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Conto - As seis notas

por Jorge Soares, em 11.06.16

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Não sabia o que vestir, então deixou que sua mãe a ajudasse. Reviraram as roupas do velho baú até encontrarem algo apropriado para a ocasião daquela tarde: um velho vestido de tafetá, mas de um azul bonito e lustroso.

 

— Teu pai ficava doido quando me via socada nesse aqui. Eu faço um arranjo ligeiro e tu vai entrar nele como se tivesse sido feito pra tu — diz a mãe, visivelmente orgulhosa.

 

— Anda, Veralda, avia! Vai te assear que eu vou dar uns ponto no vestido, depois a gente pinta a tua cara pra te livrar dessa cor de cera, minha filha.

 

Coordena os serviços, a mãe. Tem ela o pé nu e de unhas feias posto sobre o pedal da máquina de costura. Uma mão acaricia o tecido que fede à barata enquanto a outra busca por tesoura e linha.

 

Veralda apressa-se em não decepcioná-la e corre até a cozinha, onde apanha sobre o jirau um pedaço de sabão de coco e uma toalha. Caminha aos pulinhos até o banheiro improvisado com palhas de carnaúba, posto estrategicamente ao lado da cacimba. A água fresca banha seu corpo e Veralda se esquece do calor e das obrigações, pensa nas belas bonecas que ganhará e esfrega a cara com força, como se quisesse se tornar outra. Experimenta o cheiro bom do sabão e lambe sua espuma. Não parece coco.

 

Quer estender o banho, mas seus braços finos não aguentam puxar mais que três baldes. A aspereza da toalha quase fere sua pele marcada pelas surras e quedas do cajueiro.

 

— Mãe, bota mais — suplica Veralda diante do espelho, ao ver seu rosto, pela primeira vez, maquiado. — Eu tô bonita, num tô? — Pergunta a filha.

 

A mãe responde com um muxoxo e se ocupa em desembaraçar os cabelos cheios de piolhos e carrapichos.

 

— Nem teus irmão homem tem uma cabeça sebosa como a tua, cunhã. E para de se bulir senão eu te dou um cascudo, desinfeliz — repreende a mãe.

 

Mas Veralda nada escuta. Mira-se no espelho e sonha em ser a princesa que um dia vira em uma revista que sua irmã mais velha trouxera de Fortaleza. Jamais fora à capital do estado. Nem ela, nem seus pais ou seus outros irmãos. Pareciam todos condenados a morrer ali, entre Brejo Santo e São José do Belmonte. Mas, a sorte de Veralda estava fadada a mudar ainda naquela tarde. Teria um quarto só seu e dois bambolês, um amarelo e outro azul. Seria mais rica que qualquer menina.  

 

— É essa aqui? — pergunta o estranho, de aspecto repugnante.

 

O homem segura a menina por um dos braços e verifica atrás das orelhas, também dentro da pequenina boca. Talvez procure por feridas, como faria o comprador de um animal.

 

— É essa aí sim, é bonita, num é? — cintilam os olhos da mulher, orgulhosa por ser boa parideira.

 

— Essa menina tem mesmo só onze ano? Seu Dosinho só gosta das novinha. A sua cabrocha aqui parece mais velha. — desconfia da mercadoria, o atravessador. Sabia o que lhe aguardava caso pagasse mais caro por algo que não valesse cada centavo.

 

— Tem mais de onze não, Juarez. É que essa aí come demais. Ou me livro dela ou não crio as outras três pra ficarem assim, vistosa que nem ela. E tá aqui a certidão de nascimento — apresenta a mãe o papel carcomido, o que abona sua retidão em transações comerciais. — Se quiser, pode levar pro Seu Dosinho em pessoa conferir o documento.

 

Após guardar o papel no bolso de sua calça brim encardida, o homem retira a carteira — cuidadosamente posta entre o cós da calça e seu púbis — e sorri para Veralda.

 

— O acertado foi seiscentos reais, num foi, Dona Verbênia? Pois tá aqui cada centavo, a senhora já tinha visto uma nota de cem? É bonita, num é?

 

A mulher acaricia cada uma das cédulas, enquanto seu cliente traz para junto de si o resultado de sua compra.

