que tinha criado Deus.

 

O que sucedeu, na verdade, é que, com o Sol, assim soberano e imenso, tinha nascido o Dia. A Noite só se atrevia a aproximar-se quando o Sol, cansado, se ia deitar. Com o Dia, os homens esqueceram-se dos tempos infinitos em que todas as estrelas brilhavam de igual felicidade. E esqueceram a lição da Noite que sempre tinha sido rainha sem nunca ter que reinar.”

 

MIA COUTO, no livro  “A confissão da leoa”

 

Retirado de ContiOutra

publicado às 21:13

Conto - Maxaqunina

por Jorge Soares, em 13.12.14

 

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Imagem de aqui

 

Bem na palma da cidade de Maputo, agarra-se um subúrbio, uma selva cercada a cal e cimento; selva onde o cifrão traz crinas e jubas, e goza de um eterno reinado. Maxaquene, como quem diz - familiares, ergue-se na assombração da vida humana; entre madeira e zinco, ecoa o rugir de um clamor desnutrido pela desigualdade socializada da cidade.

 

A vida corre asfaltada de raiva e tinha, e vai latindo de lamentações como um canino ao anoitecer da convivência social; estendida à rápida metamorfose e ladra o ser suburbano aliás, sub-humano. “Elas” são sempre o sacrifício da família, o garante dos demais membros verem o amanhã; ver a mesa pelo menos uma vez ao dia. Ter filhas, ser chulo, é algo indiferente. Elas exibem-se no tropel da vida e alimentam a cidade de gemidos, gozos e delírios outrora ocultos à gente da mesma idade. Era, é, e não se sabe até quando será assim a vida, nas maxaqueninas. Essas atletas a mercê da fome, num jogo em que quem ganha o presente perde o futuro e muito mais. Mas o que fazer quando a única saída é só para boca do tubarão?

 

As bonitas vivem pela beleza, as feias procuram outro argumento para encarar a vida, não tendo outro, estas presas a fome e nada. A Maxaquenina eleita aqui, como protagonista, era reunida de uma pigmentação preconceituosa do ser (mulata), quanto mais for clara a pele, maior é o escuro do futuro. É essa a regra e a alma do subúrbio, regra não-negra, desalmada na vastidão não-branca.

 

A Maxaquenina julgava-se na sentença máxima de pertencer a cor; uma rainha (dês) coroada da cor doada violentamente. Só compatibilizava-se pelas mesmas epidermes místicas, as igualitárias oriundas de um passado comum, de mercadores árabes a colónias europeias; que a convivência suburbana esbarra ao preço do pão. Para ela, tudo valia a pena; era a cor o seu preferencial e companheirismo ideal. Vinha sempre uma alma nua, ancorada em mares mistos e místicos; independentemente da faina, labutava neste desconceituo ofício da vida. É triste quando o que achamos que nos é igual de outro, o outro não valoriza. A convivência suburbana é uma aventura sem viagem alguma; um tempo sem compromisso com a hora.

 

A Maxaqunina era, talvez pelo esforço via-se quase, linda; trazia um fogo guardado, que o mesmo afugentava os negrinhos e aquecia os homens de cor; em vivências mal concebidas. Pois, a maldade sentir-se-á triste pela tal comparação; ela passava a vida nas piores das formas que uma moça do seu porte e cor poderia passar. Engraçado, dava tudo para manter aquela aparecia barata, aquela aparência aparentada dela mesma. A preocupação era a aparência, não a essência. Uma vez, no dia em que, não se sabendo por que razão, conseguiu somas consideráveis de cifrão. Pegou e gastou, em o quê? Roupa e cabelo. Dizia a mãe:

- Você nem cama têm, mal come; porque tchunabeibes e tizagens?, coisas caras... minha filha, tenha juízo. Juízo era realmente algo que nem a binóculos a filha contemplaria. A maxaquenina pensava rápido e curto; um pensar típico e suburbano. Aliás, um pensar que qualquer um pode, desde que pense em pensar. Pensar para logo vencer! A Escola é pensar para esperar; esperar é paciência, no subúrbio paciência traz derrota, e escola serve para ter boneca; sonho de toda menina; ela, não querendo ser excepção até na quinta classe foi suficiente para concretizar o sonho, suficiente para deixar de sonhar e ter o seu boneco; um bebé malnutrido, aliás sem nutrição; mas feliz para ele, pois seus companheiros foram anulados enquanto feto, outros jogados vivos na sarjeta. - Que sobreviva assim que estás, quem sabe no futuro... os outros nem presente tiveram. Dizia a Maxaquenina, quando o bebé fazia o que bem sabia fazer: chorar, chorar e chorar.  

