Saltar para: Posts [1], Pesquisa e Arquivos [2]
Porque: "A vida é feita de pequenos nadas" -Sergio Godinho - e "Viver é uma das coisas mais difíceis do mundo, a maioria das pessoas limita-se a existir!"
Imagem de aqui
Aylan Kurdi, é assim que se chama a criança da fotografia, Aylan o seu irmão Galib de 5 anos, a sua mãe Rihan Kurdi e o seu pai, estavam a fugir da guerra na Síria há meses, saltavam de cidade em cidade a fugir de uma guerra que teimava em os perseguir...O sonho da família seria chegar ao Canadá, onde supostamente tem família e onde não há guerras que expulsem as pessoas de suas casas.
Infelizmente o destino tinha planos diferentes para o pequeno Aylan e a sua família, a viagem terminou muito longe do Canadá, numa praia para turistas na Turquia, depois de que o barco em que tentavam chegar à Grécia naufragasse.. Aylan, o seu irmão e a sua mãe morreram afogados...
Hoje as fotografias e a vida de Aylan correram mundo, a sua imagem tornou-se um símbolo do desespero dos muitos milhares que fogem à guerra e à miséria e tentam fazer-se à vida... nada como uma imagem de uma criança que sofre para despertar consciências....
Para mim esta imagem é um símbolo que nos devia envergonhar a todos, que deveria envergonhar quem acha que os milhares de migrantes e refugiados não passam de oportunistas que só querem ir viver dos subsídios. Todos aqueles que pensam que se devem fechar as fronteiras para passar a mensagem de que não são bem vindos. Os políticos Húngaros que acham que permitir a passagem é incentivar a vinda de mais... vergonha mesmo.
Alguém imagina o desespero em que teria que estar esta família para se lançar assim aos perigos de uma travessia destas com os seus filhos de 3 e 5 anos?
Aylan morreu porque a sua família fugia a uma guerra que dura há anos, ninguém sabe quantos outros migrantes morreram até agora, mas calcula-se que sejam vários milhares só este ano... Entretanto a guerra continua.sem que ninguém faça nada para a parar... .se calhar a solução não é fechar as fronteiras, é fazer parar a guerra... Porque afinal, e como dizia algures um dos refugiados encalhados na Hungria, eles não querem chegar a lado nenhum, só querem fugir à guerra, se não houver guerra voltam para casa.
Jorge Soares
Quando os meus olhos se perderem em voos sem pouso, será hora de não ficar. Mas, antes, o deteriorar-se lento.
Primeiro, os fracassos, se instalando gradualmente. As mãos se tornando inúteis, sem saber para que sirvam. A boca esquecendo o mastigar. O corpo se repuxando em reflexos descoordenados. As fraldas colhendo um descontrole indigno. Os cabelos ralos enfeando o rosto inexpressivo. As pernas paralisadas. O banho dado por mãos alheias. Os nomes dos filhos e dos amigos embaralhando-se em idas e vindas cada vez mais idas. As histórias inventadas, as assombrações à luz do dia, os afetos irreconhecíveis. Longas horas de sono ruim. Outras tantas de olhos no teto. As mesmas frases, repetindo-se várias vezes. Um feto encolhendo-se em involução.
Assim será. Quando tudo em mim for cansaço e desespero, e eu me desintegrar como um corpo estraçalhado por feras. A cada pedaço arrancado, existirei menos pessoa, desfigurada, agonizante. A cada nesga mirrada de lucidez, invocarei um choro. Por mim. Por vocês. Para os deuses. Mas eles não ouvirão.
Antes, as tentativas. Comprimidos, lâminas, janelas abertas. Opções à inexistência vegetativa. Impedidas por vocês. Como se fosse melhor gastar o dinheiro que não têm, o tempo que não têm, o amor que não têm numa agonia que transforma em raiva e frustração as sobras de sentimento.
Depois, o afastamento. No quarto, nenhum de vocês culpando-se ou desculpando-se. Apenas uma mulher estranha, sentada a um canto, cuidando de mim. Fim dos hiatos cruéis. Da realidade escassa que aparecia para brincar de adeus. Nevoeiro. Eu já não estarei morando em mim.
Mas até que a impotência aconteça, há coisas bobas a cometer. Como a vida.
Escrever no vidro embaçado das janelas de chuva. Mudar a cor do cabelo. Tomar sorvete de pistache com castanhas. Tropeçar os olhos na lua, contar os paralelepípedos, tomar banho gelado no verão, balançar na rede.
