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Conto - De mãe para Filho

por Jorge Soares, em 14.03.15

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Hoje é com você que quero falar, meu filho, e é pra você que escrevo.
 
Casei-me aos vinte e dois anos, você sabe, mas o que não sabe é que tinha mentalidade de quinze. Como à época era o que se esperava, queria filhos. Engravidei logo, mas quis o destino que o feto não vingasse e, por motivos que agora não vêm ao caso, não engravidei mais. Seis anos depois, meu casamento com seu pai por um fio, uma relação sexual esporádica e... Olha aí, eu grávida! Não era mais o que eu esperava ou queria. Pensava em me separar, outros sonhos, outros planos, tudo adiado.  E a gravidez não foi fácil. Passei nove meses enjoando. Enjoava de tudo e de todos. Comidas, rostos, cheiros, cigarros, cores, pastas de dente, escovas de cabelos, até do enxoval do bebê enjoava. Pra você ter uma ideia, fui para a sala de parto enjoando. Masquei montanhas de chicletes e li montanhas de livros sobre como cuidar de recém-nascido. Quanto mais eu lia, mais me apavorava. Tinha certeza absoluta que não daria conta. E é sobre isso que quero lhe falar, de como uma mãe sem vocação conseguiu, afinal, ser mãe. 
 
Há 42 anos, o dia cinco de março caiu numa segunda-feira de carnaval. Nesse dia, às 18h50, colocaram em meu colo um rebento forte, cabeludo, que mexia e se remexia, parecendo não saber como se acomodar e, confesso, ao olhar pra você, meu primeiro, décimo, centésimo, milésimo e milionésimo sentimento foi de pânico. Eu era, então, uma jovem confusa e despreparada, mas tive a exata noção da imensa responsabilidade que depositavam em minhas mãos, tão desastradas esses minhas mãos! Nem preciso dizer o que foram os primeiros meses, um verdadeiro “deus nos acuda” e, não fosse minha mãe, aquela santa da sua avó, sei lá se nos primeiros banhos você não teria se afogado, ou engasgado com as primeiras mamadeiras. Mas você, meu filho, era forte e resistiu bravamente a todas trapalhadas de sua mãe, transformando-se num lindo bebê que parava as pessoas na rua, admiradas com sua formosura. Certo que meu excesso de medo gerou um excesso de zelo que, por sua vez, gerou uma criança excessivamente limpa e bem cuidada. Contudo eu me questionava: por que aquela sensação de perda? Cadê aquele amor na minha incondicional dedicação? Eu não deveria estar padecendo num paraíso? Que paraíso era aquele que mais parecia um suplício? Que tipo de mãe eu era? Acho que nem preciso falar daquele sentimento antipático e irritante chamado “culpa” que tomou conta de mim, né? Eu continuava lendo, agora tudo o que existia sobre psicologia infantil. E, de novo, quanto mais lia, mais culpa e responsabilidade sentia. Rezei para todas as Madonas que conhecia e olha que são muitas. Nenhuma delas me deu qualquer resposta imediata. Até que um dia... Um “insight”, finalmente uma luz! Descobri que, desde a gestação, havia estabelecido com você um laço de, de... Obrigação talvez? Um encargo? Qualquer coisa que queira, mas não de naturalidade, não de amor. Então resolvi seguir minha intuição, chutar o balde e mudar tudo. Comecei, transferindo a culpa que sentia para toda a literatura que os entendidos no assunto me fizeram engolir e doei toda aquela porcaria. Deixei que o amor encolhido sob a carga de responsabilidade e culpa aflorasse, e vi que era bom.
 
Mesmo assim, foi aos trancos e barrancos que fui desempenhando meu papel de mãe, muitas vezes de maneira equivocada.  Mas você, filho, com sua alma antiga e sábia, parecia compreender minhas limitações e, muito provavelmente, por trás dos meus erros e defeitos, via a sombra gigantesca daquele amor que se mostrava, agora escancarado. O tempo foi passando e eu acompanhando passo a passo suas dificuldades. Sua obstinação e perseverança na busca de seus objetivos. Chorei com você suas derrotas, vibrei com você suas vitórias.
 
Hoje, olhando para trás e revivendo esses anos todos, constato impressionada que você nunca, nunca, mas nunca mesmo, teve qualquer gesto de impaciência, qualquer palavra áspera para comigo ou seu pai. Suas decepções conosco podiam, por vezes, se refletir em seu semblante ou nos seus olhos marejados, mas jamais se traduziram em qualquer atitude minimamente agressiva ou grosseira. Só agora me dou conta, filho, do quanto você me ensinou a ser uma pessoa melhor. Com você, e por você, aprendi o valor da renúncia, o valor da luta honesta e boa. Foi por você que aprendi a ser valente, a encarar as dificuldades de peito aberto, a lutar corajosamente pela nossa sobrevivência material e emocional. Só agora, filho, me dou conta do presente maravilhoso que me deram ao cair da tarde daquela segunda-feira de carnaval. Talvez tanto enjoo fosse o disfarce da espera ansiosa pelo nosso encontro. Talvez eu soubesse, sem saber, que você viria para me transformar, para me ensinar o valor da generosidade, para me mostrar que a vida só vale a pena ser vivida se houver desafios. Filho, você é muito. Você é um ser humano precioso e raro, daqueles que, quando a gente encontra, nos fazem acreditar em nossa natureza divina.
 
Então, hoje, no dia do seu aniversário, quando deveria lhe presentear, concluo que tenho mesmo é que lhe agradecer. Obrigada por sua presença e carinho sempre constantes. Obrigada por sua bondade, pela sua compreensão e tolerância. Obrigada pelo seu belíssimo caráter e integridade. Obrigada por me fazer ter vontade de levantar a cada manhã. Obrigada pelo meu coração dilatado de orgulho e admiração. Obrigada por fazer sentir-me mãe, ainda que sem vocação. Devo a você, a alegria de ser.
 
Quando você nasceu, filho, uma melodia estava prestes a começar. No início a afinação dos instrumentos irritava meus ouvidos. Mas quando - enfim afinados - os primeiros acordes soaram, uma magnífica melodia encheu os ares. Seu compasso tem marcado o ritmo de nossas vidas desde então. Tenho certeza que ela continuará vibrando vida a fora, através de seus filhos, dos filhos de seus filhos e assim por diante, por toda a eternidade. 
 
Deus lhe abençoe.
 
Cecília Maria De Luca
 
Retirado de Samizdat

publicado às 20:26


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