 

— Deseje felicidade pro Seu Dosinho, viu, Juarez. E Diga pro Sargento Cardoso que Valfredo não vai poder ir no sábado porque ainda tá cum dor. Mas mando o Valter no lugar dele e faço um abatimento.

 

A mulher ri satisfeita ao sentir as seis notas de cem reais roçarem-lhe o mamilo rijo. Molha-as de leite.

 

— Mãe, eu não quero ir — diz a menina ao libertar-se das mãos de seu comprador e correr até sua cachorra. Abraça a cadela prenha como quem procura o carinho de uma boa amiga. — Eu quero ver os cachorrinho da Pidoga nascer. Depois que ela parir, a senhora pode me mandar pro Seu Dosinho.

 

Nervosa, a cachorra balança o rabo. Seus olhinhos castanhos molhados pelo choro da menina que ama, ficam apertados. Se soubesse o que se passa, morderia esses dois infelizes que as separarão para sempre, Veralda e ela, e que também se livrarão de seus filhotes antes mesmo que eles desmamem.

 

A mãe, extremamente constrangida, toma a filha para si. Paciente, como só as mães sabem ser, seus olhos reluzem enquanto ela diz:

 

— Deixe de besteira, Veralda. Vá logo com o Juarez. Pra que tu quer ver os filhote da Pidoga? Que serventia tem isso? Se preocupa em fazer logo um teu, pensa direito, ou tu num é minha filha?

 

Muito séria, Veralda para de chorar e entrega sua mão a de Juarez.

 

— Eu preferia ser filha da Pidoga — diz, vingada, antes de partir.

 

 

Emerson Braga

 

Retirado de Samizdat

publicado às 21:13

Conto - O reverso da crisálida

por Jorge Soares, em 30.04.16

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E então um dia a Natureza condoeu-se daquela fraca borboleta.

 

De asas mutiladas por homens repletos de altruísmo, resolveu retornar ao purgatório casulo a fim de tornar-se magra, mas tolerável lagarta. Ainda hoje mastiga, autômata, seu insosso maço de folhas secas.

 

Odiava o modo como meu pai me olhava. Aquele pestanejar de pálpebras e o quase imperceptível balançar de cabeça ― que oscilava entre a compaixão e o desapontamento ― eram o meu regime. Ele me condenava por eu não ter herdado a macheza atávica que me havia sido destinada. Meus gestos tornavam os corredores de nossa casa escorregadios, pegajosos, imundos. Nada que eu fizesse para agradá-lo surtia efeito. Meus irmãos eram os varões. Eu a varíola.

 

Desdenhosos lacaios da aversão que papai me dirigia, os espelhos condenavam meus olhos, o som de minha voz e os pensamentos que eu havia alcunhado secretamente de sombrios. O eu refletido era de um sarcasmo aterrador, ria de mim com uma paixão violenta. Por ser meu oposto, era o desejado filho, aquele que não possuía pensamentos sombrios.

 

Eu sofria. E minha dor era um minotauro que me perseguia por infinitos corredores de dúvida, culpa e negação. Sempre que eu cedia aos meus proibidos impulsos, mais próxima espreitava a fera mitológica. Seu espectro grotesco afugentava os corpos nus e de masculinidade hiperbólica que vagavam por meus deslizes. Na equivocada matemática de meu corpo, cabeça, tronco e membros resultaram em um somatório obtuso. A aritmética de minha identidade adicionou-me, subtraiu-me, multiplicou-me, dividiu-me, potencializou-me e extraiu minhas raízes. E, no final, resultei em um total estéril.

Descobri ainda em minha juventude que eu não era nada. Por isso meu pai quase não me via, e os espelhos tampouco me enxergavam sem desdém.

 

Leprosos, diabéticos, hemofílicos, todos os mazelados despertavam uma mórbida inveja em mim, o anseio de ser um deles. Eu amava os pontos cardeais esculpidos sobre a topografia da dor. A convalescença contínua permite que os doentes sejam tratados com misericórdia. Mas, ninguém cuidaria de mim. Pessoa alguma se apiedaria das pústulas assintomáticas de minha vergonhosa doença, meu desequilíbrio secreto, meu mal sombrio.

 

Quantas tentativas infelizes, tantas investidas em inúmeras religiões. E nenhuma foi capaz de adormecer minhas madrugadas em claro. Eu era a serpente, carregada de peçonha, que secretava muco diante da serena pureza de meus bons pregadores. As orações misturavam-se ao meu execrável orgasmo, e Deus não permitia que eu pensasse em amor.   