 

O tempo dá azo aos seus ensinamentos tardiamente. Quanto ao exemplo desses exercícios fazia-lhe frente, virou frango para os mesmos negrinhos: assado, cozido, por vezes cru. Hoje, os sem cor, os sem alma não a erotizam, ninguém por nada, mergulha neste (mar) morto que um dia foi praia quente e os coloridos navegaram-na descamisados; uma praia virgem e exploraram-na todo atractivo erótico. Hoje paisagem, somente onde o tempo faz delas histórias de uma viagem estática. Uma viagem que traz ao mundo da pequena selva (Maxaquene) dentro da já suburbana cidade de Maputo, mais sentido ao ciclo vicioso; mais índice a obscenidade.  

 

Japone Arijuane - Moçambique

 

Retirado de Literatas

publicado às 21:29

Conto - Na casa da vizinha

por Jorge Soares, em 06.12.14

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Imagem de aqui 

 

Nós aparecemos como resgate, teríamos de ficar com um quarto da casa e um quarto da sala, teríamos de dividi-la ao meio, enquanto esperávamos um pedreiro para a reforma, porém alojamo-nos mesmo assim, apenas uma cortina separávamos. Eu era nocturno caseiro, meu companheiro nem por isso, vezes eram duas por semana que dormia no seu local de trabalho. A vizinha, como meu companheiro a chamava, era um furacão, sempre em erupção, cujo fogo queimávamos ambos adentro; cautelosa vigiava-me o rosto, com dotes de fisionomista, como quem controla uma fruta prestes a amadurecer. Vinha cheia dela como uma serpente, contemplava-me primeiro e desenhava no ar com a sua voz suave a palavra – olá; eu, firme retribuía-a com um aceno, por vezes de braço, sem encara-la frontalmente, gesto de como quem nada quer. Mas via-lhe nos olhos o veneno da sedução, pronto para atirar como legítima defesa. 

 

Um dia desses, ouvi batidas carinhosas a porta; ouvi na mesma voz que ouvia entre cortinas; não descortinando o real motivo, esbocei a básica questão: quem é? A mesma voz se fez firme.

 

- Eu

- Eu quem?! Como se pelo timbre da voz não reconhecesse a portadora.

- Eu vizinha… Chamou-se. Quando fui abrir, lá estava ela desprotegida exibindo pouco tecido na epiderme, antes mesmo que abrisse a matraca, - disse eu:

- Pois, não!

- Não… É que esquece-me as chaves da minha porta… posso entrar daqui?

 

- Pode! Fica a vontade. Tirou os chinelos sacudiu os pés, num saco que ali estava desempenhando função de tapete. Ao mergulhar seu tronco semi-nu na claridade a sala tornou-se mais iluminada; fingi não olhar, pois as mulheres interessam-se em homens que elas não vêem interesse deles nelas. Mas para chamar-me atenção, parou e assobio, um atrevimento pouco comum nas mulheres, - pensei eu! Quando a olhei acenou o rosto e cuspiu a mais bela frase de agradecimento que jamais ouvi em toda minha vida.

 

- Obrigada… Mantive-me na compostura machista, levantei a mão e nenhuma palavra. Ela manteve-se ali olhando-me de soslaio, eu que propositadamente estava quase de tronco nu; lancei a camiseta que vestia na cadeira ao lado; dando-lhe as costas em direcção ao quarto, senti que alguém me contempla, aliás, eu até que sabia mas fingia. Quando virei a surpreende atónita, fitava-me feito um provinciano que chega pela primeira vez na cidade grande; contemplava-me como se eu não estivesse ali.

 

- Algum problema? Continuo ali fixa e cabisbaixa, sem A nem B, muito menos C! Ganhou fôlego, como quem descansa de uma longa caminhada e disse:

 

- Você é a solução…

- Algum problema? Continuei, como quem não ouviu.

- Não! Alguém é a solução!

- Não entendi?!

 

- Não vais entender, não é para entender, nem eu entendo! Aproximou-se, bem perto olhou-me nos olhos, senti o fogo a queimar-me todo. Seus lábios prontificaram-se com tudo; quando trilharam em mim, o fogo virou uma onda no mar, calma e traiçoeira, quando molhou-me todo, já estava eu a navegar mares e mares, sem medo de nada, muito menos do fogo do mar. Eu disse para mim mesmo, - deixe que tome dianteira.

