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Livro - Isabel Allende, o Jogo de Ripper

por Jorge Soares, em 27.10.14

o jogo de ripper.jpg

 

 

Isabel Allende é de longe minha escritora favorita, cresci a ler Gabriel Garcia Marquez, Rómulo Gallegos, Vargas Llosa.. entre outros autores do Realismo Mágico, uma corrente literária nascida na América latina que nos seus romances mistura de uma forma quase perfeita  o realismo do dia a dia com a vivências religiosas, as crenças que vieram de África  com os escravos e o modo de vida dos aborígenes.

 

Isabel Allende será talvez a última grande escritora desta corrente de escrita que podemos encontrar em cada um dos seus livros.

 

O Jogo de Ripper é um livro diferente que quando foi publicado nos estados Unidos chegou a causar alguma polémica. Começou por ser catalogado como um Thriller da literatura policial, até que a autora apareceu em público a esclarecer que não gostava especialmente do tema, que o achava pesado e não conseguia escrever assim, por isso decidiu escrever algo que seguisse os mesmos moldes mas que tivesse alguma ironia  ao colocar a investigação nas mãos de uma adolescente de 16 anos.

 

O livro que é pautado pelo ritmo dos assassinatos que vão acontecendo e que são investigados à distancia por Amanda, a jovem de 16 anos, pelo seu avô e por o grupo que esta comanda, pessoas que não se conhecem pessoalmente mas que através da internet utilizam a sua intuição e conhecimentos para ir descobrindo os detalhes que unem cada um dos crimes.

 

Paralelamente a tudo isto vamos descobrindo o mundo que rodeia Amanda, a sua vida, a da sua mãe Indiana, a de Ryan Miller um ex Seal militar americano que guarda no corpo e principalmente na alma, as marcas da sua passagem por várias missões de guerra. Pedro Alarcón, ex guerrilheiro uruguaio, a bela ex prostituata que se casa com o rico de alta sociedade só pelo seu dinheiro, o rico de alta sociedade, o amigo gay pobre e drogado, o brasileiro sedutor, pintor de quadros, também pobre… e alguns mais.

 

No meio, como em todos os livros de Isabel Allende, vamos descobrindo as histórias de amor, já sejam as que levaram à história do livro ou os que se desenvolvem com ela e nos fazem seguir o fio à meada.

 

Em suma, O Jogo de Ripper é um Thriller sem ser um Thriller, é um livro diferente, muito bem escrito como não podia deixar de ser por esta autora, com várias histórias muito bem conseguidas que vão correndo em simultâneo mas em paralelo até que no fim tudo faz sentido.

 

Um excelente livro para quem gosta de policiais e para quem gosta do género da autora.

 

Sinopse:

 

Indiana e Amanda Jackson sempre se apoiaram uma à outra. No entanto, mãe e filha não poderiam ser mais diferentes. Indiana, uma bela terapeuta holística, valoriza a bondade e a liberdade de espírito. Há muito divorciada do pai de Amanda, resiste a comprometer-se em definitivo com qualquer um dos homens que a deseja: Alan, membro de uma família da elite de São Francisco, e Ryan, um enigmático ex-navy seal marcado pelos horrores da guerra. Enquanto a mãe vê sempre o melhor nas pessoas, Amanda sente-se fascinada pelo lado obscuro da natureza humana. Brilhante e introvertida, a jovem é uma investigadora nata, viciada em livros policiais e em Ripper, um jogo de mistério online em que ela participa com outros adolescentes espalhados pelo mundo e com o avô, com quem mantém uma relação de estreita cumplicidade. Quando uma série de crimes ocorre em São Francisco, os membros de Ripper encontram terreno para saírem das investigações virtuais, descobrindo, bem antes da polícia, a existência de uma ligação entre os crimes. No momento em que Indiana desaparece, o caso torna-se pessoal, e Amanda tentará deslindar o mistério antes que seja demasiado tarde.

 

Jorge Soares

 

 

publicado às 23:39

Livro - Isabel Allende, O Caderno de Maya

por Jorge Soares, em 06.02.13
O Caderno de Maya

Andei muito tempo longe dos livros, no natal ofereceram este à R., como ela já o tinha lido na biblioteca da escola, esteve prestes a ser devolvido, eu não deixei... em boa hora.

 

Nada como a Isabel Allende para nos voltar a prender à leitura e este livro é daqueles que nos prende mesmo, é uma história fluida que nos vai contando as venturas e desventuras de uma jovem protagonista que após ter descido até ao fundo do poço em que se converteu a sua vida, se refugia numa aldeia numa ilha remota do Chile onde é acolhida por um homem que podia ser seu avô.  Desde ali, um lugar que para além da distância física, está nas antípodas do que até então foi a sua vida e a sua forma de viver.

 

Maya é a filha típica da cultura americana, fruto de uma relação fugaz entre uma hospedeira Norueguesa e um piloto Americano de origem Chilena, é deixada à nascença para ser criada pela sua avó paterna. Cresce num ambiente descontraído com um avô professor Universitário que a adora e mima e uma avó hippie que divide a sua atenção entre a criança e as causas sociais que lhe vão aparecendo.

 

Quando chega à adolescência Maya torna-se numa jovem rebelde e independente, não descansa enquanto não passa por todas as experiências boas ou más da vida e torna a sua vida num caminho quase sem retorno até um abismo de onde dificilmente consegue fugir.

 

Este é um livro que  sem fugir  aos livros históricos, de época e quase mágicos a que nos acostumou a escritora, nos fala da sociedade e culturas americanas da actualidade,  com tudo o que de pior esta pode ter, ao mesmo tempo que nos mostra um pouco da história ainda recente do Chile da ditadura de Pinochet e das marcas que esta deixou e que ainda subsistem nas pessoas e na cultura chilenas.

 

Tudo junto resulta num excelente livro que se pudéssemos líamos de um só fôlego.

 

Sipnose

 

"Sou Maya Vidal, dezanove anos, sexo feminino, sem namorado por falta de oportunidade e não por esquisitice, nascida em Berkeley, Califórnia, com passaporte americano, temporariamente refugiada numa ilha no sul do mundo.

 

Chamaram-me Maya porque a minha Nini adora a Índia e não ocorreu outro nome aos meus pais, embora tenham tido nove meses para pensar no assunto. Em hindi, Maya significa «Feitiço, ilusão, sonho», o que não tem nada a ver com o meu carácter. Átila teria sido mais apropriado, pois onde o ponho o pé a erva não volta a crescer."

 

Jorge Soares

publicado às 21:41

Conto, Mais esquecido do esquecimento

por Jorge Soares, em 28.05.11

Mais esquecida do esquecimento

 

Ela deixou-se acariciar, silenciosa, gotas de suor na cintura, cheiro a açúcar queimado no corpo quieto, como se adivinhasse que um só o podia mexer nas suas recordações e deitar tudo a perder, esse momento em que ele era uma pessoa como todas, um casual que conheceu de manhã, outro homem sem história pelo seu cabelo de palha, a sua pele sardenta ou a grande chocada das suas pulseiras de cigana, um outro que a abordou na rua e desatou a andar com ela sem rumo preciso, a fazer comentários sobre o tempo ou o tráfego e observando a multidão, com aquela confiança um pouco forçada dos compatriotas em terra estranha, um homem sem tristeza, nem rancores, nem culpas, límpido como o gelo, que desejava simplesmente passar o dia com ela a vaguear por livrarias e parques, tomando café, celebrando a sorte de se terem conhecido, falando de nostalgias antigas, de como era a vida quando ambos cresciam na mesma cidade, no mesmo bairro, quando tinha catorze anos, lembras-te, os Invernos de sapatos molhados pela geada e os aquecedores de petróleo, os Verões de pêssegos, lá no país proibido. Talvez se sentisse um pouco sozinha ou lhe parecesse que era uma oportunidade de fazer amor sem perguntas e por isso, ao fim da tarde, quando já não tinha mais pretextos para continuar a caminhar, ela pegou-lhe na mão e levou-o a casa. Partilhava com os outros exilados um apartamento sórdido, num edifício amarelo no fim de uma ruela cheia de latas de lixo. O seu quarto era estreito, um colchão no chão coberto com uma manta às riscas, prateleiras feitas com tábuas apoiadas em fileiras de tijolos, livros, cartazes, roupa sobre uma cadeira, uma maleta a um canto. Foi ali que ela tirou a roupa sem preâmbulos, com atitude de menina complacente.

 

Ele fez por amá-la. Percorreu-a com paciência, resvalando pelas suas colinas e ribanceiras, abordando sem pressa os seus caminhos, amassando-a, suave argila sobre os lençóis, até que ela se entregou, aberta. Então ele recuou com muda reserva.

 

Ela voltou-se para o procurar, esquecida sobre o ventre do homem, escondendo a cara, como que empenhada no pudor, enquanto o apalpava, o lambia e o fustigava. Ele quis abandonar-se de olhos fechados e deixou-a fazer por um instante, até que a tristeza o venceu, ou a vergonha, e teve de a afastar. Acenderam outro cigarro, já não era cumplicidade, tinha-se perdido a antecipada urgência que os unira durante esse dia, e só ficavam sobre a cama duas pessoas desvalidas, com a memória ausente flutuando no vazio terrível de tantas palavras caladas. Ao conhecerem-se nessa manhã, não ambicio-naram nada de extraordinário, não tinham pretendido muito, apenas um pouco de companhia e um pouco de prazer, nada mais, mas na hora do encontro foram vencidos pelo desconsolo.

