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Conto - Quando Madalena Chama

por Jorge Soares, em 29.11.14

madalena.jpg

 

 
Respiro. De olhos fechados, respiro. Com o fim da tarde, batem-me à porta as obrigações da noite. Antes de acender os castiçais de porcelana, sento-me diante do espelho e procuro enxergar minha face refletida na superfície enegrecida pela rotação do tempo. Porém, nada vejo. Apenas uma lembrança indelével, um paladar experimentado, uma faca ameaçadora no meio de minhas pernas, mas nunca meu rosto. 
 
Tendo já o quarto iluminado, surge-me o semblante do rapaz que há tempos eu fora: olhos inexpressivos, lábios cerrados, alma arisca e pensamentos ligeiros. O reflexo atira-me em um túnel de cores neutras e conduz-me à teimosa viagem em busca do que não pode ser revivido. 
 
Crianças correm no terreiro, um cheiro de café-com-pão flutua no hálito da casa-grande, o irritante som de uma rede que balança no alpendre. Será meu avô? Procuro retornar à frente da penteadeira, mas já me encontro mergulhada no inevitável espetáculo de reminiscências traídas. Repentinamente, outros sons. As melodias chegam como um grito da natureza em meus tímpanos, parecem pardais que gorjeiam, gorjeiam. “Jesus, Jesus”, alguém grita meu antigo nome do outro lado da cerca e eu me escondo no mato. Um aroma de eucalipto inunda meu peito e uma caranguejeira se retorce dentro do fogo. Se eu ficar, papai me capa. Atiram meus pertences dentro de uma carroça. Estou partido. Estou partindo. Adeus.
 
De volta ao quarto. Já são quase vinte horas e preciso aprontar-me com monumental esmero. Passo levemente os dedos sobre a maquiagem e me pergunto: Por que eu não esconderia o rosto deste timorato? Os batons organizados em nuanças, as fivelas e broches postos na caixinha-de-música que, ao abri-la... No Belo Danúbio Azul. Essa peça musical já não me parece tão doce, soa como o prelúdio para que Madalena chegue e destrua o que já fora tantas vezes destruído. Fecha-te, caixa. Escuta. 
 
Estou mais uma vez na fazenda de meus pais. Sou proibido de ter contato com os peões; todos riem de mim, menos um deles. Não o mais bonito, o menos covarde. O trote de um cavalo aproxima-se e excita meu vernal coração. Descubro, quase sem querer, que os homens são uma possibilidade muito mais atraente. Não corro. Não correrei até a janela para que ninguém perceba que eu, desde minha infância, já o aguardava. 
 
Haverá mesmo uma festa de aniversário para mim? O que me dará de presente? Quero-o dentro de mim. Já falei que estou cansado de esfregação e beijos de língua atrás do engenho. Não há honra a ser preservada entre homens e não estou me guardando para a Igreja, como minha irmã beata. Mamãe percebe tudo, é uma ave de rapina que regurgita ave-marias; reprova-me com um gesto na boca. O cavalo se afasta antes que os tiros o alcancem, ele escapa com vida. Após uma reunião de família, sou mandado embora para o esquecimento. Fragmentado.
 
O vestido dourado e as sandálias de prata, roubados da casa de uma puta que morreu aqui perto, descansam sobre minha cama. Aguardam que eu os preencha com meus seios de estopa e meus pés grandes demais para calçados femininos. Por que a noite insiste em batizar-me com a máscara? A fantasia, após tantos anos, já não me incomodo em vesti-la; mas o disfarce em meu rosto, como esse me dói. Enterrar o menino que fui é um funeral cuja rotina me apodrece. 
 
Passo a espuma sobre minha face, a fim de prepará-la para a arte da pintura que não quero. Sinto-me velho e ridículo, não tenho mais o viço jovial de meus dezoito anos de idade. A lâmina de barbear apara-me os pelos que brotam em meu rosto como indesejáveis lembranças daquele que um dia eu fora. Cortar o próprio pescoço e sangrar até a morte seria apenas um acidente. Ninguém é condenado ao inferno por ferir-se sem querer. Não é por querer que, dia após dia, mutilo-me. 
 
Pressiono levemente a toalha contra minha cara de palhaço afeminado, livro-me do restante de espuma e das pequenas poças de sangue em meus poros, penso em morrer sufocada. Deus, por que temo a morte se há tempos caminho sem vida por estas ruelas que hospedam solidões e sodomias? 
 
