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Porque: "A vida é feita de pequenos nadas" -Sergio Godinho - e "Viver é uma das coisas mais difíceis do mundo, a maioria das pessoas limita-se a existir!"
Poeta é certo mas de cetineta
fulgurante de mais para alguns olhos
bom artesão na arte da proveta
marciso de lombardas e repolhos.
Cozido à portuguesa mais as carnes
suculentas da auto-importância
com toicinho e talento ambas partes
do meu caldo entornado na infância.
Nos olhos uma folha de hortelã
que é verde como a esperança que amanhã
amanheça de vez a desventura.
Poeta de combate disparate
palavrão de machão no escaparate
porém morrendo aos poucos de ternura.
Ary dos Santos, in 'Fotosgrafias'
Porque é mais ou menos assim que me sinto.
Gato no Miradouro de São Domingos
Setúbal, Março de 2009
Jorge Soares
Imagem Minha retirada de Momentos e olhares
Com um lindo salto
Lento e seguro
O gato passa
Do chão ao muro
Logo mudando
De opinião
Passa de novo
Do muro ao chão
E pisa e passa
Cuidadoso, de mansinho
Pega e corre, silencioso
Atrás de um pobre passarinho
E logo pára
Como assombrado
Depois dispara
Pula de lado
Se num novelo
Fica enroscado
Ouriça o pêlo
Mal humorado
Um preguiçoso
É o que ele é
E gosta muito
De cafuné
E quando à noite
Vem a fadiga
Toma seu banho
Passando a língua pela barriga.
Vinicius de morais
Um gato na Baixa de Setúbal
Jorge Soares
Mar 28, 2009, Câmara: SONY DSLR-A350,ISO: 200,Exposição: 1/1600 seg.,Abertura: 5.6,Extensão focal: 200mm, Flash: Não
Hoje a meio da tarde, já nem sei a propósito de quê, lembrei-me do gato....e deste texto que escrevi já lá vão uns tempos...
Tinham passado uns meses desde que tínhamos mudado daquela casa quando passei na rua em frente ao edifício, de repente ele saltou do jardim, estava mais gordo... chamei, bichinho, bichinho, parou e olhou para mim, hesitou um momento e voltou a andar, voltei a chamar, bichinho! Olhou para trás e parou, acerquei-me, ia fazer-lhe um carinho na espalda.... afastou-se... saltou o muro e não o voltei a ver. Não sei se os gatos tem memória curta ou se estava chateado comigo, certo é que não quis confianças.
Vejam, meus filhos, o gatinho preto, sentado no cimo desta história.
Pois ele nem sempre foi dessa cor.
Conta a mãe dele que, antes, tinha sido amarelo, às malhas e às pintas.
Todos lhe chamavam o Pintalgato.
Diz-se que ficou desta aparência, em totalidade negra, por motivo de um susto.
Vou aqui contar como aconteceu essa trespassagem de claro para escuro.
O caso, vos digo, não é nada claro.
Aconteceu assim:
o gatinho gostava de passear-se nessa linha onde o dia faz fronteira com a noite.
Faz de conta o pôr do Sol fosse um muro.
Faz mais de conta ainda os pés felpudos pisassem o poente.
A mãe se afligia e pedia:
- Nunca atravesse a luz para o lado de lá.
Essa era a aflição dela, que o seu menino passasse além do pôr de algum Sol. O filho dizia que sim, acenava consentindo.
Mas fingia obediência.
Porque o Pintalgato chegava ao poente e espreitava o lado de lá.
Namoriscando o proibido, seus olhos pirilampiscavam.
Certa vez, inspirou coragem e passou uma perna para o lado de lá, onde a noite se enrosca a dormir.
Foi ganhando mais confiança e, de cada vez, se adentrou um bocadinho.
Até que a metade completa dele já passara a fronteira, para além do limite.
Quando regressava de sua desobediência, olhou as patas dianteiras e se assustou.