 

Prostrado diante da humilhante condição de ser quem ― contra o meu próprio arbítrio ― eu era, resolvi tornar-me outro. Um outro ao qual a óptica paterna pudesse encarar, sem constrangimentos. Um outro que mimetizasse aquele que vivia no interior do espelho.

 

Arquitetei uma nova identidade. Adquiri o método que, biologicamente, não me havia sido transmitido. Não sei bem se resultei em um ser humano feliz. Mas, ora! De que vale a felicidade quando ela chega dentro de uma garrafa, solta no remoinho? A felicidade é privilégio daqueles que não temem as moléstias da alma. Eu temo.

 

Ajoelhada ao meu lado, diante do altar, exibo a mulher que sitiará meus vícios e me parirá filhos saudáveis. Enquanto meu pai me observa com ares de absolvição, sou acometido por um irrefreável pensamento sombrio. Nego-me a abater-me diante dele. Mas, o que importa agora? O pensamento é uma mácula que os olhos não veem. Venci-me. Derrotei-me. Logo estarei casado.

 

Que moço simpático, que rapaz gostoso é esse padre!

 

Troquem-se as alianças. Amém.

 

Emerson Braga

 

retirado de Samizdat

publicado às 22:20

Conto - Dois meninos

por Jorge Soares, em 05.03.16

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Quando eu era criança, minha mãe adotou um velho. Ele não era diferente das bruxas que assombravam meus sonhos e muito menos de como eu imaginava o homem que havia ― em minhas inventivas crenças pueris ― carregado em um saco os amigos dos amigos de meus amigos.

 

Conviver com ele, ao menos nos primeiros dias, foi como dividir a casa com um defunto. De carnes engelhadas e estrutura óssea comprometida, o homem não apresentava nenhuma ameaça, e mesmo assim eu o temia. Vê-lo dormir de olhos semiabertos e boca enviesada era como assistir sozinho a um filme de assombração. Sob a pele sem viço de meu assustador irmão adotivo moravam todos os lobisomens, vampiros e fantasmas que passeavam por minha imaginação de menino do interior, nascido em uma cidade que levava o mesmo nome de seu único cemitério: Assunção.

 

Eu nunca havia convivido com alguém tão parecido com a morte até mamãe recolhê-lo da rua, depois de encontrá-lo perdido na praça, sem saber quem era ou de onde vinha. Ninguém o conhecia ou sabia dizer como ele havia chegado ali. De roupa alinhada e aspecto bem cuidado, não parecia um mendigo. Surgira da noite para o dia, como uma aparição. Não trazia bagagem, identidade ou lembrança capaz de revelar sua origem.

 

Mamãe resolveu levá-lo à nossa casa para livrá-lo do assédio dos curiosos e oferecer-lhe o desjejum.

 

― Eu não quero ser comido! ― orei, sob a máquina de costura, agarrado ao burrinho de gesso do presépio. ― Só te devolvo pra Jesus quando esse papão for embora.

 

Mas o velho tudo recusou. Não quis mingau de farinha de milho e muito menos roer meus frágeis ossinhos. Apenas chorava e queixava-se de saudades, sem saber do quê ou de quem.

 

Os dias passaram. Papai e mamãe, órfãos desde muito jovens, afeiçoaram-se àquele senhor que havia roubado minha paz de menino. O velho, apesar de quase não falar, procurava a companhia dos adultos e recusava a minha. Já parecia acostumado à rotina da casa, sempre tão silenciosa e estagnada, submersa na ausência do tempo. Enquanto mamãe bordava toalhas e papai cuidava da lavoura, eu me distraía fugindo do velho que se arrastava da sala à cozinha feito um caramujo. Lentidão. Viscosidade.

 

Com o tempo, meu temor transformou-se em curiosidade. Gostava de vê-lo mastigar fumo, enquanto espiava pela janela do quintal como se buscasse a mais completa cegueira. O velho esvaziava-se através dos olhos compridos e, como suas lembranças, aos poucos deixava de existir.

