por Jorge Soares, em 23.06.12
Xavier Demóstenes deixa a avenida e percorre uma rua transversal
no passeio podem ver-se meia duzia de mulheres em passos de quem espera cliente: as meretrizes
é assim que Beatriz Cachola, a esposa de Xavier Demóstenes, se lhes refere sempre que o marido sai mais tarde do escritório: já vens das meretrizes, grita-lhe
e nem é verdade
mas Beatriz Cachola arregalando os olhos um nadinha vesgos, diz isso muitas vezes
Xavier Demóstenes está habituado
habituado, e farto
por ironia dos deuses, da janela onde passa horas da sua vida parda, Xavier Demóstenes tem como horizonte, não o cume da serra, mas a janela do quarto que partilha com Beatriz Cachola vai para mais de duas dezenas de anos: muito lá ao fundo, muito longe, mas ainda assim a limitar-lhe o alcance dos olhos, de cada vez que Xavier Demóstenes levanta a vista da secretária, de cada vez que abre ou cerra o cortinado para que a luz, por defeito ou por excesso, não o incomode na escrita das cartas que tem sempre em atraso, é esse o horizonte que lobriga do seu lugar de escrivão de terceira na repartição de finanças da cidadezinha de provincia entalada entre duas serras e um ribeiro parco de águas
um lugar conseguido por concurso público
um olhar em linha recta, e lá está a janela do quarto como que a vigiá-lo
hoje, Xavier Demóstenes prometeu: vou ver como é, e só regresso a casa pela madrugada
a noite está fresca e nem uma nuvem a toldar um céu que se tornou da cor do negrume mal terminou a luz do sol de inverno, inclinada em demasia
Maria de Fátima