Estavam pretas, mais que breu.
Escondeu-se num canto, mais enrolado que o pangolim.
Não queria ser visto em flagrante escuridão.
Mesmo assim, no dia seguinte, ele insistiu na brincadeira.
E passou mesmo todo inteiro para o lado de além da claridade.
À medida que avançava seu coração tiquetaqueava.
Temia o castigo. Fechou os olhos e andou assim, sobrancelhado, noite adentro. Andou, andou, atravessando a imensa noitidão.
Só quando desaguou na outra margem do tempo ele ousou despersianar os olhos. Olhou o corpo e viu que já nem a si se via. Que aconteceu? Virara cego?
Por que razão o mundo se embrulhava num pano preto?
Chorou.
Chorou.
E chorou.
Pensava que nunca mais regressaria ao seu original formato.
Foi então que ouviu uma voz dizendo:
- Não chore, gatinho.
- Quem é?
- Sou eu, o escuro. Eu é que devia chorar porque olho tudo e não vejo nada.
Sim, o escuro, coitado. Que vida a dele, sempre afastado da luz!
Não era de sentir pena? Por exemplo, ele se entristecia de não enxergar os lindos olhos do bichano. Nem os seus mesmo ele distinguia, olhos pretos em corpo negro. Nada, nem a cauda nem o arco tenso das costas. Nada sobrava de sua anterior gateza.
E o escuro, triste, desabou em lágrimas.
Estava-se naquele desfile de queixas quando se aproximou uma grande gata. Er a mãe do gato desobediente. O gatinho Pintalgato se arredou, receoso que a mãe lhe trouxesse um castigo. Mas a mãe estava ocupada em consolar o escuro. E lhe disse:
- Pois eu dou licença a teus olhos:
fiquem verdes, tão verdes que amarelos.
E os olhos do escuro de amarelaram. E se viram escorrer, enxofrinhas, duas lagriminhas amarelas em fundo preto.
O escuro ainda chorava:
- Sou feio. Não há quem goste de mim.
- Mentira, você é lindo. Tanto como os outros.
- Então porque não figuro nem no arco-íris?
- Você figura no meu arco-íris.
- Os meninos têm medo de mim. Todos têm medo do escuro.
- Os meninos não sabem que o escuro só existe é dentro de nós.
- Não entendo, Dona Gata.
- Dentro de cada um há o seu escuro. E nesse escuro só mora quem lá inventamos. Agora me entende?
- Não estou claro, Dona Gata.
- Não é você que me te medo. Somos nós que enchemos o escuro com nosso medos.
A mãe gata sorriu bondades, ronronou ternuras, esfregou carinho no corpo do escuro.
E foram carícias que ela lhe dedicou, muitas e tantas que o escuro adormeceu. Quando despertou viu que as suas costas estavam das cores todas da luz.
Metade do seu corpo brilhava, arco-iriscando. Afinal?
O espanto ainda o abraçava quando escutou a voz da gata grande:
- Você quer ser meu filho?
O escuro se encolheu, ataratonto.
Filho?
Mas ele nem chegava a ser coisa alguma, nem sequer antecoisa.
- Como posso ser seu filho se eu nem sou gato?
- E quem lhe disse que não é?
E o escuro sacudiu o corpo e sentiu a cauda, serpenteando o espaço. Esticou a perna e viu brilhar as unhas, disparadas como repentinas lâminas.
O Pintalgato até se arrepiou, vendo um irmão tão recente.
- Mas, mãe:
sou irmão disso aí?
- Duvida, Pintalgatito?
Pois vou-lhe provar que sou mãe dos dois.
Olhe bem para os meus olhos e verá.
Pintalgato fitou o fundo dos olhos da sua mãe, como se se debruçasse num poço escuro. De rompante, quase se derrubou, lhe surgiu como que um relâmpago atravessando a noite.