 

Uma tarde, tomei coragem e dele me aproximei com meu burrico de gesso, que ofereci em um gesto de paz. O velho esfregou os dedos calejados sobre a imagem e arregalou os olhos como se algo em sua alma se iluminasse. Perguntei:

 

― O senhor se lembrou de alguma coisa? Sabe de onde veio?

 

― Não. E você? Sabe de onde veio? ― respondeu-me com a mesma pergunta, enquanto cavalgava o burrinho sobre meus cabelos.

 

Não. Eu não sabia.

 

Enfim, percebi que não éramos tão diferentes. Sem pedir licença, sentei-me em seu colo e dormimos juntos a tarde inteira, no balanço da cadeira que ia e vinha, mas que não nos levava a lugar algum, preguiçosa. Creio que foi naquele mesmo dia que o velho se esqueceu de se esquecer e também se tornou menino.  

 

Emerson Braga

 

Retirdo de Samizdat

publicado às 22:07

Conto - As Vitalinas

por Jorge Soares, em 06.02.16

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Cícera acordou sobressaltada e agarrou o peito como quem segura um pássaro ferido. Marilda, deitada na cama ao lado, riu do desassossego da irmã e fingiu pouco interesse ao perguntar se havia sido o mesmo sonho. Sentando-se com dificuldade no gasto colchão de estopa, Cícera confirmou a suspeita fraterna com um aceno de cabeça. O pesadelo que perturbava suas poucas horas de sono havia se repetido.

         ― Ciça, um dia tu me conta que diacho de sonho é esse? ― quis saber a mais jovem das idosas, enquanto calçava as sandálias que mal enxergava com seus olhos miudinhos.

         ― Te preocupa com o manto da santa, Dindinha. Depois do café, vou preparar o altar. Pirru já chegou pra varrer a casa e passar o pano? ― perguntou incomodada, certa de que o rapaz que lhes ajudava nos afazeres domésticos havia se atrasado.

         ― Sei não ― respondeu Marilda esfregando as pernas. ― Acordei com teus bodejo. Anda, te sacode que o dia hoje vai ser comprido.

         Na pequena Cabo Amaro, todos conheciam e respeitavam as irmãs Alvarenga, últimas descentes de uma família que emprestava o nome à pracinha da cidade. Cícera e Marilda eram tão velhas quanto as lendas locais, amalgamavam-se ao folclore e causos transmitidos às novas gerações de contadores de história. Muito se falava sobre a natureza dócil e solteirice de ambas, mas poucos sabiam a verdade.

 

 

 

Emerson Braga

 

Retirado de Samizdat

publicado às 21:13

Conto - A primeira vez

por Jorge Soares, em 28.11.15

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Há tempos ele não se sentia tão bem. Saltou da cama feito um felino e se arrastou preguiçoso até a cozinha. A mãe cantarolava Alcione enquanto amanteigava torradas dormidas e vigiava o café sobre a única boca que ainda acendia.

 

Sentou-se à mesa meio acordado e esfregou a cara. Sorriu com seus novos dentes de domingo e perguntou se ainda havia Nescau.

 

Satisfeita do próprio talento em realizar pequenos desejos, a mulher retirou o achocolatado de um esconderijo sob a pia e misturou-o a leite em um copo grande e largo.

 

         ― Toma ― disse ela, deslizando a bebida sobre a mesa.

 

         ― Tu é a melhor, dona coisinha!

 

         ― Gosto de te ver assim, faceiro como quem acabou de chegar do circo ― alegrou-se beijando a testa do filho que nunca sorria, sempre sisudo e arredio, distante. Pensou em perguntar a razão do contentamento, mas preferiu preservar a intimidade do garoto.

 

         Enquanto comia, encarava o vazio como se admirasse o rosto de uma pessoa amada. Havia paixão em seu semblante, algo maravilhoso de se ver refletido no rosto de um filho, mesmo que a razão da euforia seja um mistério.

 

         Finalmente se tornaria homem. Todos os detalhes já estavam arranjados desde sábado à noite quando, sorrateiro, aproveitara a ausência dos pais ― que haviam ido a um baile no clube dos sargentos ― e invadira o quarto do casal.

 

         ― Isso aqui vai servir pra eu não fazer feio. Ela vai adorar ― comemorou, após revirar a gaveta do pai. Aquele domingo seria inesquecível, relembraria dele por muitos anos.

