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Porque: "A vida é feita de pequenos nadas" -Sergio Godinho - e "Viver é uma das coisas mais difíceis do mundo, a maioria das pessoas limita-se a existir!"
Marta não se dava conta do inferno em que ele vivia, tinha-o avisado que não o amava, tinha usado de toda a sinceridade antes de casarem e ele sabia que só casavam porque precisava da estabilidade que lhe podia proporcionar, não encontrava portanto a razão ou qualquer motivo para ele ter mudado tanto. Começara por querer saber tudo o que ela fazia, com quem saía, onde ia, a que horas regressava, e mostrava uma grande impaciência sempre que ela lhe dava respostas evasivas, só por não lhe apetecer estar sempre a explicar tudo, ou por não poder dizer o que lhe ia na alma.
Hoje, olhava para ele sentado no sofá junto à lareira, tinha desistido de sair, antevendo o rol de perguntas a que seria submetida e decidira ficar sossegada em casa, mas agora olhava-o com o lume reflectido na cara, parecia-lhe outro homem, aquele casaco de lareira que lhe comprara, ficava-lhe muito bem, dava-lhe um ar aconchegante, másculo e ela não resistia a olhá-lo.
Estava naquilo, fazia talvez uns bons dez minutos quando ele reparou e a olhou, ela desviou os olhos para o lume e ele pensou no que ela estaria a pensar, talvez a engendrar alguma mentira para lhe dizer que precisava de sair naquela hora, ou então a pensar como o detestava e como estava presa ao seu dinheiro. Devia odiá-lo por ser tão dependente, mas ela tinha aceite as condições, sabia que ele a amava e que estava disposto a tudo para a ter junto a si, por isso, o mínimo que lhe pedia era que estivesse em casa quando ele estava, nada mais.
Marta, viu que ele tinha retomado a anterior posição e voltou a olhá-lo, pensou que se ele não fosse tão frio talvez ela até o pudesse amar, hoje era um desses dias, sentia-se bem a olhá-lo, senti-lo ali, calmo e sereno, era isso que com o passar dos dias a tinha atraído, a sua calma, o nunca elevar a voz, a inteligência, a educação, e o porte imponente do seu metro e oitenta, mas as coisas não tinham corrido nesse sentido e por isso muitas vezes saía para não ficar ali a desejá-lo, tinha alturas em que se sentia descontrolada, sabia que se ele a abraçasse ela se renderia aos seus braços, mas ele nunca o fizera.
Nisto ele fechou o livro que lia e perguntou-lhe: Vais sair? Ao que ela respondeu, com a voz mais natural e suave que conseguiu: Não, hoje apetece-me ficar em casa.
Bem, nesse caso vou deitar-me, este livro do Lobo Antunes está a dar-me sono, até amanhã. Até amanhã respondeu Marta, sabendo que só o veria na manhã seguinte, já que sempre tinham dormido em quartos separados.
Enquanto se dirigia para o quarto, pensava em como só lhe apetecia agarrá-la e obrigá-la a fazer amor ali junto à lareira, esse desejo tornara-se tão forte que decidira sair de ao pé dela, não fosse Marta perceber o desejo que o invadira.
Quando Fabrício entrou, já Marta sentada à mesa da cozinha terminava o pequeno-almoço. Fabrício viu-a e ficou contente ao pensar que teria a sua companhia.
Cumprimentou-a, fazendo um esforço para que não parecesse seco nem ansioso, a primeira preocupação foi tentar não demonstrar sentimentos que a levassem a sair dali.
Marta olhou-o, e pareceu-lhe que tinha dormido mal, estava com um ar cansado, lembrou-se que também ela deveria estar assim, ficara na sala depois de ele se recolher até altas horas, não tinha sono e apeteceu-lhe ouvir aquele CD que tinha comprado na semana anterior, numa das suas saídas sem destino e com o único propósito de não ficar em casa ao pé dele, era o último disco do seu cantor romântico preferido, o Dear Heather do Cohen, e aos primeiros acordes de Go no more, pensou, no quanto a sua vida se tinha transformado, o que antes lhe parecia uma vida normal e estável, estava agora a revelar-se exactamente o contrário, começava a acreditar que gostava dele, ainda que tudo fizesse para combater os sentimentos que teimavam em assaltá-la, a voz de Cohen enchia o espaço à sua volta e ao som de Because of finalmente as lágrimas soltaram-se.
Cohen, já há muito se tinha calado quando ela percebeu o silêncio que reinava, tinha mergulhado em mil pensamentos e nem dera por isso, lembrava-se da curiosidade que sentiu em saber o que ele estaria a fazer sozinho no quarto, e como tentara espreitá-lo em vão, visto ele ter fechado a porta, ainda sentiu a tentação de bater, mas conteve-se.
Absorvida por estes pensamentos ouviu a sua voz: - Marta! Marta, que se passa? Estás bem? - Estou sim, respondeu. Desculpa, estava imersa em pensamentos parvos. - Alguma coisa em que possa ajudar, perguntou Fabrício. - Não meu querido, não podes. Deu-se conta nesse instante de como o havia tratado, mas agora nada havia a fazer, estava dito.
Fabrício tinha recebido aquele meu querido directo no coração, ela nunca tinha usado aquela palavra com ele, se bem que a usasse com alguns amigos mais chegados, mas com ele tinha imenso cuidado de não proferir qualquer tipo de intimidade ou carinho.
