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Porque: "A vida é feita de pequenos nadas" -Sergio Godinho - e "Viver é uma das coisas mais difíceis do mundo, a maioria das pessoas limita-se a existir!"
Imagem de aqui
Passei o fim de semana no Alentejo a acampar, esta vez foi mesmo de tenda, acreditem ou não, sobre o que aconteceu no mundo nestes 3 dias, o único que segui foi o futebol, desde o jogo de Portugal contra o Brasil ouvido no rádio em viagem, até ao jogo desta tarde da Holanda.. ouvido no rádio e em viagem.
De resto, não havia jornais no parque, e todo o tempo era pouco para a boa conversa, para desfrutar da magnifica paisagem da barragem ou para as crianças. Bem que podia ter terminado o mundo... que dificilmente daríamos por isso...
Não os vou maçar com a descrição do fim de semana, mas não se livram da maçada... vou deixar aqui algo que me tocou, porque é uma realidade que temos tendência a esquecer, e porque de vez em quando faz falta olhar para o mundo com olhos de ver.. que há mais mundos além do nosso... e pensado bem até faz sentido, não fosse o futebol, não fosse este mundial que se realiza em África, o mundo continuava a olhar para o lado.
Quando nada faz sentido
Tem 18 meses mas mal sabe andar. Tem movimentos lentos quando gatinha. Senta-se, serena, e olha-me inclinando a cabeça. Olhos semicerrados e sem sorrisos. Olha-me.
É pequena. Muito pequena. E noto-lhe a fragilidade quando chega à minha beira. Acabei de chegar e estende-me os dois braços. Não é um pedido... é uma urgência. Não é um capricho. É uma necessidade. Nunca me viu mas precisa que lhe dê o que não tem. Estende-me os braços e pego-a ao colo.
É excessivamente leve. Mantém os movimentos lentos quando encosta a sua cabeça à minha. Meto-lhe a mão debaixo da camisola. Faço festas por cima de pequenas feridas. Dezenas delas, espalhadas pelo corpo. Não sei o seu nome para a confortar mas falo com ela inglês. Seguro-lhe a mão gelada enquanto a deito no meu colo. Seguro-a como se fosse minha. Aconchega-se e agarra, com força, o meu dedo. Larga-o para conhecer o botão do meu casaco ou para me tocar no rosto.
Chamam-na por um nome zulu. Lamento a minha dificuldade em pronunciá-lo. Todos os seus gestos transportam uma lentidão assustadora. Olha-me reflexiva. Intensa. Por pouco adormece. Ficava ali uma vida. Eu dar-lhe-ia uma, se tivesse.
Seguro-a com a ferocidade de quem a disputa com o tempo e com a doença. Tem 18 meses e não chegará aos 20 anos. É seropositiva.
Sento-me no chão do refeitório e correm três, desengonçados, para o meu colo. Um em cada perna, enfiados no ângulo do ombro e do braço. O da direita adormeceu ali... sujo de arroz e carne, tombou nos meus braços de sono. O outro mexe-me nos óculos, curioso. Ao fundo, Amigo arrasta-se de quatro com os seus 6 ou 8 meses. Ninguém sabe muito bem... A mãe deu-lhe o nome de Amigo e deixou o Amigo na maternidade. Pequeno, sozinho e infectado com HIV. Amigo saiu da sala de partos... para aqui.
Falta-lhes tudo. Saúde e mimo. E aqui, fazem o que podem.
Sedentos de ternura, partem para a sesta. Já fizeram a medicação da manhã. Partem para a sesta e não me vêem partir. Melhor assim... Não os quero ver partir. Ninguém os quer ver partir... Hoje adormeço com um coração geneticamente dorido.
Rita Marrafa de Carvalho no Mundial à Parte