 

Estamos cansados, sorriu ela, pedindo desculpa por aquele peso instalado entre os dois. No último esforço de ganhar tempo, ele tomou a cara da mulher entre as mãos e beijou-lhe as pálpebras. Estenderam-se lado a lado, de mão dada, e falaram das suas vidas naquele país onde se encontravam por casualidade, um lugar verde e generoso onde, no entanto, seriam sempre estrangeiros. Ele pensou em vestir-se e dizer-lhe adeus, antes que a tarântula dos seus pesadelos lhes envenenasse o ar, mas vendo-a jovem e vulnerável quis ser seu amigo. Amigo, pensou, não amante, amigo para partilhar alguns momentos de sossego, sem exigências nem compromissos, amigo para não estar sozinho e para combater o medo. Não decidiu partir nem soltar-lhe a mão. Um sentimento cálido e brando, uma tremenda compaixão por si mesmo e por ela fez-lhe arder os olhos. A cortina enfunou como uma vela e ela levantou-se para fechar a janela, imaginando que a obscuridade os podia ajudar a recuperar as forças para estarem juntos e o desejo de se abraçarem. Mas não foi assim, ele necessitava desse reflexo da luz da rua, para não se sentir apanhado de novo no abismo dos noventa centímetros sem tempo da cela, fermentando nos seus próprios excrementos, demente. Deixa a cortina aberta, quero ver-te, mentiu-lhe, porque não se atreveu a confiar-lhe o terror da noite, aquando o venciam de novo a sede, a ligadura apertada na cabeça como uma coroa de espinhos, as visões de cavernas e o assalto de tantos fantasmas. Não podia falar-lhe disso, porque uma coisa leva a outra e acaba por se dizer o que nunca se disse. Ela voltou para a cama, acariciou-o sem entusiasmo, passou-lhe os dedos pelas estranhas marcas, explorando-as. Não te preocupes, não é nada contagioso, são só cicatrizes, riu ele quase num soluço. A rapariga percebeu o seu tom angustiado e deteve-se, o gesto suspenso, alerta.

 

Nesse momento, ele devia dizer-lhe que aquilo não era o começo de um novo amor, nem sequer de uma paixão passageira, era apenas um instante de trégua, um breve momento de Inocência, e que dentro em pouco, quando ela adormecesse, ir-se-ia embora; devia dizer-lhe que não haveria planos para eles, nem telefonemas furtivos, não deambulariam juntos outra vez de mão dada pelas ruas, nem partilhariam jogos de amantes, mas não conseguiu falar, a voz ficou-lhe agarrada ao ventre como uma garra. Soube que se afundava. Quis segurar a realidade que lhe fugia, ancorar o espírito em qualquer coisa, na roupa em desordem em cima da cadeira, nos livros empilhados no chão, no cartaz do Chile na parede, na frescura daquela noite do Caribe, no ruído surdo da rua; tentou concentrar-se naquele corpo oferecido e pensar apenas no cabelo espalhado da jovem, no seu cheiro doce. Suplicou-lhe sem voz que, por favor, o ajudasse a salvar aqueles segundos, enquanto ela o observava da ponta mais afastada da cama, sentada como um faquir, os claros mamilos e o olho do umbigo olhando-o também, registando o seu tremor, o bater dos dentes, o gemido. O homem ouviu o silêncio crescer no seu interior, soube que a alma se lhe partia, como tantas vezes lhe acontecera antes, e deixou de lutar, soltando a última amarra ao presente, caindo a rebolar por um desfiladeiro inacabável. Sentiu as correias enterradas nos tornozelos e nos pulsos, a descarga brutal, os tendões rebentados, as vozes a insultar exigindo nomes, os gritos inesquecíveis de Ana torturada a seu lado e dos outros, pendurados no pátio, pelos braços.

 

Que se passa, meu Deus, que se passa contigo?, chegou-lhe de longe a voz de Ana. Não, Ana ficou atolada nos pantanais do Sul. Julgou ver uma desconhecida nua, que o sacudia e o chamava pelo nome, mas não conseguiu desprender-se das sombras onde se agitavam chicotes e bandeiras. Encolhido, tentou controlar as náuseas. Começou a chorar por Ana e pelos outros.

 

Que se passa contigo?, a rapariga a chamá-lo outra vez, de qualquer parte. Nada, abraça-me!... pediu e ela aproximou-se tímida e envolveu-o nos seus braços, embalou-o como a um menino, beijou-lhe a testa, disse-lhe chora, chora, estendeu-o de costas sobre a cama e deitou-se crucificada sobre ele.

 

Ficaram mil anos assim abraçados, até que lentamente se afastaram as alucinações e ele regressou ao quarto, para se descobrir vivo apesar de tudo, respirando, palpitando com o peso dela a descansar no seu peito, os braços e as pernas dela sobre os seus, dois órfãos apavorados. E, nesse instante, como se soubesse tudo, ela disse-lhe que o medo é mais forte que o desejo, o amor, o ódio, a culpa, a raiva, mais forte que a lealdade. O medo é qualquer coisa total, concluiu, com as lágrimas a escorrer pelos seios. Tudo parou para o homem, tocado na ferida mais oculta. Pressentiu que ela não era apenas uma rapariga disposta a fazer amor por comiseração, que ela conhecia aquilo que se encontrava escondido mais para lá do silêncio, da completa solidão, mais para lá da caixa selada onde ele se tinha escondido do coronel e da sua própria traição, mais para lá da recordação de Ana Díaz e dos outros companheiros denunciados, a quem foram traindo um a um de olhos vendados. Como pode saber ela tudo isto? A mulher endireitou-se. O seu braço magro recortou-se contra a bruma clara da janela, procurando o interruptor às apalpadelas.

 

Acendeu a luz e tirou uma a uma as pulseiras de metal, que caíram sem ruído sobre a cama. O cabelo cobria-lhe metade da cara quando lhe estendeu as mãos. Também a ela, cicatrizes brancas atravessavam os pulsos. Durante um interminável momento, ele observou-as, imóvel, até compreender tudo, amor, e vê-la atada com as correias sobre a grelha eléctrica e então puderam abraçar-se e chorar, famintos de pactos e de confidências, de palavras proibidas, de promessas de amanhãs, partilhando, por fim, o mais recôndito segredo.

 

Isabel Allende in Contos de Eva Luna

publicado às 19:21

Conto: Ester Lucero II

por Jorge Soares, em 19.06.10

Rosa

 

Imagem do Momentos e Olhares

 

Continuação do Conto: Ester Lucero, de isabel Allende, primeira parte aqui

 

Enquanto ele sonhava com moscas gigantescas, ela andava perdida nos pesadelos da sua agonia, e assim se encontraram numa terra de ninguém e no seu sono partilhado ela agarrou-se à mão dele para lhe pedir que não se deixasse vencer pela morte e que não a abandonasse.

 

Angel Sánchez acordou sobressaltado pela recordação nítida do Negro Rivas e do absurdo milagre que lhe devolveu a vida. Saiu a correr e tropeçou no corredor com a avó, que estava enfronhada num murmúrio de intermináveis oraçöes.

 

- Continue a rezar, que eu volto daqui a um quarto de hora! - gritou ao passar.

 

Dez anos antes, quando Angel Sánchez marchava com os seus companheiros pela selva, com a vegetação até aos joelhos e a tortura inconsolável dos mosquitos e do calor, encurralados, atravessando o país em todas as direcçöes para fazer emboscadas aos soldados da ditadura, quando não eram mais que um punhado de loucos visionários com o cinturão carregados de balas, o bornal de poemas e a cabeça de ideias, quando levavam meses sem cheirar mulher ou esfregar sabão pelo corpo, quando a fome e o medo eram uma segunda pele e a única coisa que os mantinha em movimento era o desespero, quando viam inimigos em todo o lado e desconfiavam até das próprias sombras, então o

Negro Rivas caiu por um barranco e rolou oito metros até ao abismo, espalmando-se sem ruído, como um saco de trapos. Os companheiros gastaram vinte minutos a descer por cordas entre pedras aguçadas e troncos retorcidos, até o encontrar enfiado

no matagal, e quase duas horas para o içar, ensopado em sangue.

 

O Negro Rivas, um moreno valente e alegre, com a canção sempre pronta nos lábios e boa disposição para carregar às costas outro combatente mais débil, estava aberto como uma romã, com as costelas à mostra e um golpe profundo que começava no ombro e acabava a meio do peito. Sánchez levava consigo a sua maleta para emergências, mas aquilo estava fora dos seus modestos recursos. Sem a menor esperança suturou a ferida, ligou-a com tiras de gaze e administrou os remédios disponíveis. Colocaram o homem sobre um bocado de lona estendida entre dois paus  e transportaram-no assim, revezando-se para o carregar, até que foi evidente que cada sacudidela era um minuto a menos de vida, porque o Negro Rivas supurava como uma fonte e delirava com iguarias, seios de mulher e furacöes de sal.