 

         Não queria parecer ridículo. A oportunidade faria cair por terra os dias de constrangimento. Imaginava como seria cada instante, a sensação mágica de alegria, o prazer elevado ao mesmo patamar que o experimentado pelos deuses. Vacilar não era uma opção, pois chance mais perfeita não aconteceria.

 

         ― Os pais dela viajaram e só voltam na segunda. Ela tá sozinha! Será demais! ― comemorou contente, lambendo o bigode de Nescau que havia se formado sobre o buço.

 

         Após o café da manhã, tomou um banho demorado. Cantou todas as músicas que conhecia e brincou de fazer penteados de espuma. Antes de desligar o chuveiro, foi ninja, agente secreto, mago, super-herói. Escovou os dentes e penteou irritado os cabelos sem jeito. Precisava estar apresentável, impecável. A ocasião solicitava esmero, preparação. Vestiu a melhor roupa que tinha e mirou seu reflexo como quem se despede da infância.

 

         ― Hoje, eu não sou estranho. Hoje, eu não sou feio. Hoje, eu sou o cara ― repetia o mantra enquanto, desengonçado, imitava poses de fisiculturistas. Antes de deixar o quarto fez uma rápida oração, recolheu da cama a mochila e ganhou a rua.

 

         Um repentino frenesi tomou conta de seu corpo: primeiro sentiu como se levitasse, depois as pernas pareceram-lhe tal qual chumbo. Dois quarteirões antes de chegar à casa da menina que lhe umedecia os sonhos, recostou-se a um poste e fumou pensativo. Quis desistir, mas a vontade de provar que não era nenhum pobre coitado fora mais forte. Com a ponta do tênis esmagou a guimba ainda em brasa e seguiu caminho.

 

         ― A partir de hoje minha vida será diferente. As garotas do colégio me respeitarão. Vou ser o cara. O cara! ― com esse pensamento afastou os receios e criou novo ânimo.

 

         A rua estava vazia. Apenas dois ou três carros estacionados rente às calçadas e alguns cães que perseguiam uma cadela no cio. Festejou contido. Seria melhor que ninguém o visse entrar na casa. Forçou o portão, que estava trancado, e resolveu pular o muro.

 

         ― Vou pegar ela de surpresa! Quero ver só a cara que vai fazer... ― riu para si mesmo, excitado, enquanto escalava o poste e saltava para dentro do jardim. Em pouco tempo chegou à sala. Na televisão, um comercial sobre um shake milagroso exibia mulheres extremamente magras distraídas à borda de uma piscina.

 

         ― Como você entrou aqui, seu retardado?! ― perguntou ela com surpresa e desprezo antes de receber um tiro certeiro no peito.

 

Emerson Braga

 

Retirado de Samizdat

publicado às 21:13

Conto - Da graça e naturalidade de ser veado

por Jorge Soares, em 04.07.15

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Acredito que poucas pessoas saibam como o substantivo “veado” tornou-se o desagradável adjetivo que comumente é utilizado para que certa leva de pessoas se refira a homossexuais masculinos, como se estes não possuíssem um nome de batismo. Bem, é sabido que gente preconceituosa e intolerante geralmente é desprovida de discernimento e quase não possui criatividade alguma, portanto, precisa recorrer à observação de seus limitados, enrijecidos e metódicos cotidianos a fim de edificar analogias capazes de realizar e projetar no mundo suas fobias sociais.

 

 É bem provável que o termo “veado”, quando empregado para se referir a homens gays, tenha sido utilizado pela primeira vez em alguma floresta europeia ou norte-americana, onde ainda hoje o animal em questão é caçado em grande escala. Fiemo-nos à hipótese de que um determinado caçador ― valendo-se de sua generosa e infinita estupidez ― estivesse em uma manhã qualquer de domingo a satisfazer suas sádicas taras mortuárias por meio da caça ao veado, o animal, não pelo valor de sua carne, mas pelo sabor do troféu. Digamos ainda que, durante a caçada, este homem de hábitos prosaicos, irredutível em sua colossal macheza, tenha conseguido se surpreender com uma cena extremamente corriqueira na natureza, quando os veados se encontram em época de reprodução: Os machos têm inúmeras, repetidas e vigorosas relações sexuais entre si. Isto acontece porque, no período dos cios, os veados machos produzem muito líquido seminal. E, como não são todos que conseguem acasalar, eles se livram do sêmen acumulado nos testículos montando uns sobre os outros, a fim de aliviar a carga de esperma. Acontece que, mesmo após o coito, muitos machos acabam criando laços afetivos e convivendo como um casal. Somando isso aos trejeitos delicados e graciosos do animal, o apelido foi vinculado à imagem do homem gay.