Atrapalhado, começou a tratar do café virando-lhe as costas, e os pensamentos da noite anterior começavam agora a martelar-lhe o cérebro. Recordava-se porque se tinha retirado mais cedo dando a desculpa, do Lobo Antunes lhe dar sono, uma mentira inocente que se ela o conhecesse teria logo detectado, ele adorava Lobo Antunes, jamais se imaginaria a adormecer lendo-o, e isso provava que ela nem sabia minimamente do que ele gostava. Quando chegou ao quarto não se conteve, chorou como uma criança infeliz, tal a desilusão que sentia com o rumo da sua vida, lembrava-se de lhe parecer ouvi-la junto à sua porta, mas imaginou-se a enlouquecer, o quarto dela ficava na ala oposta do seu, só poderia estar com alucinações.
O zumbido da chaleira da água para o café, trouxe-o de novo à realidade e com um olhar de soslaio verificou se ela ainda lá estava. Estava. Não se tinha mexido e sentiu-se contente por isso, talvez ela ficasse enquanto tomava o pequeno-almoço.
Enquanto se sentava, ela perguntou-lhe: - Desde quando é que o Lobo Antunes te dá sono? Ele não esperava aquela pergunta e nem tinha jeito para mentiras, decidiu no momento dizer a verdade: - Foi uma desculpa para me retirar, estava a custar-me estar ali contigo e não invadir o teu espaço, o Lobo Antunes é que pagou, mas não sabia que tinhas conhecimento do meu gosto por ele? - Mas tenho Fabrício, assim como de outros gostos teus, não devias ter-te retirado, ontem apetecia-me companhia.
Fabrício atónito, recebeu aquelas palavras como terra para um náufrago, sentiu uma leve esperança invadir-lhe o coração, mas logo recordou as palavras e ela não tinha dito que lhe apetecia a companhia dele, mas sim companhia, isso era plural, só lhe apetecia companhia e não devia estar com disposição de sair, ou então, nenhuma das amigas estava livre para a acompanhar.
- Fabrício! Ouviste o que eu disse? - Desculpa Marta, disseste que ontem te apetecia companhia, eu ouvi. - Mas era a tua, não era a de mais ninguém. - A minha? - Sim a tua, ontem apetecia-me a tua companhia.
Ela tinha sido clara, era à companhia dele que se referia, não de qualquer outra pessoa, agora o seu coração tinha disparado, e a custo disse: Ontem, quando estava no quarto ouvi música, estavas a ouvir o quê? - O novo CD do Cohen o Dear Heather que comprei a semana passada, respondeu. - Ah, esse romântico inveterado, não sabia que gostavas, é um disco que já saiu à algum tempo, talvez no início do ano, não é novo. - Sim, mas é o último e eu ainda não o tinha, como não me fizeste companhia, tive de recorrer a ele.
Fabrício pensava se as palavras que ouvia da boca da Marta seriam reais, não notava nenhum tom de brincadeira, seria esta uma estratégia para em seguida o meter no seu lugar? Não podia ser! Ela não o amava, isso era um facto, mas tinha sido sempre de uma educação extrema, estaria a falar verdade? Encheu o peito de ar e perguntou-lhe: Tens a certeza que era mesmo a minha companhia que ontem querias? - Era! - Desculpa a pergunta Marta, mas porquê? Ela ficou em silêncio enquanto o fitava nos olhos e ele ficou a olhar para ela à espera de uma resposta que não vinha, tinha uns olhos lindos, que muito raramente tinha oportunidade de ver tão perto e tão demoradamente, os seus olhares costumavam ser fugidios, mas agora, ela continuava a olhá-lo fixamente, sem demonstrar intenção de os desviar e ele pensou no quanto a amava, como lhe apetecia beijá-la. De repente, Marta mostrou intenção de se levantar, e ele pensou que devia ter desviado o olhar, ela devia ter pensado que ele a provocava e ia-se embora. Balbuciou uma desculpa, quando Marta se encaminhou na sua direcção que era a da porta da cozinha, ela, levou um dedo à boca em sinal de silêncio, chegada ao pé dele, parou, e perguntou-lhe olhos nos olhos e com a cara quase colada à sua: Ainda me amas Fabrício? Ele sentindo-se desfalecer murmurou: - Mais do que tudo na vida.
Marta, colocou as mão suavemente na sua cara, e ele sentiu o seu perfume inundá-lo quando ela o beijou.
Espreitador
Retirado de Rua dos contos
Imagem minha do Momentos e Olhares
Desencontro
Só quem procura sabe como há dias
de imensa paz deserta; pelas ruas
a luz perpassa dividida em duas:
a luz que pousa nas paredes frias,
outra que oscila desenhando estrias
nos corpos ascendentes como luas
suspensas, vagas, deslizantes, nuas,
alheias, recortadas e sombrias.
E nada coexiste. Nenhum gesto
a um gesto corresponde; olhar nenhum
perfura a placidez, como de incesto,
de procurar em vão; em vão desponta
a solidão sem fim, sem nome algum -
- que mesmo o que se encontra não se encontra.
Jorge de Sena, in 'Post-Scriptum'
Hoje desencontrei-me das palavras, há dias assim.
Bom fim de semana a todos
Jorge Soares