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Porque: "A vida é feita de pequenos nadas" -Sergio Godinho - e "Viver é uma das coisas mais difíceis do mundo, a maioria das pessoas limita-se a existir!"
Gertrudes Patrício costuma dizer: enviuvei de dois maridos. Mas ela sabe que, com bênção da igreja, assim mesmo casados, foi apenas com Juvenal, o pai da mais nova.
Era uma vez um cavalo que vivia em Pádua. Servia como montada de um capitão de soldados do exército de Veneza, porque o que se vai contar passou-se há muitos anos, quando as guerras eram feitas com cavalos e espadas.
Retirado de Samizdat
— Não vês que estás a ir por maus caminhos, meu filho? — O anjo adotava uma postura paternal, a face preocupada, o gesto complacente.
Retirado de Samizdathttp://www.revistasamizdat.com/2015/07/o-rapto-de-helade.html
Não sabias ainda o que ia suceder.
Não podias prever.
Preparavas um caldo de osso de borrego com nabiça e tinhas ouvido a porta de entrada e, já nem davas por isso, tinha-se-te descompassado o modo de sorver o ar que respiravas.
O corpo dele ficou a ocupar a porta que da cozinha levava à salinha de entrada que servia também de sala de jantar e sala de ver televisão, e que era onde deitavas a mais velhinha que, quando tinham alugado o T1, nem tinham pensado em fazer família, que a bem dizer nem tu nem ele nunca tinham pensado coisa nenhuma, apaixonados, doidos de quererem o corpo um do outro, e casaram poucos meses depois da noite em que se tinham visto pela primeira vez e tu nunca tinhas ouvido dizer dele, e havia tantos outros no grupo de colegas de trabalho e amigos, mas ou seria o destino a comandar-te ou terá sido o modo de ele te ter olhado, ou terás sido tu insinuante e ele nem mais te deixou, que assim to repetiria: “essas mamas redondas deram comigo em doido”; e tu embevecida do seu porte atlético, do cabelo já a ficar grisalho nas fontes apesar de tão jovem; ou terá sido o modo como te colocou a mão no ombro a pedir, soprando-te desasossegos em cada sílaba, a boca bem chegada ao lóbulo da tua orelha esquerda: “passas-me esse copo, por favor”. Ficaram nesse transe de estar apaixonados, ainda, e ainda mais, depois de terem passado juntos o início desse dia e o dia inteiro que era um dia de trabalho e ele terá dito: ”que se lixe” e disseste também tu, ou nenhum disse, ficaram sem sequer dar acordo do nascer do sol nem do cair da noite, tu e ele a rebolar desejos no tugúrio que era o quarto onde ele vivia emigrante de uma outra zona do país a fazer um serviço para a empresa onde era soldador.
E depois passaram a encontrar-se, a viver juntos quase sempre, até ao dia em que disseram um ao outro: “e se juntássemos os haveres que não temos?” e a rirem alto para o ar quente dum final de Maio. E tu terás olhado as casas que assomavam na outra margem a esconderem o bairro em que tinhas vivido até seres a namorada dele: tu a querer esquecer, a querer lembrar apenas que agora serias tu a comandar a tua vida.
Casaram sem cerimónia nem padrinhos nem convidados: “apenas eu e tu” tinhas dito, e em casa participaste que não voltavas num bilhete que deixaste na sala, e nenhum deles, mãe e padrasto, terá acreditado, tanto que nunca te procuraram, nem quando deixaste uma mensagem em que dizias: nasceu uma menina, nem quando escreveste num SMS: nasceu outra menina.
Fátima Santos
Retirado de Sanizdat
Joaquim Bispo
Retirado de Samizdat
Retirado de Samizdat
Três metros e quarenta centímetros foi o que tu mediste. Palmo a palmo, que tu sabias que eram vinte centímetros certinhos, desde o início do pulso até ao finalzinho do teu dedo médio. Tinhas medido no Natal passado, num brincar com os teus sobrinhos.