 

Mergulhei o rosto no decote, como se de um remo se tratasse, agarrei-lhe a cintura com as duas mãos. Colidimos na mesma primeira cadeira onde a minha camiseta estava pendurada. Ia eu fervendo, o furacão transformando-se em tsunami, quando a metade da sala enchia-se de esforços, as posições desfilando num cortejo de deuses. Um barulho fez sentir, quando nos demos do barulho, meu companheiro gemia, lá do lado do quarto. Olhei para o único buraco do quarto não vi, mas via-se a luz acesa reflectindo por cima da porta. 

 

Japone Arijuane - Moçambique

 

Retirado de Literatas

publicado às 21:27

Conto - Lembras-te?

por Jorge Soares, em 05.10.13
Lembras-te?
(Ilustração: Clotilde Fava)

Migu d’omê, sá kloson dê

(O amigo do homem é o seu coração)
Trazias nos olhos a longidão de um outro Atlântico, frio e brumoso, oceano profundo que deixaste na amurada de teus pensamentos lusos, viagem de emoções e expectativas. E nesse trajecto trouxeste cheiros de outros corpos e de outras plantas, retalhos de vidas que se aninharam na tua mente  entristecida e só, fruto de uma latinidade enregelada e fatalista.
Chegaste um dia. Lembras-te? Era Primavera no teu longe. Aqui, sabes, não há Primavera, não há o primeiro Verão. Aqui só vive e canta a chuva e o sol embrulhados em folhas de gravana ou desnudados em noites acaloradas como romances de amores proibidos, amores acasulados apenas com a nossa dimensão arquipelágica.
Trazias o voo dos teus pássaros migrantes, dicionário alado que tentaste reproduzir no solo ilhéu onde teus pés feridos e calejados de outros chãos repousaram por fim. Mas as tuas aves não vieram no teu peito nem na proa do navio grande que te trouxe nem se aninharam em tuas mãos rudes e prósperas de sonhos como de sonhos se despojaram teus braços. E abraços. E as aves não migraram nem cantaram nos teus dedos. Apenas ouviste delas o bater de asa, plumas de frio que não se habituam nunca a sóis tórridos nem a sombras quentes de cacauzais alaranjados.
Chegaste. Lembras-te? Dançavam puíta no quintal de Sam Gidiba, mulata sem idade como todas as mulatas, herdeira de uma juventude inacabada, sensual e provocadora, blága penaconhecida na Trindade e arredores mas que ainda saracoteava  suas ancas num ritmo tão frenético e endemoinhado quanto a dança de konóbia ao tomar seu banho matinal nas águas sobrantes das margens dos rios. E ficaste extasiado ao ouvir o som frenético dos batuques. Que sons seriam aqueles?! Que ritmos? Que requebros? Tudo soava a novo para teus ouvidos lusos onde o arrastar triste e melódico de uma guitarra era a única ressonância que trazias na tua caixinha de música, sons de montes escarpados e nus, flauta de guardador de gado em terras de neve e gelo, sons frios como o teu corpo franzino que um grosso casaco de lã revestia. Depois teus etéreos passos te levaram por toda a ilha que foi tão gentil contigo! A ilha e os seus produtos, misturaste-te com eles, comeste kalulu, d’jógó, sôo, manga d’ôbô, bebeste café de Bom Jesus, até no dia das cinzas comeste “bôcadu” em casa da velha avó Sam Zinha e quando enfim, despertaste do teu encantamento, já sob as ramadas dos velhos cacaueiros corriam, descalços e seminus, teus filhos  meninos.
Não vinhas para ficar… lembras-te? Vinhas para encher teu baú (que viajou no porão) de fortunas, especiarias, tecidos raros, vinhas para dar ordens, ensinar, amealhar e partir de novo como quem cumpre um roteiro escolhido numa qualquer conversa de amigos ou numa agência de viagens. Sabias ler, escrever, fazer contas, o que era um trunfo a teu favor naquele tempo em que eram muito poucos os que podiam exibir tais artes. Por isso vinhas, tal como Sandokan, conquistar facilmente um reino do qual um outro antepassado teu te contara maravilhas sem fim, maravilhas que passavam de boca em boca, se dispersavam em semicírculo às lareiras fumarentas de povos distantes. Era uma teia aquele contar e recontar de estórias da terra-mãe, da ilha onde a fortuna era fácil para qualquer homem de pele clara que nela aportasse… E tu trazias essas estórias coladas ao corpo, pregadas na alma como as mãos de Cristo no madeiro, e foi com elas que entraste no barco grande que te trouxe a esta terra. Que depois foi tua. Que amaste logo nessa noite em que o ritmo desenfreado da puíta se colou à tua alma como mais tarde se colou também ao teu corpo o corpo sempre sedento de Sam Gidiba…