Vermelho. Vermelho nas unhas e nos lábios. Hoje usarei batom vermelho sobre esta boca pálida e entristecida pela constante falta de doçura em suas palavras. Pronto. Meus lábios já foram traídos e as unhas transformadas em garras. Mas, e quanto aos olhos? O que fazer para disfarçar esse olhar que só enxerga fotografias e visões de sonho? Isso mesmo. Uma sombra violeta em minhas pálpebras jamais permitirá que meus olhos revelem o homem derrotado que, aos poucos, deixa de existir no espelho. Ruge nas maçãs do rosto, um lápis escuro a delinear-me a raiz dos cílios, um arquear pedante de sobrancelhas, um sorriso forçado. Odeio escolher perucas. Loira ou morena? Loira ou morena? Que moldura destacaria melhor a pintura feita sobre minha tela de armação carcomida e tecido envelhecido? Hoje, serei loira. Quando loira, suporto mais as surras dos policiais, desses fregueses inadimplentes que me obrigam a sodomizá-los sempre que estão de folga.
 
A outra chegou. Atrás da superfície de vidro, não há mais lembrança movediça capaz de engolir-me. Os homens de bem me aguardam, é melhor que eu vá de vez ao encontro das esquinas que me garantem o sustento e mantêm contidas minhas aflitivas saudades. A pressa não se deve à noite, que já se faz alta, mas porque temo que o rapaz preso em meu reflexo retorne sem que eu esteja protegida pela fronteira vítrea que há tempos nos dividiu. Minha cotidiana sina permanecerá até que eu acabe como a finada quenga que me garantiu sapatos novos. Ao inferno que roubar dos mortos traga azar! Amanhã, o rito se dará da mesma forma. Jesus dormirá até que a claridade dê lugar à escuridão e o flagelo se repita. Eu, diante da face perdida, que me tortura, que me castra. É quando Madalena chama. 

 

Emerson Braga

 

Retirado de Samizdat

publicado às 20:43

Free Amina Arraf

 

A noticia é do El Mundo e chocou-me profundamente, temos tendência a esquecer que há mais mundos para além do que conhecemos, depois chegam-nos estas noticias que nos lembram que sim, que o nosso é só um pequeno e excelente mundo, lá fora há outros.... diferentes, muito diferentes.

 

Amina Abdallah Araf é mulher Árabe, é Síria, é lésbica e desde Fevereiro é blogger, o seu blog Chama-se Uma Lésbica em Damasco. No blog ela começou por falar dos direitos da comunidade LGBT na Síria, para depois abordar directamente as manifestações que no país exigiam, tal como em muitos países árabes, a abertura à democracia. 

 

É necessário muito valor para num país onde a homossexualidade é proibida por lei, não só reconhecer a sua condição de lésbica, como falar abertamente do assunto num blog, mas não é necessário menos valor para num país com uma ditadura militar que controla tudo com mão de ferro há 40 anos, se declarar dissidente politica. "É duro ser lésbica na Síria, mas mesmo assim é mais fácil ser um dissidente sexual que um dissidente político", são palavras de Amina ao the Guardian.

 

Um destes dias, Amina ia pela rua com uma amiga quando 3 homens a arrastaram para um carro e desde então está desaparecida, o seu delito?, ser mulher, ser lésbica, ser blogguer, ter opinião... Num país onde a religião, os homens, os politicos, todos relegam as mulheres para um canto insignificante da sociedade, ser mulher e ter opinião é um enorme delito.

 

Os desejos de democracia do povo Sírio e a repressão que se instalou após as manifestações já levaram à prisão mais de 10000 pessoas, Amina negou-se a sair do país quando a foram buscar a primeira vez, agora o seu nome é mais um na lista.

 

Podem ver no Facebook o Grupo de apoio a Amina desde onde se grita pela sua liberdade, Free Amina Abdalla 

 

Jorge Soares

 

Update: Pelos vistos a rapariga lésbica era na realidade um idiota qualquer e toda  a história um invento ... enfim

publicado às 22:22

O bom rapaz de cantanhede que afinal mata pessoas

 

Hoje foi a reunião na escola da R., como a P. tinha ido ontem à do N. a mim calhou-me esta, foi uma reunião pacifica, a directora de turma é daquelas que faz a festa toda, dá a música, atira os foguetes e apanha as canas, mas é pacifica e a coisa até correu bem.