 

 Imagine quantos pensamentos devem ter passado na conservadora e e perversa mente de nosso viril caçador que, a fim de restabelecer a ordem natural das coisas, deve ter se especializado em caçar veados machos que praticassem sexo com outros de mesmo gênero. Quem sabe a prática tenha ganhado adeptos, deixado as florestas e chegado não só às pequenas e distantes cidades do interior, pois também os grandes centros ― que, pensava-se, eram povoados apenas por homens de mente aberta e pouco inclinados à caça predatória ― desenvolveram gosto pelo hediondo esporte.

 

 No meio deste processo de injustificável carnificina, o veado antropomorfizou-se, mas não adquiriu os direitos reservados a todos os seres humanos. Como seus colegas selvagens, o veado humano só pode existir até segunda ordem. Todavia, em desacordo com a regra que limita a matança dos veados quadrúpedes, para os bípedes não há temporada em que sua caça seja proibida. Quando não são assassinados à custa de armas ou espancamentos, abatem-nos com o gesto doloroso, com a palavra agressiva e contumaz.

 

Não somos veados. A palavra não nos agride, é um belo animal, mas não somos veados. Ninguém pode usar da mesma arbitrariedade sobre nossas vidas com a qual caçadores conduzem o covarde abate destes animais.

 

 Por todo o mundo, aquele que persegue e agride impiedosamente outro ser humano, muitas vezes é chamado de “animal”. Errado. Animais não matam por capricho, ignorância ou diversão. Tirar a vida de alguém ― ou privar uma pessoa de sua liberdade de ser ― é uma atitude essencialmente humana. Onde houver segregação, atrocidades, ou gestos de covardia, não se enganem, lá haverá não um animal, mas um homem. Seja ele veado ou não.

 

Emerson Braga

 

Retirado de Samizdat

publicado às 21:13

Conto - Quando Madalena Chama

por Jorge Soares, em 29.11.14

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Respiro. De olhos fechados, respiro. Com o fim da tarde, batem-me à porta as obrigações da noite. Antes de acender os castiçais de porcelana, sento-me diante do espelho e procuro enxergar minha face refletida na superfície enegrecida pela rotação do tempo. Porém, nada vejo. Apenas uma lembrança indelével, um paladar experimentado, uma faca ameaçadora no meio de minhas pernas, mas nunca meu rosto. 
 
Tendo já o quarto iluminado, surge-me o semblante do rapaz que há tempos eu fora: olhos inexpressivos, lábios cerrados, alma arisca e pensamentos ligeiros. O reflexo atira-me em um túnel de cores neutras e conduz-me à teimosa viagem em busca do que não pode ser revivido. 
 
Crianças correm no terreiro, um cheiro de café-com-pão flutua no hálito da casa-grande, o irritante som de uma rede que balança no alpendre. Será meu avô? Procuro retornar à frente da penteadeira, mas já me encontro mergulhada no inevitável espetáculo de reminiscências traídas. Repentinamente, outros sons. As melodias chegam como um grito da natureza em meus tímpanos, parecem pardais que gorjeiam, gorjeiam. “Jesus, Jesus”, alguém grita meu antigo nome do outro lado da cerca e eu me escondo no mato. Um aroma de eucalipto inunda meu peito e uma caranguejeira se retorce dentro do fogo. Se eu ficar, papai me capa. Atiram meus pertences dentro de uma carroça. Estou partido. Estou partindo. Adeus.
 
De volta ao quarto. Já são quase vinte horas e preciso aprontar-me com monumental esmero. Passo levemente os dedos sobre a maquiagem e me pergunto: Por que eu não esconderia o rosto deste timorato? Os batons organizados em nuanças, as fivelas e broches postos na caixinha-de-música que, ao abri-la... No Belo Danúbio Azul. Essa peça musical já não me parece tão doce, soa como o prelúdio para que Madalena chegue e destrua o que já fora tantas vezes destruído. Fecha-te, caixa. Escuta. 
 
