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É isto a democracia directa!

por Jorge Soares, em 10.02.14

Não à emigração

 

Imagem do Público

 

 

Na maioria das vezes em que aqui se fala da Suíça é porque aconteceu mais um referendo, primeiro foi o referendo aos minaretes, depois foram os referendos à diminuição de impostos e ao aumento dos dias de férias, ambos derrotados, hoje para não variar temos mais um referendo, referendo à manutenção da livre circulação de pessoas, o que na realidade se traduz, como: referendo à emigração.

 

Ouvimos muitas vezes o termo democracia directa, isto é a democracia directa, o que aconteceu este fim de semana na Suíça é isso mesmo, democracia directa, metade e mais um bocadinho dos suíços, 50,3 %, decidiu que estava na hora de atirar os acordos com a união europeia às malvas e voltar a fechar as fronteiras à emigração.

 

A Suíça é desde há muito um dos principais destinos da emigração portuguesa, mas não só, quase um quarto da população do país é constituído por emigrantes. 

 

Acontece que anexado ao acordo de livre circulação havia uma série de outros acordos que hoje estão em causa, a Suíça será, até pela sua situação física no mapa da Europa, o país de fora da união europeia que mais relações tem com a  comunidade, agora tudo isso está posto em causa e resta saber até que ponto haverá no seio da comunidade a força suficiente para fazer cumprir as regras à letra.

 

Assim de repente o que parece é que quem tem mais a perder com tudo isto é a Suíça e os suíços, há por exemplo muitíssima gente que vive em França, na Itália, na Alemanha e que trabalha na Suíça, a implementação de controlos nas fronteiras e o fim dos acordos comerciais iria tornar tudo isto quase impossível.

 

Há uns meses a Espanha decidiu implementar os controlos normais na fronteira com Gibraltar, que é fora do espaço Schengen, e foi o caos, imaginem-se o que seria implementar estes controlos nas fronteiras Suíças.

 

Por outro lado, a Europa não depende do mercado Suíço, poderia viver perfeitamente com uma ilha no meio, a Suíça está rodeada pela União Europeia, é até difícil de imaginar como seria a vida deste país de costas voltadas para todos os seus vizinhos se estes levassem as regras à letra e deixassem mesmo cair os tratados.

 

Há muito quem advogue as vantagens da democracia directa, hoje vemos as desvantagens, nem sempre as pessoas tem a capacidade de ver o filme todo, os referendos servem muitas vezes para avalizar as vontades de governantes sem escrúpulos que fazem do populismo uma forma de governo.

 

Não há sistemas perfeitos, mas eu confesso que entre a nossa democracia representativa e esta em que tudo se pode questionar e referendar, e em que muitas vezes se vota ao sabor do momento e dos interesses pessoais, eu prefiro o nosso.

 

Jorge Soares

publicado às 23:11

Conto - Lembras-te?

por Jorge Soares, em 05.10.13
Lembras-te?
(Ilustração: Clotilde Fava)