 

Estavam planeando acampar para o deixar morrer em paz, quando alguém viu na margem de uma lagoa de água negra, dois índios que brigavam amigavelmente. Um pouco mais à frente, escondida no vapor denso da selva, estava a aldeia. Era uma tribo imobilizada em idade remota, sem mais contacto com este século do que algum missionário atrevido que tivesse ido falar-lhes sem êxito das leis de Deus e, o que é mais grave, sem nunca ter ouvido falar da Insurreição nem ter escrito o grito de Pátria ou Morte. Apesar destas diferenças e da barreira da língua, os índios compreenderam que aqueles homens exaustos não representavam grande perigo e deram-lhe tímidas boas-vindas. Os rebeldes apontaram para o moribundo. O que parecia ser o chefe levou-os a uma cabana na penumbra eterna, onde flutuava uma pestilência de urinas e lodo. Ali deitaram o Negro Rivas sobre uma esteira, rodeado pelos seus companheiros e por toda a tribo. Pouco depois, chegou o bruxo em trajes de

cerimônia. O comandante espantou-se ao ver os seus colares de peonias, os seus olhos de fanático e a crosta de imundície no seu corpo, mas Angel Sánchez explicou que já muito pouco se podia fazer pelo ferido e qualquer coisa que o feiticeiro conseguisse - ainda que fosse só ajudá-lo a morrer - era melhor que nada. O comandante ordenou aos homens que baixassem as armas e fizessem silêncio para aquele estranho sábio meio

nu poder exercer o ofício sem distracçöes.

 

Duas horas mais tarde a febre tinha desaparecido e o Negro Rivas podia beber água. No dia seguinte voltou o curandeiro e repetiu o tratamento. Ao anoitecer, o enfermo estava sentado a comer uma espessa papa de milho e dois dias depois ensaiava os primeiros passos pelos arredores, com a ferida em pleno processo de cura. Enquanto os outros guerrilheiros acompanhavam os progressos do convalescente, Angel Sánchez

percorreu a zona com o bruxo juntando plantas na sua bolsa. Anos depois, o Negro Rivas chegou a ser chefe da Polícia na capital e só se recordava que estivera prestes a morrer ao tirar a camisa para abraçar uma mulher nova, que invariavelmente lhe perguntava o que era aquilo, a grande costura que o partia em dois.

 

- Se um índio em pelota salvou o Negro Rivas, eu vou salvar Ester Lucero, nem que tenha de fazer pacto com o Diabo - concluiu Angel Sánchez enquanto dava volta à casa à procura das ervas que guardara durante todos aqueles anos e que, até àquele momento, esquecera por completo. Encontrou-as embrulhadas em papel de jornal, ressequidas e quebradiças, no fundo de um baú desconjuntado, junto ao seu caderno de versos,

à boina e outras recordaçöes de guerra. O médico regressou ao hospital a correr que nem um perseguido, debaixo do calor de chumbo que derretia o asfalto.

 

Subiu as escadas aos saltos e entrou pelo quarto de Ester Lucero a escorrer suor. A avó e a enfermeira de turno viram-no passar a correr e aproximaram-se para espreitar pelo postigo da porta. Observaram como tirava a bata branca, a camisa de algodão, as calças escuras, as peúgas compradas no contrabando e os sapatos de sola de borracha que costumava calçar. Horrorizadas, viram-no tirar também as cuecas e ficar nu, como um recruta.

 

- Santa Maria, Mãe de Deus! - exclamou a avó. Através do postigo puderam ver o doutor quando empurrava a cama até ao centro do quarto e, depois de pôr ambas as mãos sobre a cabeça de Ester Lucero durante alguns segundos, iniciar um frenético bailado à volta da enferma.

 

Levantava os joelhos até tocar no peito, efectuava profundas inclinaçöes, agitava os braços e fazia grotescas caretas, sem perder por um

único instante o ritmo interior que lhe punha asas nos pés. E durante uma hora não parou de dançar como um louco, esquivando-se das garrafas de oxigénio e dos frascos de soro. Depois tirou umas folhas secas do bolso da bata, colocou-as numa bacia, esmagou-as com o punho até as reduzir a um pó grosso, cuspiu em cima abundantemente, misturou tudo para fazer uma pasta e aproximou-se da moribunda. As mulheres

viram-no tirar as ligaduras e, tal como notificou a enfermeira no seu relatório, untar a ferida com aquela mistura asquerosa, sem a menor consideração pelas leis da higiene nem pelo facto de exibir as suas vergonhas nuas. Terminada a cura, o homem caiu sentado no chão, totalmente exausto, mas iluminado por um sorriso de santo. Se o doutor Angel Sánchez não fosse o director do hospital e um herói indiscutível da Revolução, ter-lhe-iam enfiado um colete de forças e mandado sem mais trâmites para o manicómio.

 

Mas ninguém se atreveu a deitar abaixo a porta que ele trancou com o ferrolho e quando o alcaide resolveu fazê-lo com a ajuda dos bombeiros, já tinham passado catorze horas e Ester Lucero estava sentada na cama, de olhos abertos, contemplando divertida o tio Angel, que tinha voltado a despojar-se da sua roupa e iniciava a segunda etapa do tratamento com novas danças rituais. Dois dias mais tarde, quando chegou a Comissão do Ministério da Saúde enviada especialmente da capital, a doente passeava pelo corredor pelo braço da avó, toda a população desfilava pelo terceiro piso para ver a rapariga ressuscitada e o director do hospital, vestido com impecável correcção, recebia os colegas à sua secretária. A Comissão absteve-se de pedir pormenores sobre as inusitadas danças do médico e dedicou a sua atenção a perguntar sobre as

maravilhosas plantas do bruxo.

 

Passaram anos desde que Ester Lucero caiu da mangueira. A jovem casou-se com um inspector do ambiente e foi viver para a capital, onde deu à luz uma menina com ossos de alabastro e olhos escuros. E Ao tio Angel, manda-lhe de vez em quando nostálgicas cartas salpicadas de horrores ortográficos. O Ministério da Saúde organizou quatro expediçöes para procurar as ervas portentosas na seiva, sem nenhum êxito. A vegetação

engoliu a aldeia indígena e com ela a esperança de um medicamento científico contra os acidentes irremediáveis.

 

O doutor Angel Sánchez ficou sozinho, sem mais companheiros que a imagem de Ester Lucero que o visita no seu quarto à hora da sesta, abrasando a sua alma numa bacanal perpétua. O prestígio do médico aumentou muito em toda a região, porque o ouvem falar com os astros em línguas aborígenes.

 

 

Isabel Allende em Contos de Eva Luna

publicado às 21:01

Conto: Ester Lucero

por Jorge Soares, em 12.06.10

Rosa

 

Levaram Ester Lucero numa maca improvisada, sangrando que nem um boi, os olhos escuros abertos de terror. Ao vê-la, o doutor Angel Sánchez perdeu pela primeira vez a sua calma proverbial e não era para menos, pois estava apaixonado por ela desde o dia em que a viu, quando era ainda uma menina. Nesse tempo ela ainda não largara as bonecas e ele, por seu lado, regressava envelhecido mil anos da sua última Campanha Gloriosa. Chegou à povoação à frente da sua coluna, sentado no tejadilho de uma camioneta, com uma espingarda sobre os joelhos, uma barba de meses e uma bala alojada para sempre na virilha, mas tão feliz como nunca estivera antes nem depois. Viu a rapariga agitando uma bandeira de papel vermelho, no meio da multidão que aclamava os libertadores. Naquele momento ele tinha trinta anos e ela andava pelos doze, mas Angel Sánchez adivinhou pelos firmes ossos de alabastro e pela profundidade do olhar da menina, a beleza que em segredo se estava a desenvolver.

 

Observou-a do alto do seu veículo convencido que era uma visão provocada pelo calor dos pântanos e pelo entusiasmo da vitória, mas como nessa noite não encontrou consolo nos braços da noiva de ocasião que lhe coube por turno, compreendeu que devia sair para buscar aquela criança, pelo menos para comprovar a sua condição de miragem. No dia seguinte, quando se acalmaram os tumultos da rua pela celebração e começou o trabalho de ordenar as coisas e varrer os escombros da ditadura, Sánchez saiu da aldeia a correr. A sua primeira ideia foi visitar as escolas, mas verificou que estavam fechadas desde a última batalha, de maneira que teve de bater às portas uma por uma. Ao fim de vários dias de paciente peregrinação e quando já pensava que a rapariga tinha sido um engano do seu coração extenuado, chegou a uma casa minúscula,

pintada de azul e com a frontaria perfurada pelas balas, cuja única janela se abria para a rua sem mais protecção do que umas cortinas de flores.

 

Chamou várias vezes sem obter resposta, então decidiu entrar. O interior era um único aposento, pobremente mobilado, fresco e na penumbra.

Atravessou a sala, abriu uma porta e encontrou-se num amplo pátio atulhado de móveis e ferro-velho com uma rede pendurada debaixo de uma mangueira, um tanque para lavar roupa, um galinheiro ao fundo e uma quantidade de latas e potes de barro, onde cresciam ervas, verduras e flores. Encontrou-se ali, por fim, com quem julgava ter sonhado. Ester Lucero estava descalça, com um vestido de linho ordinário, a sua floresta de cabelo atada na nuca com um atacador de sapatos, ajudando a avó a estender roupa ao sol. Ao vê-lo, ambas recuaram num gesto instintivo, porque tinham aprendido a desconfiar de quem calçava botas.

 

- Não se assustem, sou um companheiro - apresentou-se ele com a boina sebenta na mão.