Pintalgato acordou, todo estremolhado, e viu que, afinal, tudo tinha sido um sonho. Chamou pela mãe. Ela se aproximou e ele notou seus olhos, viu uma estranheza nunca antes reparada. Quando olhava o escuro, a mãe ficava com os olhos pretos. Pareciam encheram de escuro. Como se engravidassem de breu, a abarrotar de pupilas.
Ante a luz, porém, seus olhos todos se amarelavam, claros e luminosos, salvo uma estreitinha fenda preta.
Então, o gatinho Pintalgato espreitou nessa fenda escura como se vislumbrasse o abismo.
Por detrás dessa fenda o que é que ele viu?
Adivinham?
Pois ele viu um gato preto, enroscado do outro lado do mundo.
Mia Couto, do livro O Gato e o escuro
Texto retirado de aqui:http://lugardaspalavras.no.sapo.pt/prosa/mcouto/gato_escuro.htm
Jorge
PS:Fotografia minha retirada de Momentos e olhares
Tinham passado uns meses desde que tínhamos mudado daquela casa quando passei na rua em frente ao edifício, de repente ele saltou do jardim, estava mais gordo... chamei, bichinho, bichinho, parou e olhou para mim, hesitou um momento e voltou a andar, voltei a chamar, bichinho! Olhou para trás e parou, acerquei-me, ia fazer-lhe um carinho na espalda.... afastou-se... saltou o muro e não o voltei a ver. Não sei se os gatos tem memória curta ou se estava chateado comigo, certo é que não quis confianças comigo.
Nós morávamos no rés do chão, o edifício tinha um enorme pátio a toda a volta, um dia ele apareceu por ali e foi ficando, comia restos, durante o dia dormia em qualquer lado dentro ou fora da casa, durante a noite dormia no velho maple que tínhamos no alpendre. Como todos os gatos tinha uma especial afeição por mim, até ao ponto que podia estar a dormir em qualquer parte da casa, bastava eu colocar a chave na porta de entrada do edifício que ele acordava e corria para a porta da casa a esperar a minha entrada, como me reconhecia, ou porque o fazia? era um mistério para todo o mundo, mas ele era assim.
Lembro-me do dia em que apareceu com uma enorme ferida aberta na barriga, da forma como o tratamos, esteve dias deitado no maple, sem comer, pouco a pouco foi melhorando, voltou a comer e a ser o mesmo. Se eu estava em casa ele estava aos meus pés, ou sentado no meu colo, era o meu gato.
Chegou o dia em que mudamos de casa, íamos viver para um apartamento num edifício em que havia um cão no pátio, com muita pena minha, mas não era o sitio certo para um gato, e menos para um gato como aquele, habituado a ir e vir, a andar livre no pátio do nosso edifício e nos das casas vizinhas.
Eu gosto de gatos, e pelos vistos os gatos gostam de mim, a qualquer sitio que eu chegue se houver um gato, é certo e sabido que mal dê por mim o bicho andará a roçar as minhas pernas, mesmo os mais ariscos que não dão confiança a visitas.
Não sei o porquê de tudo isto, mas imagino que deve ser genético, lembro-me de a minha avó me contar que era o meu pai adolescente e havia lá em casa uma gata que não o largava, todos os dias se colocava a umas centenas de metros da casa a esperar o seu regresso a casa do emprego. Dormia no fundo da cama e a primeira ninhada de crias nasceu nessa cama.
Estava eu no liceu, devia estar no 9 ou 10 ano, um dia apareceu um gatinho, era minúsculo, uma das minha colegas tinha-o nas mãos, de repente gritou:
-Tem os olhos dele!
-....... desculpa?
-Sim, tem os olhos iguais aos teus, tu tens olhos de gato!
O gato tinha os olhos verdes.... como os meus, e durante uns tempos, eu era o Português dos olhos de gato!
Jorge
PS:Imagem original de João Palmela, retirada de:
http://fotografiadejoaopalmela.blogs.sapo.pt/191847.html
PS2:Post dedicado a ti Xana!