Como foi importante para ti essa noite… Tu, meu longeavô, tu que vinhas colonizar e acabaste colonizado! Aceitaste os sons, a alegria exuberante, os cheiros intensos, o calor desmesurado e húmido, as doenças, os amores, sim, os amores, as nossas gargalhadas sibilantes, os nossos gestos futuristas como quem quer abraçar o mundo… Tudo tu entranhaste no teu ser como se tudo já fosse teu desde o dia em que viste pela primeira vez a claridade. Por isso dizias sempre que esta era a tua terra, que aqui estava o teu coração, aqui viviam os teus filhos, os teus netos e bisnetos, a tua posteridade…Nunca regressaste nem mais falaste da tua lusa gente e foi neste chão de basalto e de areia que se diluíram teus ossos pálidos e teus cabelos lisos e direitos como fio de prumo. Que estranho quando me olho ao espelho! Que estranho quando vejo a minha pele, quando sei que todo eu sou negro acetinado, negro carvão, pletu lu, lu, lu, como forro diz… Pois é, meu longeavô, quando me olho de alto a baixo quase quase me esqueço que sou um mosaico de raças, um cruzamento de terras de além do horizonte, um aventureiro de diferentes credos, um fruto de uma maré viva da nossa História tão pequena e afinal tão grande.
Hoje, meu longeavô,  hoje tenho mais do dobro da idade que tu tinhas,  quando aqui aportaste e estou exactamente no mesmo local onde pela primeira vez puseste teu pé em terra firme. Devo ser a tua quarta ou quinta geração, nem sei bem, bisneto de um filho teu que sempre falou de ti como de ti falaram as outras gerações que me antecederam. Que te conheceram e te amaram como tu os conheceste e amaste. Também fizeste erros, e muitos. Mas… quem os não faz?!
Fui ontem ao Arquivo Histórico. Foi o meu coração que me levou até lá. Como tu sempre disseste “ o amigo do homem é o seu coração”. Por isso estou feliz. Fui acertar contas com o meu e o teu destino, fui fazer as pazes com todas as raças do mundo porque com todas elas estamos entrelaçados. Quis ver de meus próprios olhos as letras redondas que desenhaste para os nomes dos contratados, escravos afinal, que durante tempos infindos aportaram nesta ilha. E, pela primeira vez, sim, pela primeira vez, meu longeavô, senti que estavas perto de mim, não pelo tempo cronológico que deixa suas marcas em nossos rostos mas pelos nomes que a tua mão direita desenhou nas linhas dos grandes cadernos das roças. Numa dessas linhas escreveste “Benguelino, contratado vindo numa leva de homens oriundos de Angola.” Quem seria este Benguelino, que histórias traria para contar nas ilhas, que roça o esperava?! Teria existido amizade entre ti e ele? Mas de certeza que dele muito falaste… Agora pergunto, meu longeavô, porque tenho eu o mesmo nome?! Seria mais lógico então ter o teu, António, tradicionalmente português, serrano, beirão, mas não, o teu nome e sobrenome diluíram-se em ti próprio pois não os deste a teus dois filhos mestiços. Sempre foi assim nas nossas ilhas, filhos mestiços com pai e sem nome. Mas eles, pelos vistos, pouco se importaram com isso e com a tua branquidão que se foi esbatendo até dela não restar senão lívida lembrança. Cruzaram-se com mulheres tongas, angolares, forras, todas elas de uma negrura que só a noite sem lua lhes iguala a cor. No entanto falaram sempre de ti aos teus vindouros, sussurraram o teu nome em sílabas dispersas na boca de minha avô Plácida, de minha bisavó Franzinha, de outras mais distantes ainda… Foste homem de muitas mulheres, disseram-me, mas de poucos filhos, segundo consta.
Fui ontem ao Arquivo Histórico, meu longeavô, e vi a tua mão direita deslizar firme e jovem, a caneta de aparo reluzente, a escrever “Benguelino, contratado vindo numa leva de homens oriundos de Angola”. Nesse dia, sem o saberes, passaste para o meu mundo… Serei eu, meu longeavô, serei eu, Benguelino da Costa Ferreira, condutor de táxi a tempo inteiro e plantador de cacau nas horas vagas, portador do teu sangue luso no meu corpo negro, serei eu que porei o teu nome ao meu filho que vai nascer pela lua cheia que se aproxima.