 

O ponto alto da reunião foi quando se tratou do tema da educação sexual, a coisa até estava a correr bem, até que alguém tocou o tema da homossexualidade e é claro o assunto do momento que também ia pacifico até que uma das mães  decide sair-se com a seguinte:

 

-Vejam lá o que aconteceu com aquela pobre criança, que se deixou levar pelas más influências e vejam no que deu.

 

É claro que ante uma afirmação destas eu não me podia calar,

 

-Criança, mas qual criança?

-Criança sim, porque ele era uma criança que se deixou influenciar

-Mas ele não tinha 21 anos?, isso não é uma criança, é um adulto que sabe bem o que quer.

-Não, ele era uma criança e deixou-se levar na conversa daquele tipo.

 

Aqui a professora entendeu que a coisa ia descambar e mudou rapidamente de assunto.

 

Eu não conhecia o Carlos Castro de lado nenhum, juro, nem sabia que o senhor  existia, muito menos o Renato Seabra, muito menos da sua orientação sexual, mas a mim há uma coisa que me parece clara, independentemente do que estavam lá a fazer, se eram ou não namorados, estavam ali dois adultos e um matou o outro de uma forma que tem contornos de sadismo.

 

Não sei como, mas tal como aquela mãe na reunião da escola, há muita gente que parece que vê o morto como culpado e o assassino, que até já confessou,  como a vitima. Parece que o facto de um ser homossexual e o outro um bom rapaz de Cantanhede faz as coisas mudar... deve ser da distância, Nova Iorque é muito longe e em inglês, agressão, morte violenta e castrado, dizem-se de outra forma.

 

Eu juro que já tentei, mas depois de tudo isto eu não consigo ver mais que alguém que morreu e alguém que matou, quanto ao facto de o assassino confesso ser um bom rapaz, espero que ninguém me leve a mal, mas o que define se alguém é boa ou má pessoa não é a opinião que os outros querem fazer passar, são os actos... e a mim não há quem me convença que quem mata com estes requintes de malvadez, é boa pessoa.

 

Jorge Soares

publicado às 21:55

Primeira ministra da Islândia é lésbica e decidiu ser a primeira a casar-se

 

Quem já não ouviu falar da qualidade de vida dos países nórdicos?, das excelentes escolas públicas, sistemas de saúde perfeitos, justiça social, excelentes condições de habitação, etc. É claro que tudo isto é financiado por um sistema fiscal que leva entre 40 e 60% dos salários, mas aposto que não há ninguém que não tenha dito ou ouvido :"Eu assim também não me importava de pagar impostos"... eu ainda hoje à hora do almoço ouvi esta frase. Eu bem tentei explicar que tem que ser ao contrário, primeiro temos que pagar mais impostos, depois com o tempo, um estado com dinheiro haverá de proporcionar as condições sociais.. em vão.. pagar impostos?, só menos!

 

Mas é claro que tudo isto vai muito mais além do pagamento ou não dos impostos, existe um enorme abismo cultural entre o norte e o sul da Europa.

 

Não foi noticia em muitos jornais, mas ainda foi em alguns, no ionline podemos ler o seguinte:

 

Primeira ministra Islandesa foi a primeira homossexual a casar-se segundo a nova lei

 

Na Islândia não só elegem para primeiro ministro uma mulher que assume sem problemas o facto de ser lésbica, como esta é a primeira a dar o exemplo e a casar-se. Em Portugal em época de eleições inventam-se boatos sobre a suposta orientação (homos)sexual do primeiro ministro. Passamos anos a discutir a alteração de uma lei que nem precisava de ser alterada, contaram-se espingardas, recolheram-se assinaturas, ameaçou-se com o inferno. Quando finalmente a lei foi aprovada e o presidente da república não a vetou, o seu partido viu  isto como uma afronta tal que se procuram candidatos alternativos.

 

Voltando aos nórdicos, não há quem não sonhe em viver como eles, desde que ninguém nos diga que para isso temos que pagar mais impostos, queremos ser como eles, mas a verdade é que a nossa mentalidade está a décadas da deles.. e cada vez que tentamos dar um passo em frente, há sempre alguém que diz ... mais devagar. Em suma, todo o mundo quer ser como os nórdicos, desde que continuemos a ser como somos...

 

Não, nós nunca vamos ser como eles, nunca vamos viver como eles ... não sei é se é feliz ou infelizmente.

 

Jorge

publicado às 21:23


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