Como mais tarde não haverá lembranças, quero sentir agora tudo o que ainda está em mim. Os abraços que me devo, as madrugadas de conversas estúpidas, as viagens desastradas com amigos imperfeitos. A melancolia dos natais e das páscoas e dos aniversários barulhentos. As bochechas dos bebês, o rabo dos cachorros. As comidas calóricas, a água com bolhas de gás. O chope com dois dedos de colarinho. O uísque com quatro pedras de gelo. Quero falar sobre sexo às gargalhadas. Fazer sexo às gargalhadas. Rezar. Pedir mais tempo para pecar desejos inconfessáveis.
Só então a penitência. Que será longa e minha. Incerta como os olhos perdidos em voos sem pouso.
Retirado de Samizdat
Ana refez as contas no caderno à sua frente. Definitivamente, devia um dinheiro que não tinha, como todo mês. Não, como todo mês, não. Desta vez, devia uma soma maior ainda e, para piorar, já tinha pedido todos os empréstimos que podia a bancos e financeiras. Jogou o corpo sobre a única poltrona confortável que ainda restava na sala. Ali, ficaria por horas encarando o asfalto iluminado apenas pelo poste de luz enevoada. De vez em quando, um farol mostraria seus olhos marejados, mas logo a escuridão voltaria a engolir aquele rosto em desespero. Com os pensamentos consumidos pelo medo, ela pensava dia e noite no que seria dos dois filhos pequenos. Já no último mês, tinha cortado da lista os remédios que usava. Passara a ir ao posto de saúde para receber uma tira contada de comprimidos que lhe permitiam passar o mês. O remédio do posto não adiantava muito, mas era o único jeito de controlar o diabetes sem onerar o orçamento.
Ela sentia fome. Havia tanto tempo que não consumia leite e carne que nem se lembrava a última vez. Quando fazia um bife para os meninos, aproveitava a frigideira suja com o gosto da carne de segunda e esquentava naquela gosma cheirosa um pouco de arroz. Comia o prato acanhado junto com um ovo frito ou uma banana prata. Ah, as bananas! Baratas e matam a fome.
Durante a semana, levava os dois filhos para uma escola pública do bairro de manhã bem cedo e seguia a pé para o trabalho. Morava razoavelmente perto, mas chegava cansada. No escritório, entre uma atividade e outra, tomava um grande número de cafés cheios de açúcar que a mantinham desperta e com menos fome até o final da tarde.
No trabalho, tinha um truque.
— Aceita um biscoitinho de polvilho, Ana? — oferecia uma colega.
— Obrigada! Você sabe que eu não resisto a esse seu biscoito! — respondia, esforçando-se para não pegar o saco todo.
— Eu trouxe um bolo de laranja que está uma delícia! Come um pedacinho... — oferecia outra.
— Meu Deus, eu preciso fazer uma dieta! Mas, antes, vou provar esse seu bolo que está cheirando tanto. — disfarçava.
E assim seguia enganando o estômago até a hora do encontro marcado com o arroz, a banana e o ovo.
Naquela noite, sentada na sala, olhando o asfalto negro rajado pela luz do poste, ela se lembrava da mãe e dos tempos em que se permitia comer bem, viajar, comprar coisas.
— A pior pobreza é a pobreza envergonhada — disse-lhe a mãe, uma vez.
— Como é isso?
— Tem gente que perde tudo, menos a dignidade. Preferem morrer a pedir um centavo, um pedaço de pão.
— Isso é orgulho — ela replicara.
— Não, não é. Aprenderam que quem pede é miserável, e não é fácil para ninguém se admitir miserável.
— Orgulho. E do pior tipo. — insistira.
— Ana, para quem já nasce pobre talvez seja mais fácil pedir ou aceitar. Mas você consegue imaginar o que significa para uma pessoa que já teve de tudo ter que pedir um pouco a cada um?
Nunca havia imaginado. Até agora. Ninguém sabia da sua situação. O marido tinha morrido três anos atrás, deixando para ela os filhos, a vida complicada e uma casa velha. Quando quis vender a casa, esbarrou na realidade: não valia nada. Ia tirar o teto dos filhos a troco de uns três ou quatro meses de aparente tranquilidade. Foi quando tomou o primeiro empréstimo. Lembrou dos cartões sem crédito, jogados no fundo de uma gaveta da cozinha. Lembrou também que, na véspera, havia usado a última folha do talão de cheques. O banco lhe negara outro talão.