Olinda Beja

(Estórias da Gravana; escritora de São Tomé e Príncipe)
Retirado de Trapiche dos outros

publicado às 21:05

Conto: O menino que escrevia versos

por Jorge Soares, em 14.04.12
O menino que escrevia Versos

Imagem de aqui

 

- Ele escreve versos!

 

Apontou o filho, como se entregasse criminoso na esquadra. O médico levantou os olhos, por cima das lentes, com o esforço de alpinista em topo de montanha.

 

- Há antecedentes na família ?

 

- Desculpe, doutor ?

 

O médico destrocou-se por tintins, Dona Serafina respondeu que não. O pai da criança, mecânico de nascença e preguiçoso por destino, nunca espreitara uma página. Lia motores, interpretava chaparias. Tratava-a bem, nunca lhe batera mas a doçura mais requintada que conseguira tinha sido em noite de núpcias:

 

- Serafina, você hoje cheira a óleo Castrol.

 

Ela hoje até se comove com a comparação. Sim, perfume de igual qualidade qual outra mulher pode sequer sonhar ? Pobres que fossem os dias, para ela, tinham sido lua-de-mel. Para ele, período de rodagem. O filho fora confeccionado nesses namoros de unha suja, restos de combustível manchando o lençol. E oleosas confissões de amor.

 

Tudo corria sem mais, a oficina mal dava para o pão e a escola do miúdo. Mas eis que começam a aparecer, pelos recantos da casa, papeis rabiscados com versos. O filho confessou, sem pestanejo, a autoria do feito.

 

- São meus versos, sim.

 

O pai logo sentenciara: havia que tirar o miúdo da escola. Aquilo era coisa de estudos a mais, perigosos contágios, más companhias. Pois o rapaz, em vez de se lançar no esfrega-refrega com as meninas se acabrunhava nas penumbras e, pior ainda, escrevia versos. O que se passava: mariquice intelectual ? Ou carburador entupido, avarias dessas que a vida do homem se queda em ponto morto ?

 

Dona Serafina defendeu o filho e os estudos. O pai, conformado, exigiu: então, ele que fosse examinado.

 

- O médico que faça revisão geral, parte mecânica, parte eléctrica.

 

Queria tudo. Que se afinasse o sangue, calibrasse os pulmões, e sobretudo lhe espreitassem o nível do óleo na figadeira. Houvesse que pagar por sobressalentes, não importava. O que urgia era por cobro àquela vergonha familiar.

 

Olhos baixos, o médico escutou tudo, sem deixar de escrevinhar num papel. Aviava já a receita para poupança de tempo. Com enfado, o clínico se dirigiu ao menino:

 

- Dói-te alguma coisa ?

 

- Dói-me a vida, doutor.

 

O doutor suspendeu a escrita. A resposta, sem dúvida, o surpreendera. Já Dona Serafina aproveitava o momento: está a ver, doutor ? Está ver ? O médico voltou a erguer o olhos e a enfrentar o miúdo:

 

- E o que fazes quando te assaltam essas dores ?

 

- O que melhor sei fazer, excelência, é sonhar.

 

Serafina voltou à carga e sapateou a nuca do filho. Não lembrava o que pai lhe dissera sobre os sonhos ? Que fosse sonhar longe ! Mas o filho reagiu: longe, porquê ? Perto, o sonho aleijaria alguém ? O pai teria, sim, receio de sonho. E riu-se, acarinhando o braço da mãe.

 

O médico estranhou o riso. Custava a crer, visto a idade. Mas o moço, voz tímida, foi-se anunciando. Que ele, modéstia apartada, já inventara sonhos desses que já nem há, só no antigamente, coisa de bradar à terra. Exemplificaria, para melhor crença. Mas nem chegou a começar. O doutor o interrompeu:

 

- Não tenho tempo, moço, isto aqui não é nenhuma clínica psiquiátrica.

 

A mãe, em desespero, pediu clemência. O doutor que desse ao menos uma vista de olhos pelo caderninho dos versos. A ver se ali catava o motivo de tão grave distúrbio. Contrafeito, o médico aceitou e guardou o manuscrito na gaveta. A mãe que viesse na próxima semana. E trouxesse o paciente.