Migu d’omê, sá kloson dê

(O amigo do homem é o seu coração)
Trazias nos olhos a longidão de um outro Atlântico, frio e brumoso, oceano profundo que deixaste na amurada de teus pensamentos lusos, viagem de emoções e expectativas. E nesse trajecto trouxeste cheiros de outros corpos e de outras plantas, retalhos de vidas que se aninharam na tua mente  entristecida e só, fruto de uma latinidade enregelada e fatalista.
Chegaste um dia. Lembras-te? Era Primavera no teu longe. Aqui, sabes, não há Primavera, não há o primeiro Verão. Aqui só vive e canta a chuva e o sol embrulhados em folhas de gravana ou desnudados em noites acaloradas como romances de amores proibidos, amores acasulados apenas com a nossa dimensão arquipelágica.
Trazias o voo dos teus pássaros migrantes, dicionário alado que tentaste reproduzir no solo ilhéu onde teus pés feridos e calejados de outros chãos repousaram por fim. Mas as tuas aves não vieram no teu peito nem na proa do navio grande que te trouxe nem se aninharam em tuas mãos rudes e prósperas de sonhos como de sonhos se despojaram teus braços. E abraços. E as aves não migraram nem cantaram nos teus dedos. Apenas ouviste delas o bater de asa, plumas de frio que não se habituam nunca a sóis tórridos nem a sombras quentes de cacauzais alaranjados.
Chegaste. Lembras-te? Dançavam puíta no quintal de Sam Gidiba, mulata sem idade como todas as mulatas, herdeira de uma juventude inacabada, sensual e provocadora, blága penaconhecida na Trindade e arredores mas que ainda saracoteava  suas ancas num ritmo tão frenético e endemoinhado quanto a dança de konóbia ao tomar seu banho matinal nas águas sobrantes das margens dos rios. E ficaste extasiado ao ouvir o som frenético dos batuques. Que sons seriam aqueles?! Que ritmos? Que requebros? Tudo soava a novo para teus ouvidos lusos onde o arrastar triste e melódico de uma guitarra era a única ressonância que trazias na tua caixinha de música, sons de montes escarpados e nus, flauta de guardador de gado em terras de neve e gelo, sons frios como o teu corpo franzino que um grosso casaco de lã revestia. Depois teus etéreos passos te levaram por toda a ilha que foi tão gentil contigo! A ilha e os seus produtos, misturaste-te com eles, comeste kalulu, d’jógó, sôo, manga d’ôbô, bebeste café de Bom Jesus, até no dia das cinzas comeste “bôcadu” em casa da velha avó Sam Zinha e quando enfim, despertaste do teu encantamento, já sob as ramadas dos velhos cacaueiros corriam, descalços e seminus, teus filhos  meninos.
Não vinhas para ficar… lembras-te? Vinhas para encher teu baú (que viajou no porão) de fortunas, especiarias, tecidos raros, vinhas para dar ordens, ensinar, amealhar e partir de novo como quem cumpre um roteiro escolhido numa qualquer conversa de amigos ou numa agência de viagens. Sabias ler, escrever, fazer contas, o que era um trunfo a teu favor naquele tempo em que eram muito poucos os que podiam exibir tais artes. Por isso vinhas, tal como Sandokan, conquistar facilmente um reino do qual um outro antepassado teu te contara maravilhas sem fim, maravilhas que passavam de boca em boca, se dispersavam em semicírculo às lareiras fumarentas de povos distantes. Era uma teia aquele contar e recontar de estórias da terra-mãe, da ilha onde a fortuna era fácil para qualquer homem de pele clara que nela aportasse… E tu trazias essas estórias coladas ao corpo, pregadas na alma como as mãos de Cristo no madeiro, e foi com elas que entraste no barco grande que te trouxe a esta terra. Que depois foi tua. Que amaste logo nessa noite em que o ritmo desenfreado da puíta se colou à tua alma como mais tarde se colou também ao teu corpo o corpo sempre sedento de Sam Gidiba…
Como foi importante para ti essa noite… Tu, meu longeavô, tu que vinhas colonizar e acabaste colonizado! Aceitaste os sons, a alegria exuberante, os cheiros intensos, o calor desmesurado e húmido, as doenças, os amores, sim, os amores, as nossas gargalhadas sibilantes, os nossos gestos futuristas como quem quer abraçar o mundo… Tudo tu entranhaste no teu ser como se tudo já fosse teu desde o dia em que viste pela primeira vez a claridade. Por isso dizias sempre que esta era a tua terra, que aqui estava o teu coração, aqui viviam os teus filhos, os teus netos e bisnetos, a tua posteridade…Nunca regressaste nem mais falaste da tua lusa gente e foi neste chão de basalto e de areia que se diluíram teus ossos pálidos e teus cabelos lisos e direitos como fio de prumo. Que estranho quando me olho ao espelho! Que estranho quando vejo a minha pele, quando sei que todo eu sou negro acetinado, negro carvão, pletu lu, lu, lu, como forro diz… Pois é, meu longeavô, quando me olho de alto a baixo quase quase me esqueço que sou um mosaico de raças, um cruzamento de terras de além do horizonte, um aventureiro de diferentes credos, um fruto de uma maré viva da nossa História tão pequena e afinal tão grande.
Hoje, meu longeavô,  hoje tenho mais do dobro da idade que tu tinhas,  quando aqui aportaste e estou exactamente no mesmo local onde pela primeira vez puseste teu pé em terra firme. Devo ser a tua quarta ou quinta geração, nem sei bem, bisneto de um filho teu que sempre falou de ti como de ti falaram as outras gerações que me antecederam. Que te conheceram e te amaram como tu os conheceste e amaste. Também fizeste erros, e muitos. Mas… quem os não faz?!
Fui ontem ao Arquivo Histórico. Foi o meu coração que me levou até lá. Como tu sempre disseste “ o amigo do homem é o seu coração”. Por isso estou feliz. Fui acertar contas com o meu e o teu destino, fui fazer as pazes com todas as raças do mundo porque com todas elas estamos entrelaçados. Quis ver de meus próprios olhos as letras redondas que desenhaste para os nomes dos contratados, escravos afinal, que durante tempos infindos aportaram nesta ilha. E, pela primeira vez, sim, pela primeira vez, meu longeavô, senti que estavas perto de mim, não pelo tempo cronológico que deixa suas marcas em nossos rostos mas pelos nomes que a tua mão direita desenhou nas linhas dos grandes cadernos das roças. Numa dessas linhas escreveste “Benguelino, contratado vindo numa leva de homens oriundos de Angola.” Quem seria este Benguelino, que histórias traria para contar nas ilhas, que roça o esperava?! Teria existido amizade entre ti e ele? Mas de certeza que dele muito falaste… Agora pergunto, meu longeavô, porque tenho eu o mesmo nome?! Seria mais lógico então ter o teu, António, tradicionalmente português, serrano, beirão, mas não, o teu nome e sobrenome diluíram-se em ti próprio pois não os deste a teus dois filhos mestiços. Sempre foi assim nas nossas ilhas, filhos mestiços com pai e sem nome. Mas eles, pelos vistos, pouco se importaram com isso e com a tua branquidão que se foi esbatendo até dela não restar senão lívida lembrança. Cruzaram-se com mulheres tongas, angolares, forras, todas elas de uma negrura que só a noite sem lua lhes iguala a cor. No entanto falaram sempre de ti aos teus vindouros, sussurraram o teu nome em sílabas dispersas na boca de minha avô Plácida, de minha bisavó Franzinha, de outras mais distantes ainda… Foste homem de muitas mulheres, disseram-me, mas de poucos filhos, segundo consta.
Fui ontem ao Arquivo Histórico, meu longeavô, e vi a tua mão direita deslizar firme e jovem, a caneta de aparo reluzente, a escrever “Benguelino, contratado vindo numa leva de homens oriundos de Angola”. Nesse dia, sem o saberes, passaste para o meu mundo… Serei eu, meu longeavô, serei eu, Benguelino da Costa Ferreira, condutor de táxi a tempo inteiro e plantador de cacau nas horas vagas, portador do teu sangue luso no meu corpo negro, serei eu que porei o teu nome ao meu filho que vai nascer pela lua cheia que se aproxima.