Alugo quartinho dos fundos com cama de solteiro/guarda-roupa. Banheiro compartilhado com a casa. APENAS MOÇAS OU SENHORAS.
|
De madrugada, pela primeira vez, em meses, ocupou-se de outra coisa que não o asfalto. Com as mãos rápidas, esvaziou o quartinho, limpou paredes, chão e teto. No dia seguinte, na volta do trabalho, conseguiu fiado um galão de tinta branca, verniz, um rolo de cabo, um alicate e pincéis de vários tamanhos. Dedicou-se à pintura e à arrumação até que amanheceu o sábado, dia em que esperava candidatas. Na cama de solteiro, colocou um jogo de lençóis que estava guardando para os filhos usarem no Natal, rezando para que ninguém prestasse a atenção ao desenho de renas. Antes de sair, jogou no chão, ao lado da cama, o tapetinho persa falso que havia tirado do seu quarto e o travesseiro macio que também lhe pertencera até a véspera. A título de requinte, pendurou a chave do quartinho num chaveiro bonito que a empresa dera de presente aos funcionários no início do ano. Queria impressionar as moças e senhoras.
Às quatro e vinte da tarde, nenhuma candidata havia aparecido. Os meninos brincavam na vizinha, como todos os sábados, e de lá só voltariam depois de compartilhar um lanche farto com a filha do casal. Com a desculpa de que a garotinha precisava companhia, os dois compreendiam a miséria de Ana e ajudavam sem fazer alarde. O que será que eu fiz de errado? — pensou, retorcendo as mãos e pensando nas moças e senhoras que não tinham aparecido. Desesperada pelo dinheiro investido, sentou-se na cama de lençóis de rena com o jornal do dia entre as mãos e chorou sem freios toda a sua desgraça. Quando terminou, soluços suspirados e uma dor de cabeça terrível lhe faziam companhia. Mecanicamente, pousou os olhos sobre o jornal molhado de lágrimas e avaliou o seu anúncio. Nenhum defeito. Preço justo. Bairro tranquilo. Não sabia mesmo o que tinha dado errado. Foi quando seus olhos desviaram-se para a direita, um pouco mais para o alto da página. Leu, curiosa, o anúncio que se destacava dentro de um retângulo grande, em negrito. Naquela noite, e na noite seguinte, ao invés da poltrona da sala, do mesmo asfalto negro, do mesmo poste e dos faróis ocasionais, Ana ocupou-se mais uma vez em fazer mudanças no quartinho dos fundos.
Segunda-feira, na hora do almoço, levou a um ourives no centro da cidade a correntinha de ouro com a medalha da Virgem que nunca saía do seu pescoço, as pulseirinhas de ouro das crianças, de quando eram pequenas, e quatro alianças grossas de casamento, também de ouro: a dela, a do marido e as de seus pais. Saiu apressada da loja para o banco, onde pagou as três contas vencidas do telefone que, por sorte, não eram assim tão altas. Depois, com o pouco que restou do já tão desfalcado dinheiro da luz, voltou ao jornal e colocou outro classificado.
Na sexta-feira à noite, após mentir à vizinha que precisava fazer hora extra e pedir-lhe que deixasse as crianças dormir em sua casa, sentou-se na cama do quartinho dos fundos, cheirando a sabonete e bala de hortelã. Ao seu lado, o rolo de pintar de cabo, os pincéis, o alicate e um martelo que usara para consertar e acrescentar algumas coisas ao aposento. Tudo brilhava imponente, com um novo polimento.
Por volta das 22 horas, o telefone sem fio, recém-adquirido, tocou pela primeira vez, produzindo um som engraçado, abafado pelas paredes agora revestidas com placas grossas de cortiça:
— É a Viuvinha? — perguntou uma voz ansiosa.
Enquanto respondia, sorriu e alisou sobre a cama os objetos reluzentes. Em seguida, voltou os olhos para as letras em negrito no jornal do dia:
Viuvinha fogosa!
Venha me conhecer!
Prazer com muita dor!
Recebo em casa, depois das 22h, em ambiente de total discrição. Apenas rapazes e senhores. Fone: 3232-3232
|
Retirado de Samizdat
Imagem de Fátima Carvalho
"Tenho um marido maravilhoso e uma filha de 5 anos maravilhosa, mas .....Há 4 anos iniciamos o processo de adopção, e a seg. social exigiu-nos um quarto e foi feito um quarto com duas camas. A minha filha diz ás amigas que a irmã "morreu", sem nunca lhe falarmos nisso, pede a deus na sua oração "Jesus dá-me uma mana". E andamos nisto há quase 4 anos. Só queremos uma criança dos 3 aos 6 anos. A seg. Social diz que não há. Será possível? Isto é um desespero!"