 

A partir desse dia, Angel Sánchez limitou-se a desejar Ester Lucero em silêncio, envergonhado daquela paixão inconfessável por uma rapariguinha impúbere. Por ela recusou ir para a capital quando se repartiu o bolo do poder, e preferiu tomar a seu cargo o único hospital daquela povoação esquecida. Não aspirava a consumar o amor mais para lá da sua imaginação.

 

Vivia de ínfimas satisfaçöes: vê-la passar a caminho da escola, cuidar dela quando apanhou sarampo, dar-lhe vitaminas nos anos em que o leite, os ovos e a carne só se conseguiam para os mais pequenos e os outros tinham de conformar-se com banana e milho, visitá-la no seu pátio onde se sentava numa cadeira a ensinar-lhe a tabuada sob o olhar vigilante da avó.

 

Ester Lucero acabou por lhe chamar tio à falta de nome mais apropriado, e a velha foi aceitando a sua presença como outro dos inexplicáveis mistérios da Revolução.

 

- Que interesse pode ter um homem instruído, doutor, chefe do hospital e herói da pátria na conversa de uma velha e nos silêncios da neta? - perguntavam as comadres da aldeia.

 

Nos anos seguintes, a rapariga cresceu como sucede quase sempre, mas Angel Sánchez julgou que no seu caso era uma espécie de milagre e que só ele podia ver a beleza que amadurecia escondida debaixo dos vestidos inocentes confeccionados pela avó na sua máquina de coser. Tinha a certeza que à sua passagem se excitavam os sentidos de quem a via, tal como acontecia com os seus, por isso achava estranho não encontrar um torvelinho de pretendentes à volta de Ester Lucero. Vivia atormentado por sentimentos enrolados: receios naturais de todos os homens, uma constante melancolia - fruto do desespero - e a febre do inferno que o atacava à hora da sesta, quando imaginava a menina nua e húmida chamando-o da sombra do quarto com gestos obscenos. Ninguém soube dos seus atormentados estados de ânimo. O controlo que exercia sobre si mesmo tornou-se uma segunda natureza e assim adquiriu fama de homem bom. Finalmente, as matronas da aldeia cansaram-se de procurar noiva para ele e acabaram por aceitar que o médico era um pouco esquisito.

 

- Não parece maricas - cochicharam -, mas talvez a malária ou a bala que tem no entrepernas lhe tenha tirado para sempre o

gosto pelas mulheres.

 

Angel Sánchez amaldiçoava sua mãe, que o tinha trazido ao mundo vinte anos mais cedo, e ao seu destino, que lhe semeara o corpo e a alma com tantas cicatrizes. Pedia que algum capricho da natureza alterasse a harmonia e apagasse a luz de Ester Lucero, para que ninguém suspeitasse que era a mulher mais formosa deste mundo e de qualquer outro. Por isso, na quinta-feira fatídica, quando a levaram para o hospital numa maca com a avó a caminhar à frente e uma procissão de curiosos atrás, o doutor deu um grito visceral, quando tirou o lençol e viu a jovem trespassada por uma ferida horrível, julgou que de tanto desejar que ela nunca pertencesse a nenhum homem tinha provocado aquela catástrofe.

 

- Trepou à mangueira do pátio, escorregou e caiu espetada na estaca onde atamos o ganso - explicou a avó.

- Pobrezinha, ficou atravessada como um vampiro. Não foi nada fácil descravá-la - esclareceu um vizinho que ajudava a transportar a maca.

 

Ester Lucero fechou os olhos e queixou-se muito ao de leve. Desde esse instante, Angel Sánchez bateu-se em duelo pessoal contra a morte. Fez tudo para salvar a jovem.

 

Operou-a, deu-lhe injecçöes, fez-lhe transfusöes, deu-lhe o seu próprio sangue, encheu-a de antibióticos, mas dois dias passados era evidente que a vida escapava pela ferida como uma corrente imparável. Sentado numa cadeira junto da moribunda, esmagado pela tensão e pela tristeza, apoiou a cabeça aos pés da cama e por alguns minutos dormiu que nem um recém-nascido.

 

Continua

 

Isabel Allende in Contos de Eva Luna

publicado às 21:00

Conto:Cartas de amor atraiçoado II

por Jorge Soares, em 06.03.10

 

Conto:Cartas de amor atraiçoado, isabel allende

 

Continuação do conto Cartas de amor atraiçoado de Isabel Allende

 

Os esposos Torres viviam na propriedade adquirida pelo pai de Analía quando era ainda uma região meio selvagem, terra de soldados e bandidos. Agora encontrava-se junto da estrada e a pouca distância de uma povoação próspera, onde todos os anos se realizavam feiras agrícolas e de gado. Legalmente, Luis era o administrador da propriedade, mas na realidade era o tio Eugênio quem cumpria essa função, porque Luis aborrecia-se com os assuntos do campo. Depois do almoço, quando pai e filho se instalavam na biblioteca a beber conhaque e a jogar dominó, Analía ouvia o tio decidir sobre os investimentos, os animais, as sementeiras e as colheitas. Nas raras ocasiöes em que ela se atrevia a intervir para dar uma opinião, os dois homens ouviam-na com aparente atenção, assegurando-lhe que tomariam em conta as suas sugestöes, mas logo a seguir actuavam a seu bel-prazer. às vezes, Analía saía a galope pelas pastagens até aos limites da montanha desejando ter sido homem.

 

O nascimento de um filho não melhorou em nada os sentimentos de Analía pelo marido. Durante os meses de gravidez acentuou-se o seu carácter retraído, mas Luis não se impacientou, atribuindo tudo ao seu estado. De qualquer modo, ele tinha outros assuntos em que pensar. Depois de dar à luz, ela mudou-se para outro quarto, mobilado apenas com uma cama estreita e dura. Quando o filho fez um ano e ainda a mãe fechava à chave a porta do seu aposento evitando toda a ocasião de estar a sós com ele, Luis decidiu que já era tempo de exigir um trato mais considerado e advertiu a mulher de que mais valia mudar de atitude antes que partisse a porta a tiro. Ela nunca o tinha visto tão violento. Obedeceu sem comentários. Nos sete anos que se seguiram, a tensão entre ambos aumentou de tal maneira que acabaram por tornar-se inimigos dissimulados, porque eram pessoas de bons modos e diante dos outros tratavam-se com uma exagerada cortesia.

 

Apenas o menino suspeitava do tamanho da hostilidade entre os pais e despertava a chorar a meio da noite, com a cama molhada. Analía ocultava-se numa couraça de silêncio e, a pouco e pouco, pareceu ir secando por dentro. Luis, pelo contrário, tornou-se mais expansivo e frívolo, abandonou-se aos seus múltiplos apetites, bebia demasiado e costumava perder-se por vários dias em inconfessáveis aventuras. Depois, quando deixou de dissimular os seus actos de esbanjamento, Analía encontrou bons pretextos para se afastar dele ainda mais. Luis perdeu todo o interesse pelas tarefas do campo e a mulher substituiu-o, contente por essa nova posição. Aos domingos, o tio Eugênio ficava na sala de jantar discutindo as decisöes com ela, enquanto Luis mergulhava numa longa sesta, da qual ressuscitava ao anoitecer, ensopado em suor e de estômago a dar horas, mas sempre disposto a ir outra vez para a farra com os amigos.

 

Analía ensinou ao filho os rudimentos da escrita e a aritmética e tratou de iniciá-lo no gosto pelos livros. Quando o menino fez sete anos, Luis decidiu que já era tempo de lhe dar uma educação mais formal, longe dos mimos da mãe. Quis mandá-lo para um colégio na capital, para ver se ele se fazia homem depressa, mas Analía fez-lhe frente com tal ferocidade que ele teve de aceitar uma solução menos drástica. Levou-o para a escola da aldeia, onde ficou interno de segunda a sexta, aos sábados de manhã ia o carro buscá-lo para regressar a casa, até domingo. Na primeira semana, Analia observou o filho cheia de ansiedade, procurando motivos para o reter a seu lado, mas não pôde encontrar nenhum. A criança parecia contente, falava do seu professor e dos companheiros com sincero entusiasmo, como se tivesse nascido entre eles. Deixou de urinar na cama. Três meses depois, chegou com a caderneta escolar e uma nota do professor felicitando-o pelo seu bom rendimento. Analía leu-a a tremer e sorriu pela primeira vez em tanto tempo. Abraçou o filho comovida, interrogando-o sobre cada pormenor, como eram os dormitórios, que lhe davam de comer, se fazia frio à noite, quantos amigos tinha, como era o seu professor. Parecia muito mais tranquila e não voltou a falar em tirá-lo da escola. Nos meses seguintes o rapaz trouxe sempre boas classificaçöes, que Analía coleccionava como tesouros e retribuía com frascos de marmelada e cestas de fruta para toda a classe. Fazia por não pensar que essa solução apenas servia para a instrução primária e que dentro de poucos anos seria inevitável mandar o menino para um colégio na cidade, só o podendo ver durante as férias.