Estou mais uma vez na fazenda de meus pais. Sou proibido de ter contato com os peões; todos riem de mim, menos um deles. Não o mais bonito, o menos covarde. O trote de um cavalo aproxima-se e excita meu vernal coração. Descubro, quase sem querer, que os homens são uma possibilidade muito mais atraente. Não corro. Não correrei até a janela para que ninguém perceba que eu, desde minha infância, já o aguardava. 
 
Haverá mesmo uma festa de aniversário para mim? O que me dará de presente? Quero-o dentro de mim. Já falei que estou cansado de esfregação e beijos de língua atrás do engenho. Não há honra a ser preservada entre homens e não estou me guardando para a Igreja, como minha irmã beata. Mamãe percebe tudo, é uma ave de rapina que regurgita ave-marias; reprova-me com um gesto na boca. O cavalo se afasta antes que os tiros o alcancem, ele escapa com vida. Após uma reunião de família, sou mandado embora para o esquecimento. Fragmentado.
 
O vestido dourado e as sandálias de prata, roubados da casa de uma puta que morreu aqui perto, descansam sobre minha cama. Aguardam que eu os preencha com meus seios de estopa e meus pés grandes demais para calçados femininos. Por que a noite insiste em batizar-me com a máscara? A fantasia, após tantos anos, já não me incomodo em vesti-la; mas o disfarce em meu rosto, como esse me dói. Enterrar o menino que fui é um funeral cuja rotina me apodrece. 
 
Passo a espuma sobre minha face, a fim de prepará-la para a arte da pintura que não quero. Sinto-me velho e ridículo, não tenho mais o viço jovial de meus dezoito anos de idade. A lâmina de barbear apara-me os pelos que brotam em meu rosto como indesejáveis lembranças daquele que um dia eu fora. Cortar o próprio pescoço e sangrar até a morte seria apenas um acidente. Ninguém é condenado ao inferno por ferir-se sem querer. Não é por querer que, dia após dia, mutilo-me. 
 
Pressiono levemente a toalha contra minha cara de palhaço afeminado, livro-me do restante de espuma e das pequenas poças de sangue em meus poros, penso em morrer sufocada. Deus, por que temo a morte se há tempos caminho sem vida por estas ruelas que hospedam solidões e sodomias? 
 
Vermelho. Vermelho nas unhas e nos lábios. Hoje usarei batom vermelho sobre esta boca pálida e entristecida pela constante falta de doçura em suas palavras. Pronto. Meus lábios já foram traídos e as unhas transformadas em garras. Mas, e quanto aos olhos? O que fazer para disfarçar esse olhar que só enxerga fotografias e visões de sonho? Isso mesmo. Uma sombra violeta em minhas pálpebras jamais permitirá que meus olhos revelem o homem derrotado que, aos poucos, deixa de existir no espelho. Ruge nas maçãs do rosto, um lápis escuro a delinear-me a raiz dos cílios, um arquear pedante de sobrancelhas, um sorriso forçado. Odeio escolher perucas. Loira ou morena? Loira ou morena? Que moldura destacaria melhor a pintura feita sobre minha tela de armação carcomida e tecido envelhecido? Hoje, serei loira. Quando loira, suporto mais as surras dos policiais, desses fregueses inadimplentes que me obrigam a sodomizá-los sempre que estão de folga.
 
A outra chegou. Atrás da superfície de vidro, não há mais lembrança movediça capaz de engolir-me. Os homens de bem me aguardam, é melhor que eu vá de vez ao encontro das esquinas que me garantem o sustento e mantêm contidas minhas aflitivas saudades. A pressa não se deve à noite, que já se faz alta, mas porque temo que o rapaz preso em meu reflexo retorne sem que eu esteja protegida pela fronteira vítrea que há tempos nos dividiu. Minha cotidiana sina permanecerá até que eu acabe como a finada quenga que me garantiu sapatos novos. Ao inferno que roubar dos mortos traga azar! Amanhã, o rito se dará da mesma forma. Jesus dormirá até que a claridade dê lugar à escuridão e o flagelo se repita. Eu, diante da face perdida, que me tortura, que me castra. É quando Madalena chama. 

 

Emerson Braga

 

Retirado de Samizdat

publicado às 20:43


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