 

Na semana seguinte foram os últimos a serem atendidos. O médico, sisudo, taciturneou: o miúdo não teria, por acaso, mais versos ? O menino não entendeu.

 

- Não continuas a escrever ?

 

- Isto que faço não é escrever, doutor. Estou, sim, a viver. Tenho esse pedaço de vida - disse, apontando um novo caderninho - quase a meio.

 

O médico chamou a mãe, à parte. Que aquilo era mais grave do que se poderia pensar. O menino carecia de internamento urgente.

 

- Não temos dinheiro, fungou a mãe entre soluços.

 

- Não importa, respondeu o doutor.

 

Que ele mesmo assumiria as despesas. E que seria ali mesmo, na sua clínica que o menino seria sujeito a devido tratamento.

 

Hoje quem visita o consultório raramente encontra o médico. Manhãs e tardes ele se senta num recanto do quarto de internamento do menino. Quem passa pode escutar a voz pausada do filho do mecânico que vai lendo, verso a verso, o seu próprio coração.

 

Mia Couto

  

Retirado de Lábios de Carmim

publicado às 21:33

Conto, Gaiola de moscas

por Jorge Soares, em 11.02.12

Mosca

 

Imagem minha do Momentos e Olhares

 

Zuzé Bisgate. Logo na entrada do mercado, bem por baixo da grande pahama se erguia sua banca. Quando a manhã já estava em cima, Zuzé Bisgate assentava os negócios. O que ele fazia? Alugava bisga, vendia o cuspo dele. A saliva de Zuzé tinha propriedades de lustrar sapatos.
- “É melhor que graxa, enquanto graxa nem há”.


Além disso, o preço dele era mais favorável. Cada cuspidela saía a trezentos, incluindo o lustro. Maneira como ele procedia era seguinte: o cliente tirava o sapato e colocava o pé empeugado do cliente sobre uma fogueirita. O pé ficava ali apanhando uns fumos para purificar dos insectos infecciosos. Zuzé Bisgate pegava no sapato e cuspia umas tantas vezes sobre ele. Cada cuspidela contava na conta. Passava o lustro com um pano amarrado no próprio cotovelo. Razão do pano, motivo de esfregar com o cotovelo:


- “Dessa maneira a minha saliva me volta no corpo. É que este não é um cuspe qualquer, um produto industrioso desses. Não, isto é uma saliva bastantíssima especial, foi-me emprestada por Deus, digamos foi um pequeno projecto de apoio ao sector informal. É que Deus conhece-me bem, pá. Eu sou um gajo com bons contactos lá em cima”.


Os clientes não se faziam enrugados. Às vezes até abichavam frente à banca dele. Fosse da saliva, fosse da conversa que ele lustrava. Verdade era que o negócio de Zuzé corria em bom caudal.


Quem não se dava bem com os cuspes era sua mulher Armantinha. “Não se pode beijar aquela boca engraxadora dele”, se lamentava. “Prefiro beijar uma bota velha”, concluía. “Ou lamber uma caixa de graxa”.


Armantinha sonhava para saltar frustração. Um dia, qualquer dia, haveria de beijar e ser beijada. Sonhava e resonhava. Lhe apetecia um beijo, água fazendo crescer outra água na boca. Lhe apetecia como um cacto sonha a nuvem. Como a ostra ela morria em segredo, como a pérola seu sonho se fabricava nos recônditos.


Avisaram o marido. Armantinha estava sonhando longe de mais. O homem respondeu em variações. “Beijo é coisa de branco, quem se importa. E depois, minha boca cheira a coisa falecida. Quem se aflije com matéria morta? Só os da cidade. Nós, daqui, sabemos bem: é do podre que a terra se alimenta”.


Acontece que Zuzé Bisgate se foi metendo nos copos, garrafas, garrafões. Tudo servia de líquido, Zuzé destilava até pedra. De toda a substância se pode espremer um alcoolzinho, dizia. Mais e mais ele desleixava a caixa de cuspos e lustros. Até que os clientes reclamaram: a saliva de Zuzé está ganhando ácidos, aquilo é bom é para de entupir as pias. E temendo pelos sapatos os demais se evitavam de frequentar a tenda banhada pela grande pahama.


Até Chico Médio, homem sempre calado, reclamou que a saliva dele lhe fez murchar os atacadores, pareciam agora cobras sem esqueleto vertebral. Pouco a pouco Zuzé perdeu toda a clientela e o negócio das salivas fechou.