Olinda Beja

(Estórias da Gravana; escritora de São Tomé e Príncipe)
Retirado de Trapiche dos outros

publicado às 21:05

Trabalho infantil

 

Imagem do Público

 

Lembro-me como se fosse ontem, em Caracas, na esquina da Avenida Los Proceres com a Carlos Soublette ficava a Panaderia los Proceres, um dos sócios era da Bairrada o outro da Madeira, e foi lá que com onze anos, em Setembro ou Outubro, mesmo antes de começar a escola, comecei a perceber o que era  vida. Servir ao balcão, tirar cafés, limpar o chão, ajudar os padeiros e o pasteleiro, fazer de tudo um pouco. 

 

Começou por ser uma ajuda para a economia familiar que nos primeiros tempos não ia lá muito bem, e com o tempo passou a ser um hábito que se manteve até quase ao fim do Liceu.

 

Eram outros tempos, um tempo em que quem emigrava não eram os jovens licenciados e sim os operários do interior que se queriam educar os seus filhos e ter uma vida mais ou menos decente, só tinham um caminho a seguir, o caminho que os levava para longe da família, dos amigos e da vida que até aí tinham conhecido.

 

Nem sempre as coisas corriam bem e após um ano em que as coisas não correram nada bem e em que os meus pais comeram o pão que o diabo amassou, calhou-me a mim dar uma mão na economia familiar, felizmente as coisas compuseram-se e de uma necessidade passou a ser um hábito... que se manteve quase ininterruptamente até hoje. Mesmo assim não me posso queixar muito da minha sorte, muitos dos meus colegas da escola primária lá na aldeia já nem ao ciclo chegaram.

 

Hoje os tempos são outros, o mundo é outro e custa-me a acreditar que como diz a notícia do Público, haja crianças portuguesas que estão a emigrar para trabalhar, principalmente quando a mesma noticia diz que a emigração é para outros estados-membros da UE.

 

Se eu acho que me fez mal trabalhar? não, não acho, mas também  acho que podia ter sido muito melhor aluno se estudasse o mesmo que os meus colegas estudavam e tinha de certeza sido muito mais feliz se tivesse usado a minha infância e parte da minha juventude para jogar à bola,  fazer amigos e conquistar miúdas em lugar de estar o tempo todo com adultos.

 

Os tempos não são fáceis, mas estamos muito longe do que eram há 30 ou 40 anos acho que no meio disto tudo há gente a aproveitar-se da situação para pintar o quadro ainda mais negro do que ele realmente é, convém não confundir as coisas, mas espero sinceramente que quem diz e escreve estas coisas, mostre e denuncie os casos reais, para que todas as crianças de Portugal e do mundo possam ter direito à sua infância e juventude.

 

Jorge Soares

publicado às 21:20


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