Trezentos e quarenta centímetros sem luz e sem mais espaço transversal do que o ocupado pelo teu corpo e, ainda assim, tu arrastando-te. Lenta, esforçada, a tentar desenterrar-te, sair dali, perceber o que teria acontecido.
O sedoso do teu vestido deslizando-te o corpo ensopado.
Que tentasses sair daquele odor a humidade; que te livrasses da terra enlameada a empapar-te o cabelo e o ventre, e sob os pés onde as sandálias deixariam um sulco.
Tu deslizando, a cada vez, muito menos do que os vinte centímetros do teu palmo, e ao fundo nem foi luz que visses. Ao fundo, foi o teu braço dependurado sobre um ruido intenso de água em tumulto.
Água escarlate que àquela hora todo o mundo via e se espantava e lamentava, cada um no conforto da sua casa, sua rua, sua cidade, sua aldeia; ou a dançar num arraial semelhante àquele para onde te dirigias.
Água da cor da terra. Um castanho avermelhado tão da cor do sangue que doía ver assim esmagada a terra e a vida de tantos homens. O horror a entrar pelas casas de todos e lá, abandonado, o teu braço palpando um apoio, o teu braço dependurado de dentro da conduta que te abrigara, solta sabe-se lá de onde, num daqueles acasos perversos que se dão nos destinos das pessoas.
Água que tu nunca irias saber de onde e nem como.
Tu a tentar rolar-te sobre o ventre, rodar o teu corpo apenas coberto com o vestido branco estampado com ramos verdes; o vestido que tinhas escolhido para ires ao arraial. E tanto que tinhas querido que fosse bem escolhido. O vestido e o lenço que ataste sobre os caracóis, e a pulseira que entretanto perdeste – deixaste de lhe sentir o toque, ias ainda na estrada estreita que vinha lá da encosta, tu conduzindo em segunda que a descida era um nadinha íngreme. Era mesmo muito inclinado esse troço da estrada. E cruzou-se contigo um carro. Ia ao volante um homem jovem, reparaste. E foi logo de seguida. Tão de seguida que tudo se deu.
Tinha estado uma tarde límpida, e assim aquela chuva era coisa estranha.
E o carro rolando, primeiro em linha recta, e depois aos tombos, e tu jogada sobre o assento a segurar-te, a tentar manter-te fixa, a espantares-te daquela água toda até ser o embate.
Nunca irás saber como e nem de onde.
Tu a tentar sair do túnel ou o que é que te rodeia e comprime como se fosse tumba. Tu rastejando três metros e quarenta centímetros e a tua mão a tatear apenas espaço vazio.
Um dia sairei daqui, dizes-te assim, e não choras, que a ti ensinaram-te que os deuses são justos. Justos e misericordiosos.
Eles hão-de salvar-te.
Mantém vigília, não soçobres, aconselhas-te, que tu ainda agora não percebes se foi grande chuva, ou se foste tu que fizeste, como fazias tantas vezes, e passaste o paredão a encurtar caminho. Mas não. Hoje, tu tinhas ido pela estrada. Hoje, não foras pelo dique. Não, não tinhas caído lá de cima. Foi outro o modo de ter ficado assim tanta água. E a sorte de estares agora em terra firme, se bem que nem saibas onde e nem te possas sequer voltar sobre a barriga a tentar ver que final é esse que apenas o teu braço detecta.
E paras, não te mexes.
Se soubesses rezavas, mas tu desaprendeste. Ainda assim, tentas, nem que seja para te manteres desperta: deuses do firmamento acudi-me, suplicas, e o calor da lágrima que se solta, à revelia, aconchega o teu corpo, ali, naquele final dos trezentos e quarenta centimetros bem medidos.
Maria de Fátima Santos
Retirado de Samizdat
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Retirado de Samizdat