Se decidiu então a mudar de ramo. Recordou, de seu pai, a máxima: a alma é o segredo de um negócio. Alma, era isso que se necessitava. E assim ele imaginou um outro negócio. E agora quem o vê, nos actuais dias, constata a banca com sua nova aparência. E Zuzé mais seu novo posto. Seu labor é um quase nada, coisa para inglês não ver.


Ali, na fachada, arregaça as calças, com cuidado para não as desvincar. Sempre com desvelo de burocrata, desembrulha um volume retirado das entranhas de sua banca: uma gaiola forrada a rede fina. Dentro voam moscas. Pois é o que ele vende: moscardos. Matéria viva e mais que viva - vital para o mortal cidadão. Pois, diz o Bisgate, cada um deve tratar as moscas que, depois de mortos, nos visitarão o túmulo.


- “São os nossos últimos acompanhantes”...
A pessoa passa por ali, se debruça sobre o vendedor e escolhem as voadoras bastas, as mais coloridas que engalanarão o funeral:
- “Esta há-de ficar mesmo bem na sua cerimónia”.
Ele convida o hesitante cliente a ir à banca ao lado, a banca da Dona Cantarinha. Para lavar as moscas, explica.
- “Lavar as moscas?
- Sim, é lavagem a seco”.
Armantinha cada vez mais se distancia daquela loucura. O marido se apronta é para grandes descansaços.
- “Ai nosso Senhor Jesus Cristão! Você, homem, você vende alguma coisa?
- “Faça as contas, mulher.
- “Que contas? Que contas se pode fazer sem números?
- Ainda hoje vendi uma manada de moscas a esse tipo novo que chegou à aldeia.
- “Qual que chegou?
- “Esse gajo que montou banca lá nas traseiras do bazar. Uma banca que até mete as graças, chama-se “Pinta-Boca”.
- “O homem se chama Pinta-Boca?
- “Qual o homem! A banca se chama”.


Armantinha se inflama logo de sonho. Já a boca dela se liquidesfaz. Sua boca pedia pintura como a cabeça lhe requeria sonho. E, logo nessa manhã, ela ronda a nova tenda, se apresenta ao novo vendedor. Ele se declina:
- “Sou Julbernardo, venho de lá, da cidade”.


Banca Pinta-Boca. O nome faz jus. Na prateleira ele tem uma meia dúzia de bâtons com outras tantas cores. As mulheres se chegam e estendem os lábios. Julbernardo pede que escolham a coloração. Moda as brancas, vermelhudas das beiças. Uma pintadela 250 meticais.
Armantinha, já devidamente apresentada, ganha coragem e encomenda uma coloradela.


- “Aqui, se paga em adiantado”.
Ela retirou as notas encarquilhadas do soutien. Vasculhou as largas mamas à procura dos papéis. Tinha seios tão grandes que nem conseguia cruzar os braços.
- “Está aqui seu dinheiro.
- “Não chega nem basta. Essa tabuleta do preço era na semana passada. Agora é 250 um lábio.
- “Um lábio?
- “Se for o de cima, o de baixo custa mais caro. Por causa que é maior.
- “Estou fracassada com você, Julbernardo. Vá, pinte o de cima, amanhã venho pintar o de baixo.
- “Está certo, eu vou pintar”.


Julbernardo pegou no bâton com habilidade de artista. Aquilo era obra para ser vista. Metade do povoado vinha assistir às pinturas. A gente seguia caladinha, aquilo era cena à prova de fala. Julbernardo metia um avental, ordenava à cliente que sentasse no tronco cortado do canhoeiro.


Armantinha obedecia ao ritual. Sentada, ergueu o rosto. Fechou os olhos, compenentrada em si. O pintador limpou as mãos no avental. Se debruçou sobre a tela viva e fez rodar o bâton no ar antes de riscar a carne da cliente. Sentada no improvisado banco Armantinha deu largas ao sonho. O bâton acariciava o lábio e tornava seu corpo misteriosamente leve, como se naquele toque se anulasse todo o peso dela.


Sonhava Armantinha e o sonho dela se apoderava. Nesse devaneio o bâton se convertia em corpo e já Julbernardo se inclinava todo sobre ela e os lábios dele pousavam sobre a boca dela, trocando húmidas ternuras. Mundo e sonho se misturavam, os gritos da multidão ecoavam na gruta que era sua boca e, de repente, a voz raivosa de Zuzé também lhe esvoaça na cabeça.