 

Numa noite de farra na aldeia, Luis Torres, que tinha bebido demasiado, dispôs-se a fazer piruetas num cavalo alheio para demonstrar a sua habilidade de cavaleiro em frente de um grupo de compinchas de taberna. O animal atirou-o ao chão e com uma patada rebentou-lhe os testículos. Nove dias depois, Torres morreu uivando de dor numa clínica da capital, para onde o levaram com a esperança de o salvar da infecção. A seu lado estava a mulher, chorando de culpa pelo amor que nunca lhe pudera dar e de alívio porque já não teria de continuar a rezar para que ele morresse. Antes de voltar ao campo com o corpo num caixão para o enterrar na sua própria terra, Analía comprou um vestido branco e meteu-o no fundo da mala. Chegou de luto à aldeia, com a cara coberta por um véu de viúva para ninguém lhe ver a expressão dos olhos, e assim se apresentou no funeral, de mão dada com o filho, também vestido de preto. No final da cerimónia, o tio Eugênio, que se mantinha muito saudável apesar dos seus setenta anos bem vividos, propôs à nora que lhe cedesse as terras e fosse para a capital viver das rendas, onde o menino terminaria a sua educação e ela podia esquecer as penas do passado.

 

- Porque percebo que tu, Analía, e o meu pobre Luis nunca foram felizes - disse ele.

- Tem razão, tio. Luis enganou-me desde o princípio.

- Por Deus, minha filha, ele sempre foi muito discreto e respeitoso contigo. Luis foi um bom marido. Todos os homens têm pequenas aventuras, mas isso não tem a menor importância.

- Não me refiro a isso, mas a um engano irremediável.

- Não quero saber do que se trata. Em todo o caso, penso que na capital o menino e tu estariam muito melhor. Nada vos faltará. Eu tomarei conta da propriedade, estou velho mas não acabado, ainda posso virar um touro.

- Ficarei aqui. O meu filho ficará também, porque tem de me ajudar no campo. Nos últimos anos trabalhei mais nas cavalariças do que em casa. A única diferença é que agora tomarei decisöes sem pedir opinião a ninguém. Finalmente, esta terra é só minha. Adeus, tio Eugênio.

 

Nas primeiras semanas, Analía organizou a sua nova vida. Começou por queimar os lençóis que havia partilhado com o marido e mudar a sua cama estreita para o quarto principal; depois estudou a fundo os livros de administração da propriedade, e mal teve uma ideia precisa dos seus bens, procurou um capataz que executasse as suas ordens sem fazer perguntas. Quando sentiu que tinha todas as suas rendas sob controlo procurou na mala o vestido branco, passou-o a ferro com esmero, vestiu-o e assim ataviada foi no seu carro até à escola da aldeia, levando debaixo do braço uma velha caixa de chapéus.

 

Analía Torres esperou no pátio que a campainha das cinco anunciasse o fim da última aula e que os rapazes em tropel saíssem para o recreio. Entre eles vinha em alegre correria o filho, que ao vê-la estacou, porque em a primeira vez que a mãe aparecia no colégio.

 

- Mostra-me a tua aula, quero conhecer o teu professor. à porta, Analía fez sinal ao rapaz que se fosse embora, porque se tratava de um assunto privado, e entrou sozinha. Era uma sala grande de tectos altos, com mapas e desenhos de biologia nas paredes. Havia o mesmo cheiro a quarto fechado e a suor dos rapazes que tinha marcado a sua própria infância, mas nessa ocasião isso não a incomodou, pelo contrário, aspirou-o com prazer. As carteiras estavam em desordem por um dia de uso, havia alguns papéis no chão e tinteiros abertos. Conseguiu ver uma coluna de números no quadro de ardósia. Ao fundo, na secretária sobre um estrado, estava o professor. O homem levantou a cara surpreendido e não se pôs de pé, porque as suas muletas estavam a um canto, demasiado longe para as alcançar sem arrastar a cadeira. Analía atravessou o corredor entre duas filas de carteiras e parou em frente dele.

 

- Sou a mãe de Torres - disse, porque não lhe veio à cabeça nada melhor.

- Boa tarde, minha senhora. Aproveito para lhe agradecer os doces e as frutas que nos tem enviado.

- Deixemos isso, não vim cá para agradecimentos. Vim pedir-lhe contas - disse Analía colocando a caixa de chapéus sobre a mesa.

- Que é isto!

 

Ela abriu a caixa e tirou as cartas de amor que tinha guardado todo aquele tempo. Por um longo momento ele correu os olhos por aquele monte de sobrescritos.

 

- O senhor deve-me onze anos da minha vida - disse Analía.

- Como sabe que fui eu quem as escreveu? - balbuciou ele quando conseguiu usar a voz que se lhe tinha escondido nalgum lado.

- No dia do meu casamento descobri que o meu marido não as podia ter escrito e, quando o meu filho trouxe para casa as suas primeiras notas, reconheci a caligrafia. E agora, que estou a olhar para si não tenho dúvidas, porque eu vi o senhor em sonhos desde os meus dezasseis anos. Porque fez isto? 

- Luis Torres era meu amigo e quando me pediu que escrevesse uma carta para a sua prima não me pareceu que houvesse nada de mal nisso. Foi assim com a segunda e a terceira; depois, quando a senhora me respondeu, já não pude voltar atrás. Esses dois anos foram os melhores da minha vida, os únicos em que esperei alguma coisa. Esperava o correio.

- Estou a ver.

- Pode perdoar-me?

- Depende do senhor - disse Analía, passando-lhe as muletas.

 

O professor vestiu o casaco e levantou-se. Os dois saíram para o bulício do pátio, onde ainda não se tinha posto o Sol.

 

Isabel Allende em Contos de Eva Luna

 

publicado às 20:07

Conto:Cartas de amor atraiçoado

por Jorge Soares, em 27.02.10

A mãe de Analía Torres morreu de uma febre delirante quando ela nasceu, o pai não suportou a tristeza e duas semanas mais tarde deu um tiro de pistola no peito. O irmão Eugênio administrou as terras da família e dispôs do destino da pequena órfã segundo o seu critério.

 

Até aos seis anos, Analía cresceu agarrada às saias de uma ama índia nos quartos de serviço da casa do seu tutor e depois, mal teve idade para ir à escola, mandaram-na para a capital, interna no Colégio das Irmãs do Sagrado Coração, onde passou os doze anos seguintes. Era boa aluna e amava a disciplina, a austeridade do edifício de pedra, a capela com a sua corte de santos e o seu aroma de cera e lírios, os corredores nus, os pátios sombrios. O que menos a atraía era o bulício das pupilas e o cheiro acre das salas de aula. Todas as vezes que tentava enganar a vigilância das freiras, escondia-se num canto, entre estátuas decapitadas e móveis partidos, para contar contos a si mesma.

 

Nesses momentos roubados, afundava-se no silêncio com a sensação de se abandonar a um pecado.

 

De seis em seis meses recebia uma curta carta do tio Eugênio recomendando-lhe que se portasse bem e honrasse a memória de seus pais, que tinham sido dois bons cristãos em vida e ficariam orgulhosos de que a sua única filha dedicasse a sua existência aos mais altos preceitos da virtude, quer dizer, entrasse como noviça para o convento. Mas Analía fez-lhe saber, desde a primeira insinuação, que não estava disposta a isso, mantendo a sua postura com firmeza simplesmente para o contradizer, porque no fundo gostava da vida religiosa. Escondida sob o hábito, na solidão última da renúncia a qualquer prazer, talvez pudesse encontrar paz perdurável, pensava; no entanto o seu instinto advertia-a contra os conselhos do tutor. Suspeitava que as suas acçöes eram motivadas pela cobiça das terras, mais do que pela lealdade familiar. Nada vindo dele parecia digno de confiança, em qualquer canto estava a armadilha.

 

Quando Analía fez dezasseis anos, o tio foi visitá-la ao colégio pela primeira vez. A madre superiora chamou a rapariga ao escritório e teve de os apresentar porque ambos tinham mudado desde a época da ama índia dos pátios traseiros e não se reconheceram.

 

 - Vejo que as Irmãzinhas têm cuidado de ti, Analía - comentou o tio, mexendo a chávena de chocolate. - Estás sã e até bonita. Na minha última carta disse-te que a partir da data deste aniversário receberás uma mesada para os teus gastos, tal como foi estipulado no testamento pelo meu irmão, que descanse em paz.

 

- Quanto?

- Cem pesos.

- É tudo o que meus pais me deixaram?

- Não, claro que não. já sabes que a fazenda te pertence, mas a agricultura não é tarefa de mulher, sobretudo nos tempos de greves e revoluçöes. Por agora far-te-ei chegar uma mensalidade. Depois veremos.

- Veremos o quê, tio?

- Veremos o que mais te convém.

- Quais são as minhas alternativas?

- Precisarás sempre de um homem que administre o campo, menina. Eu fi-lo todos estes anos e não foi tarefa fácil, mas é a minha obrigação, prometi-o a meu irmão na sua última hora e estou disposto a continuar a fazê-lo por ti.

 

- Não deverá fazê-lo por muito mais tempo, tio. Quando me casar tomo conta das minhas terras.

- Quando se casar, foi o que a moça disse? Diga-ma, madre, ela tem algum pretendente? 

- Não pense nisso, senhor Torres! Cuidamos muito das meninas.

-É só uma maneira de falar. Esta rapariga diz cada coisa! 

 

Analía Torres pôs-se de pé, alisou as pregas do uniforme, fez uma leve reverência com uma careta, e saiu. A madre superiora serviu mais chocolate ao cavalheiro, comentando que a única explicação para aquele comportamento descortês era o pouco contacto que a jovem tivera com os seus familiares.