O Texto acima chegou-me via email, é de facto um despero, eu sei, passei por isso duas vezes. Será possivel?, sim, é possivel, a verdade é que não há em Portugal crianças para adoptar, não há, e não vai haver...e as pessoas, o país todo tem que interiorizar essa ideia.
A ideia de que o problema da adopção é a muita burocracia é uma enorme mentira, a espera dos candidatos tem muito pouco a ver com a burocracia ou com a morosidade dos processos, tem sim a ver com o facto de haver de quatro mil candidatos à adopção e umas poucas centenas de crianças para adoptar.
No outro dia uma noticia fazia referência a que metade dos candidatos desiste do processo após a primeira sessão de formação, sempre tive alguma desconfiança sobre a formação para a adopção, é difícil entender que seja necessária formação para se ser pai, agora fiquei a pensar que se calhar esta faz mesmo sentido, mais não seja porque esclarece as pessoas sobre a realidade das coisas... e separará o trigo do joio, quem quer mesmo ser pai não desiste só porque tem que esperar muito tempo.
Falta à nossa sociedade esclarecimento a todos os niveis, há dezenas de programas sobre adopção, muitas tardes, muitas manhãs, muita lágrima fácil, muito coitadinho, muitas coisas, mas o esclarecimento é zero.... está na altura que a seguramça social, os jornalistas, os responsáveis dos programas, olhem para este assunto com olhos de ver... e que façam o seu papel de informadores, já é tempo de que terminem os gritos mudos e o desepero de tantas famílias.
Jorge Soares
Um destes dias recebi este email:
"Caro Jorge, descobri o seu e-mail no seu blog. Parece-me uma pessoa muito bem informada sobre esta temática (a adopção).
Eu e o meu marido, fizemos o nosso processo de adopção correctamente, através da Seg. social e estivemos quase cinco anos à espera que o telefone tocasse. Temos a viver connosco duas irmãs já fez um ano. Quando vieram viver connosco, tinham sete e quatro anos. Recentemente, fomos à audiência para a adopção plena e qual não é o nosso espanto, quando o juiz nos diz que por ele estava tudo muito bem, mas que no nosso processo falta um documento - o da autorização dos pais biológicos - e que portanto tinha de pedir ao tribunal onde foi decretado que as crianças iam para adopção, que verificasse se se tinha extraviado, senão teria de mandar a GNR ir à procura dos pais biológicos para obter o seu consentimento!!!! (nesta altura do campeonato!).
Ficámos em estado de choque, mas com esperança de que o tal documento aparecesse, parecia-nos irreal que a incompetência ocorrida fosse para além do extravio de um documento - como é que o juiz original pode ter decretado a adopção e a seg. social ter-nos entregue as miúdas, sem existir o tal papel??!!! No entanto, agora não sabemos em que pé estão as coisas, porque o processo está em segredo de justiça, e não o podemos consultar, nem acompanhar que diligências estão a ser tomadas! Ficamos assim com a nossa vida em suspenso sem saber se neste momento estão a relembrar aquela senhora de que teve dois filhos, sem saber qual a reacção dela... isto se a encontrarem, e se não a encontrarem? quanto tempo levam a desistir de procurar? quanto tempo vamos ficar à espera, admitindo que no fim tudo vai correr bem?
Desculpe o desabafo, nem o conheço, mas não conheço ninguém que tenha adoptado, e parece-me que a nossa situação é absurda,......."
Quando terminei de ler o mail fiquei com um nó na garganta, porque eu sei a dor que uma situação destas causa,..eu sei a dor destes pais, eu sei, passei por isso....... mas já falarei disso, para já deixo-vos com este apelo desta mãe, em forma de reflexão.
Agora só falta mesmo que encontrem os senhores, que estão há anos sem ver as crianças, e eles decidam que não autorizam e que depois vão acampar para a porta do tribunal e levem a comunicação social atrás.
Há coisas pelas que as pessoas não deveriam ter que passar, e a dor da perspectiva de podermos perder um filho é algo que definitivamente ninguém merece passar, e muito menos assim, pela estupidez das pessoas...
Jorge Soares
PS:Email copiado com autorização, alterei pequenas coisas de modo a evitar a identificação de pessoas e crianças.