E eis que Armantinha abre os olhos e ali, bem à sua frente, o seu marido se engalfinhava com Julbernardo. E murro e grito, com a gentalha rodopiando em volta. De repente, já um deles se apresenta de desbotar vermelhos. Os dois se misturam e uma faca rebrilha na mão de Zuzé. Depois, num sacão, se separam os dois corpos. Estão ambos ensanguentados. Julbernardo com o avental ensopado de vermelho dá dois passos e cai redondo. Num instante, uma multidão de moscas se avizinha. Zuzé, vitorioso, aponta a mulher:
- “Vê? Vê as moscas que vendi a esse cabrão?”


Mas as moscas, em lugar de escolherem o tombado Julbernardo, circundam a cabeça de Zuzé. Alarmado, ele enxota-as. Em vão: já a moscardaria lhe pousa, vira e revira. Então, Zuzé Bisgate desce dos seus próprios joelhos e se derrama em pleno chão. O sangue se vê brotar de seu peito. Julbernardo desperta e se ergue, ante o espanto geral. Com mão corrige a mancha vermelha com que o bâton esmagado enchera o seu branco avental.

Mia Couto,
Contos do nascer da Terra

 

Retirado de Contos de Aula

publicado às 21:11

Conto: Miudádivas, pensatempos

por Jorge Soares, em 29.10.11

Miudádivas, pensatempos

Imagem de aqui

(“Para Manoel de Barros, meu ensinador de ignorâncias”)


Estou sem texto, enriquecido de nada. Aqui, na margem de uma floresta em Niassa, me desbicho sem vontades para humanidades. Entendo só de raízes, vésperas de flor. Me comungo de térmites, socorrido pela construção do chão. No último suspiro do poente é que podem existir todos sóis. Essa é minha hora: me ilimito a morcego. Já não me pesam cidades, o telhado deixa de estar suspenso ao inverso em minhas asas. Me lanço nessa enseada de luz, vermelhos desocupados pelo dia.

Nesse entardecer de tudo vou empobrecendo de palavras. Não tenho afilhamento com o papel, estou pronto para ascender a humidade, simples desenho de ausência. Na tenda onde me resguardo me chegam, soltas e díspares, de visões, pensatempos, proesias. Assim, em miudádivas ao poeta:

A primavera cabe dentro do grilo.
Cigarras se alfabetizam de silêncios.
No liso da parede,
a osga se prepara para transparências,
adquire a forma do nada.
Enquanto o ramo vai transitando para camaleão.

Na mafurreira,
sobem ninhos de arribação, ovos do arco-íris.
A aranha confunde madrugada com sótão,
artefactando materiais de orvalho.
Ela se mantimenta de esperas.
Minha tenda se engrandece a teia.

Uma mosca se inadverte na armadilha.
Igual o amor
que me rouba mecanismos de viver.

Formigas transportam infinitamente a terra.
Estarão mudando eternamente de planeta?
Estarão engolindo o mundo?

Insectos sonham ser olhados pelo sol.
Mas só a chama da vela os vela.
Já o ovo é iluminado por dentro,
tocado pela luz do infinito.
O ovo repete o total início,
redundante gravidez do mundo.

Por isso, este surpreendido ovo
não tem competência para meu jantar.
Pena o estômago não entender poesias.

Nada se parece tanto: poente e amanhecer.
Defeitos na tela do firmamento?
Instantâneas aves,
pedras que se despoentam.
A noite acende o escuro.
Tudo semelha tudo.
Só a coruja atrapalha a eternidade.

Está chovendo horas,
a água está a ganhar-me semelhanças.
Escuto ventos,
derrames de céu.

Parecem-me luas e são lábios.
Lembranças de minha amada.
A tua boca me ilude, sou culpado de teu corpo.
Saudade: sou mais tu que tu.

Escuto, depois, a enchente.
Longe, a água desobedece a paisagens.
O rio toma banho de troncos,
raízes da água se soltam.
Sigo de catarata, luz encharcada.
E peço desculpa à margem:
desconhecia as unhas de minha transbordância.
Meu sonho está cego para razões.
Sei só escrever palavras que não há.

Depois, o sono me encaracola:
estou a ser pensado por pedras,
me habilito a chão, o desfuturo.


Mia Couto,
Contos do nascer da Terra
Retirado de Contos de Aula

publicado às 21:38


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