 

- Ela é a única aluna que nunca vai de férias e a quem nunca mandaram um presente de Natal - disse a freira num tom seco.

- Eu não sou homem de mimos, mas asseguro-lhe que estimo muito a minha sobrinha e tenho cuidado dos seus interesses como um pai. Mas a irmã tem razão, Analía necessitava de mais carinho, as mulheres são sentimentais.

 

Antes de passarem trinta dias, o tio apresentou-se de novo no colégio, mas nessa ocasião não pediu para ver a sobrinha, limitou-se a dizer à madre superiora que o seu próprio filho desejava manter correspondência com Analía e pedia-lhe que lhe fizesse chegar as cartas para ver se a camaradagem com o primo reforçava os laços de família.

 

As cartas começaram a chegar regularmente. Simples papel branco e tinta preta, uma escrita de traços grandes e precisos. Algumas falavam da vida no campo, das estaçöes e dos animais, outras de poetas já mortos e dos pensamentos que eles escreveram. às vezes o sobrescrito incluía um livro ou um desenho feito com os mesmos traços firmes da caligrafia.

 

Analía resolveu não as ler, fiel à ideia de que qualquer coisa que tivesse a ver com o tio escondia perigo, mas no aborrecimento do colégio as cartas eram a sua única possibilidade de voar. Escondia-se no canto, não já para inventar contos improváveis, mas para reler com avidez as cartas enviadas pelo primo, até conhecer de memória as inclinaçöes das letras e a textura do papel. A princípio não lhes respondia, mas ao fim de pouco tempo não pôde deixar de o fazer. O conteúdo das cartas foi-se tornando cada vez mais útil para enganar a censura da madre superiora, que abria toda a correspondência. Cresceu a intimidade entre os dois e depressa conseguiram pôr-se de acordo quanto a um código secreto com o qual começaram a falar de amor.

 

Analía Torres não se recordava de ter visto alguma vez esse primo que assinava Luis, porque quando ela vivia em casa do tio o rapaz estava internado num colégio da capital. Tinha a certeza de que devia ser um homem feio, talvez doente ou aleijado porque lhe parecia impossível que uma sensibilidade tão profunda e uma inteligência tão precisa desse origem a uma situação tão atraente. Tentava desenhar na sua mente uma imagem do primo: gordo como o pai, com a cara picada pelas bexigas, coxo e meio calvo; mas quantos mais defeitos lhe juntava mais começava a amá-lo. O brilho do seu espírito era a única coisa importante, a única que resistiria à passagem do tempo sem se deteriorar e que iria crescer com os anos, a beleza desses heróis utópicos dos contos não tinha qualquer valor e até podia tornar-se em motivo de frivolidade, concluía a rapariga, embora não pudesse evitar uma sombra de inquietação no seu raciocínio. Perguntava a si própria quanta deformidade seria capaz de tolerar.

 

A correspondência entre Analía e Luis Torres durou dois anos, ao fim dos quais a rapariga tinha uma caixa de chapéus cheia de sobrescritos e a alma definitivamente entregue. Se alguma vez lhe chegou a passar pela cabeça a ideia de que aquela relação poderia ser um plano do tio para que os bens que ela herdara do pai passassem para as mãos de Luis, pô-la de parte imediatamente, envergonhada da sua própria mesquinhez. No dia em que completou dezoito anos, a madre superiora chamou-a ao refeitório porque havia uma visita à sua espera. Analía Torres adivinhou quem podia ser e esteve quase a esconder-se no canto dos santos esquecidos, aterrada ante a eventualidade de enfrentar finalmente o homem que tinha imaginado durante tanto tempo. Quando entrou na sala e ficou em frente dele necessitou de vários minutos para vencer a desilusão.

 

Luis Torres não era o anão retorcido que ela tinha construído em sonhos e aprendera a amar. Era um homem bem apessoado, com um rosto simpático de traços regulares, a boca ainda infantil, uma barba escura e bem cuidada, olhos claros de longas pestanas, mas vazios de expressão. Parecia-se um pouco com os santos da capela, demasiado bonito e um pouco bobalhão. Analía refez-se do impacte e decidiu que, se tinha aceitado no seu coração um marreco, com maior razão podia querer a este jovem elegante que a beijava na face, deixando-lhe um rasto de lavanda no nariz.

 

Desde o primeiro dia de casada, Analía detestou Luis Torres. Quando ele a estendeu entre os lençóis bordados de uma cama demasiado macia, soube que se tinha apaixonado por um fantasma e que nunca poderia passar essa paixão imaginária para a realidade do matrimónio. Combateu os seus sentimentos com determinação, a princípio afastando-os como um vício e depois, quando lhe foi impossível continuar a ignorá-los, fez por chegar ao fundo da alma para os arrancar de vez. Luis era gentil e até divertido por vezes, não a incomodava com exigências sem sentido nem quis modificar a sua tendência para a solidão e silêncio. Ela própria admitia que com um pouco de boa vontade da sua parte podia encontrar nessa relação certa felicidade, pelo menos tanta como tivera debaixo de um hábito

de freira. Não tinha motivos precisos para essa estranha repulsa pelo homem que amara durante dois anos sem conhecer. Nem conseguia pôr em palavras as suas emoçöes, mas se o tivesse podido fazer não teria tido ninguém para o comentar.

 

Sentia-se enganada por não poder conciliar a imagem do pretendente epistolar com a daquele marido de carne e osso. Luis nunca mencionava as cartas e quando ela tocava no assunto, ele fechava-lhe a boca com um beijo rápido e uma ou outra observação ligeira sobre esse romantismo tão pouco adequado à vida matrimonial, na qual a confiança, o respeito, os interesses comuns e o futuro da família importavam muito mais que uma correspondência de adolescentes. Não havia entre os dois uma verdadeira intimidade. Durante o dia cada um desempenhava os seus afazeres e à noite encontravam-se entre as almofadas de penas, onde Analía acostumada ao catre do colégio julgava sufocar. às vezes abraçavam-se à pressa, ela imóvel e tensa, ele com a atitude de quem cumpre uma exigência do corpo que não pode evitar. Luis adormecia imediatamente, ela ficava de olhos abertos no escuro e um protesto atravessava-lhe a garganta. Analía tentou diversos meios para vencer a recusa que ele lhe inspirava, desde o recurso do fixar de memória cada pormenor do marido com o propósito de o amar por pura determinação, até o de esvaziar a mente de todo o pensamento e mudar-se para uma dimensão onde ele não pudesse alcançá-la. Rezava para que fosse apenas uma repugnância passageira, mas passaram os meses e em vez do alívio esperado cresceu a animosidade até se transformar em ódio. Uma noite, surpreendeu-se a sonhar com um homem horrível que a acariciava com os dedos manchados de tinta negra.

 

Continua ...

 

Isabel Allende in Contos de Eva Luna

publicado às 20:00

Livro:A Ilha debaixo do Mar - Isabel Allende

por Jorge Soares, em 19.02.10

A ilha debaixo do mar -Isabel Allende

 

 «Todos temos dentro de nós uma insuspeita reserva de força que emerge quando a vida nos põe à prova.»

                           Isabel Allende, A Ilha Debaixo do Mar

 

Comprei este livro no inicio do ano, ainda antes do terramoto,  como já estava a ler 3, este ficou guardado, depois foi o terramoto e o Haiti entrou de um momento para o outro no nosso vocabulário do dia a dia de uma forma brutal e avassaladora.

 

Levo sempre um livro quando vou de viagem, foi este o que escolhi para levar para Cabo Verde... em boa hora, porque passei uma semana de enorme tensão e o livro funcionou como um escape.

 

Sou fã da Isabel Allende, acho que li tudo o que ela escreveu e cada um dos seus livros é uma nova descoberta, adoro a forma como nos envolve nas historias e no ambiente do livro.

 

Este não é um livro sobre o Haiti, é um livro sobre o povo do Haiti, mais que um romance é um livro de historia, que nos descreve o auge e a queda da mais rica das colónias francesas e a forma como de uma enorme mistura de culturas  se  tece o passado e o futuro de um povo.

 

O livro descreve a vida nas plantações de cana de Açúcar, o ouro branco das Antilhas,  a forma como eram  tratados os escravos, a forma como conseguem preservar algumas das suas tradições que darão origem ao Vudu que sobrevive até aos dias de hoje, a forma como das suas fraquezas fazem força e com elas enfrentam todo o poderio de uma nação europeia até a vergarem.

 

Como já disse noutro post, o Haiti foi a primeira nação a obter a sua independência na América latina, uma independência conseguida à custa de muito sangue, de muita vingança, de muita destruição que deixou marcas até ao dia de hoje... tudo isso é mostrado no enredo do livro através das vidas das personagens e da forma como vivem e morrem num meio que antes de mais, é sempre hostil e selvagem.

 

Em Suma, um excelente livro que está  à altura de todos os outros desta autora.

 

Sinopse:

 

Para quem era uma escrava na Saint-Domingue dos finais do século XVIII, Zarité tinha tido uma boa estrela: aos nove anos foi vendida a Toulouse Valmorain, um rico fazendeiro, mas não conheceu nem o esgotamento das plantações de cana, nem a asfixia e o sofrimento dos moinhos, porque foi sempre uma escrava doméstica. A sua bondade natural, força de espírito e noção de honra permitiram-lhe partilhar os segredos e a espiritualidade que ajudavam os seus, os escravos, a sobreviver, e a conhecer as misérias dos amos, os brancos. Zarité converteu-se no centro de um microcosmos que era um reflexo do mundo da colónia: o amo Valmorain, a sua frágil esposa espanhola e o seu sensível filho Maurice, o sábio Parmentier, o militar Relais e a cortesã mulata Violette, Tante Rose, a curandeira, Gambo, o galante escravo rebelde… e outras personagens de uma cruel conflagração que acabaria por arrasar a sua terra e atirá-los para longe dela. Quando foi levada pelo seu amo para Nova Orleães, Zarité iniciou uma nova etapa onde alcançaria a sua maior aspiração: a liberdade. Para lá da dor e do amor, da submissão e da independência, dos seus desejos e os que lhe tinham imposto ao longo da sua vida, Zarité podia contemplá-la com serenidade e concluir que tinha tido uma boa estrela.

 

Jorge Soares

 

 

publicado às 22:08

Conto:Boca de Sapo - Isabel Allende

por Jorge Soares, em 13.02.10

Rosa por detrás da rede

Imagem Minha do Momentos e olhares

 

Os tempos eram duros no Sul. Não no Sul deste país, mas do mundo, onde as estaçöes mudaram e o Inverno não é no Natal, como nas naçöes cultas, mas a meio do ano, como nas regiöes bárbaras. Pedra, colmo e gelo, extensas planícies que até à Terra do Fogo desfazem-se num rosário de ilhas, picos decordilheira nevada fechando o horizonte ao longe, silêncio instalado ali desde o nascimento dos tempos e interrompido por vezes pelo suspiro subterrâneo dos glaciares deslizando lentamente para o mar. É uma natureza áspera, habitada por homens rudes. Nos princípios do século nada havia ali que os Ingleses pudessem levar, mas obtiveram concessöes para criar ovelhas. Em poucos anos os animais multiplicaram-se de tal forma que ao longe pareciam nuvens agarradas rente à terra, comeram toda a vegetação e pisaram os últimos altares das culturas indígenas. Era nesse lugar que Hermelinda ganhava a vida com jogos de fantasia.

 

No meio do descampado erguia-se, como uma torta abandonada, a grande casa da Companhia Pecuária, rodeada por um relvado absurdo, defendido contra os rigores do clima pela esposa do administrador, que não pôde resignar-se a viver fora do coração do Império Britânico e continuou a vestir-se de gala para cear a sós com o marido, um fleumático cavalheiro perdido no orgulho de tradiçöes obsoletas. Os peöes crioulos viviam nas barracas do acampamento, separados dos patröes por cercas de arbustos espinhosos e rosas silvestres, que tentavam em vão limitar a imensidão da pampa e criar para os estrangeiros a ilusão de uma suave campina inglesa.

 

Vigiados pelos guardas da gerência, atormentados pelo frio e sem tomar uma sopa caseira durante meses, os trabalhadores sobreviviam à desgraça, tão desamparados como o gado a seu cargo. Pelas tardes não faltava quem pegasse na guitarra e então a paisagem enchia-se de cançöes sentimentais. Era tanta a carência de amor, apesar da pedra-lume posta pelo cozinheiro na comida para apaziguar os desejos do corpo e as urgências da recordação que os peöes fornicavam com as ovelhas e até com alguma foca, se ela se aproximava da costa e conseguiam caçá-la. Estes animais têm grandes mamas, como seios de mãe, e ao tirar-lhes a pele, quando ainda vivas, quentes e palpitantes, um homem muito necessitado pode fechar os olhos e imaginar que abraça uma sereia. Apesar destes inconvenientes os operários divertiam-se mais que os seus patröes graças às brincadeiras ilícitas de Hermelinda.

 

Era a única mulher jovem em toda a extensão daquela terra, salvo a dama inglesa, que só passava a cerca das rosas para matar lebres a tiro de espingarda, vislumbrando-se nessas ocasiöes apenas o véu do seu chapéu no meio de uma poeirada de inferno e uma barulheira de cães perdigueiros. Hermelinda, pelo contrário, era uma fêmea próxima e precisa, com uma mistura atrevida de sangue nas veias e uma óptima disposição para festejar. Tinha escolhido esse ofício de consolo por pura e simples vocação, gostava de quase todos os homens em geral e de muitos em particular. Reinava entre eles como uma abelha-mestra. Amava neles o cheiro do trabalho e do desejo, a voz rouca, a barba de dois dias, o corpo vigoroso e ao mesmo tempo tão vulnerável nas suas mãos, a índole combativa e o coração ingénuo. Conhecia a fortaleza ilusória e a debilidade extrema dos seus clientes, mas não se aproveitava de nenhuma dessas condiçöes, pelo contrário, compadecia-se de ambas. Na sua natureza bravia havia traços de ternura maternal e, frequentemente, a noite encontrava-a cosendo remendos numa camisa, cozinhando uma galinha para algum trabalhador enfermo ou escrevendo cartas de amor para noivas remotas. Fazia a sua fortuna sobre um colchão de lã crua, debaixo de um tecto de zinco ondulado que produzia música de flautas e oboés quando o vento o atravessava.

 

Tinha as carnes firmes e a pele sem mácula, ria-se com gosto e sobravam-lhe desejos, muito mais do que uma ovelha aterrorizada ou uma pobre foca sem couro podiam oferecer. Em cada abraço, por breve que fosse, revelava-se como uma amiga entusiasta e travessa. A fama das suas sólidas pernas de ginete e suas mamas invulneráveis ao uso havia percorrido seiscentos quilómetros de província agreste e os seus namorados viajavam de longe para passar um bocado na sua companhia. As sextas-feiras chegavam a galopar à rédea solta de lugares tão afastados que os animais, cobertos de espuma, caíam desmaiados. Os patröes ingleses proibiam o consumo de álcool, mas Hermelinda lá fazia por destilar uma aguardente clandestina com a qual melhorava o ânimo e arruinava o fígado dos seus hóspedes, mas que também servia para acender as suas lâmpadas à hora da diversão. As apostas começavam depois da terceira rodada de licor, quando se tornava impossível concentrar a vista ou agudizar o entendimento.

 

Hermelinda tinha descoberto a maneira de obter benefícios seguros sem armadilhas. Salvo as cartas e os dados, os homens dispunham de vários jogos, e sempre o único prémio era a sua pessoa. Os que perdiam entregavam-lhe o seu dinheiro e também os que ganhavam, MaS obtinham o direito de desfrutar um pedaço breve da sua companhia, sem subterfúgios nem preliminares, não porque a ela lhe faltasse boa vontade, mas porque não dispunha de tempo para dar a todos uma atenção mais esmerada. Os participantes na Galinha Cega tiravam as calças, mas conservavam os coletes, os gorros e as botas forradas de pele de cordeiro, para se protegerem do frio antárctico que assobiava por entre os tabuöes. Ela vendava-lhes os olhos e a perseguição começava. às vezes armava-se tal alvoroço que as risadas e os arquejos cruzavam a noite mais para lá das rosas e chegavam aos ouvidos dos Ingleses, que ficavam impassíveis, fingindo que se tratava só do capricho do vento na rampa, enquanto continuavam a beber lentamente a sua última chávena de chá-de-ceilão antes de irem para a cama. O primeiro que punha a mão em cima de Hermelinda dava um cacarejo exultante e louvava a sua sorte, enquanto a aprisionava em seus braços. O Baloiço era outro dos jogos. A mulher sentava-se numa tábua pendurada no tecto por duas cordas. Desafiando os olhares apreciadores dos homens flectia as pernas e todos podiam ver que não tinha nada por debaixo dos saiotes amarelos. Os jogadores, dispostos em fila, tinham uma só oportunidade de a atacar e quem conseguia o objectivo via-se apanhado entre as coxas da bela, numa agitação de saias, balançando, embalado até aos ossos e, finalmente, levado ao céu. Mas muito poucos conseguiam isso e a maioria rebolava pelo chão por entre as gargalhadas dos outros.

 

No jogo do Sapo um homem podia perder em quinze minutos o ordenado de um mês. Hermelinda desenhava no chão uma marca de giz e a quatro passos de distância traçava um grande círculo,dentro do qual se deitava, com os joelhos abertos e as pernas douradas à luz dos candeeiros de aguardente. Aparecia então ocentro escuro do seu corpo, aberto como uma fruta, como uma alegre boca de sapo, enquanto o ar do quarto se tornava denso e quente. Os jogadores ficavam por detrás da marca de giz e atiravam procurando acertar no alvo. Alguns eram exímios atiradores, de pulso tão seguro que podiam deter um animal assustado em pleno galope atirando-lhe entre as patas duas bolas de pedra atadas por uma corda. Mas Hermelinda tinha uma maneira imperceptível de fugir com o corpo, de escapar-se para que no último instante a moeda perdesse o rumo. As que caíam dentro do círculo de giz pertenciam à mulher. Se alguma entrasse na porta, dava ao seu dono um tesouro de sultão, duas horas detrás da cortina, sozinho com ela, em completo regozijo, para procurar consolo por todas as penúrias passadas e sonhar com os prazeres do paraíso. Diziam, os que tinham vivido essas duas horas preciosas, que Hermelinda conhecia antigos segredos de amor e que era capaz de levar um homem até à porta da morte e trazê-lo de volta transformado em sábio.

 

Até ao dia em que apareceu Paulo, o asturiano, muito poucos tinham ganho essas duas horas prodigiosas, embora vários tivessem desfrutado algo semelhante mas não por uns cêntimos, mas por metade do salário. Por essa altura ela tinha acumulado uma pequena fortuna, mas a ideia de se retirar para uma vida mais convencional não lhe tinha ainda ocorrido, na verdade tirava muito partido do seu trabalho e sentia-se orgulhosa das faíscas felizes que podia oferecer aos peöes. Paulo era um homem seco, de ossos de frango e mãos de menino, cujo aspecto físico contradizia com a tremenda tenacidade do seu temperamento. Ao lado da opulenta e jovial Hermelinda ele parecia um tipo metediço, envergonhado, mas aqueles que ao vê-lo chegaram a pensar que podiam rir-se um bom bocado à sua custa, tiveram uma surpresa bem desagradável. O pequeno forasteiro reagiu como uma víbora à primeira provocação, disposto a bater-se com quem lhe ficasse pela frente, mas a briga esgotou-se antes de começar, porque a primeira regra de Hermelinda era que debaixo do seu tecto não se lutava. Estabelecida a sua dignidade, Paulo sossegou. Tinha uma expressão decidida e algo fúnebre, falava pouco e quando o fazia tornava-se evidente a sua pronúncia espanhola. Tinha saído da sua pátria escapando à Polícia e vivia do contrabando através dos desfiladeiros dos Andes. Até então tinha sido um eremita carrancudo e brigão, que se estava nas tintas para o clima, as ovelhas e os Ingleses. Não pertencia a nenhum lado e não reconhecia amores nem deveres, mas já não era jovem e a solidão ia-lhe entrando nos ossos. Por vezes despertava ao amanhecer sobre o chão gelado, embrulhado na sua manta negra de Castela e com a sela por almofada, sentindo que lhe doía todo o corpo. Não era uma dor de músculos entumecidos, mas de tristezas acumuladas e abandono. Estava farto de vaguear como um lobo, mas também não estava feito para a mansidão doméstica. Chegou àquelas terras, porque ouviu o boato de que no fim do mundo havia uma mulher capaz de torcer a direcção do vento, e quis vê-la com os seus próprios olhos. A enorme distância e os perigos do caminho não conseguiram fazê-lo desistir e quando por fim se encontrou na adega e teve Hermelinda ao alcance da mão, viu que ela era feita do mesmo metal rijo que ele e decidiu que depois de uma viagem tão longa não valia a pena continuar a viver sem ela. Sentou-se num canto do quarto a observá-la com cuidado e a calcular as suas possibilidades.

 

O asturiano tinha tripas de aço e pôde emborcar vários copos do licor de Hermelinda sem que as lágrimas lhe viessem aos olhos. Não aceitou tirar a roupa para a Roda de São Miguel, para o Mandandirun-dirun-dán nem para as outras coisas que lhe pareceram francamente infantis, mas no final da noite, quando chegou o momento culminante do Sapo, cuspiu o mau sabor do álcool e juntou-se ao coro de homens à volta do círculo de giz. Hermelinda pareceu-lhe formosa e selvagem como uma leoa das montanhas. Sentiu acordar o instinto de caçador e a vaga dor do desamparo, que lhe tinha atormentado os ossos durante toda a viagem, tornou-se gostosa antecipação. Viu os pés calçados com botas curtas, as meias grossas presas com elásticos abaixo dos joelhos, os ossos grandes e os músculos tensos daquelas pernas de ouro entre as ondas dos saiotes amarelos e soube que tinha uma oportunidade de a conquistar. Tomou posição, fincando os pés no chão e inclinando o corpo até encontrar o próprio eixo da sua existência, e com uma olhadela rápida paralisou a mulher no seu lugar e obrigou-a a renunciar aos seus truques de contorcionista. Ou talvez as coisas não sucedessem assim, talvez tivesse sido ela que o escolheu entre os outros para a aquecer com o presente da sua companhia. Paulo aguçou a vista, expirou todo o ar do peito e depois de alguns segundos de concentração absoluta atirou a moeda. Todos a viram fazer um arco perfeito e entrar certeira no lugar preciso. Uma salva de palmas e assobios de inveja celebrou a façanha. Impassível o contrabandista ajeitou o cinturão, deu três grandes passos em frente, agarrou na mão da mulher e pô-la de pé, disposto a provar-lhe em precisamente duas horas, que também ela já não podia prescindir dele. Saiu quase a arrastando e os outros ficaram a olhar os relógios e a beber, até que passou o tempo do prémio, mas nem Hermelinda nem o estrangeiro apareceram. Passaram três horas, quatro, toda a noite, amanheceu e soaram os sinos da gerência chamando para o trabalho, sem que se abrisse a porta.

 

Ao meio-dia os amantes saíram do quarto. Paulo não trocou um só olhar com ninguém, selou o seu cavalo, outro para Hermelinda e uma mula para carregar a bagagem. A mulher vestia calças e casaco de viagem e levava atada à cintura uma bolsa de lona cheia de moedas. Tinha uma nova expressão nos olhos e um bambolear satisfeito no traseiro inesquecível. Acomodaram cuidadosamente os objectos no lombo dos animais, montaram e começaram a andar. Hermelinda fez um gesto vago de despedida aos seus desolados admiradores e seguiu Paulo, o asturiano, pelas planícies desoladas sem olhar para trás. Nunca mais regressou.

 

Foi tanta a consternação provocada pela partida de Hermelinda que para divertir os seus trabalhadores a Companhia Pecuária instalou baloiços, comprou dardos e flechas para o tiro ao alvo e mandou vir de Londres um enorme sapo de loiça pintado com a boca aberta, para que os peöes afinassem a pontaria atirando-lhe moedas. Mas face à indiferença geral, estes brinquedos acabaram por decorar o terraço da gerência, onde os Ingleses ainda os usam para combater o tédio dos fins de tarde.

 
Isabel Allende

publicado às 20:48

Isabel Allende:Conta-me um conto

por Jorge Soares, em 23.01.10

Rosa

 

Imagem minha do Momentos e Olhares

 

 Tiravas a fita da cintura, largavas as sandálias, deitavas para o canto a tua grande saia, de algodão, parece-me, e soltavas o nó que te apanhava o cabelo num rabo de cavalo.Tinhas a pele arrepiada e rias. Estávamos tão próximos que nos podíamos ver, ambos absortos nesse ritual urgente, envoltos no calor e no cheiro que, de nós, se desprendia. Eu abria passagem pelos teus caminhos, as minhas mãos na tua cintura levantada e as tuas impacientes. Deslizavas, percorrias-me, trepavas por mim, envolvias-me com as tuas pernas invencíveis, dizias-me mil vezes vem com os lábios nos meus. No momento final tínhamos um vislumbre de completa solidão, cada um perdido no seu abismo ardente, mas logo ressuscitávamos do outro lado do fogo para nos descobrirmos abraçados na desordem das almofadas, debaixo do mosquiteiro branco. Afastava-te o cabelo para te olhar nos olhos. às vezes sentavas-te a meu lado, de pernas encolhidas e o teu xaile de seda sobre um ombro, no silêncio da noite que mal começava. Assim te recordo, calmamente.

 

Pensas em palavras, para ti a linguagem é um fio inesgotável que teces como se a vida se fizesse ao contá-la. Eu penso em imagens congeladas numa fotografia, no entanto, esta não está impressa numa placa, parece desenhada à pena, é uma recordação minuciosa e perfeita, de volumes suaves e cores quentes, renascentista, como uma intenção captada sobre um papel granulado ou uma tela. É um momento profético, é toda a nossa existência, tudo o que foi vivido e está por viver, todas as épocas simultâneas, sem princípio nem fim. A certa distância olho esse desenho, onde também estou. Sou espectador e protagonista.

 

Estou na penumbra, velado pela bruma de um cortinado translúcido. Sei que sou eu, mas sou também o que observa de fora. Conheço o que sente o homem pintado sobre a cama revolta, num quarto de vigas escuras e tectos de catedral, onde a cena aparece como um fragmento de uma cerimónia antiga. Estou ali contigo e também aqui, sozinho, noutro tempo da consciência. No quadro o casal descansa depois de fazer amor, a pele de ambos brilha húmida. o homem tem os olhos fechados, uma mão no peito e outra na coxa dela, em íntima cumplicidade. Para mim esta visão é recorrente e imutável, nada se altera, sempre o mesmo sorriso plácido do homem, a mesma languidez da mulher, as mesmas pregas dos lençóis e cantos sombrios do quarto, sempre a luz da lâmpada a iluminar os seios e as faces dela do mesmo ângulo, e o xaile de seda e os cabelos escuros a cair com igual delicadeza.

 

 

Cada vez que penso em ti, vejo-te assim, assim nos vejo, detidos para sempre nessa tela, invulneráveis ao estrago da má memória. Posso recriar longamente essa cena, até sentir que entro no espaço do quadro e já não sou o que observa, mas o homem que jaz junto a essa mulher.

 

 Então rompe-se a quietude simétrica de pintura e escuto as nossas vozes muito perto.

 - Conta-me um conto - digo-te, - Como queres que ele seja? -

Conta-me um conto que nunca contasses a ninguém.

ROLF CARLÉ

 
Do Contos de Eva Luna - Isabel Allende

publicado às 19:24


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