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Conto - Expiação

por Jorge Soares, em 20.06.15

expiação.jpg

 

          Tínhamos uma vontade inexplicável de ter filhos desde cedo. Acredito que não racionalizávamos aquilo. Era a natureza nos impulsionando à reprodução, como no dito schopenhaueriano? Aquilo era vontade de viver? Teríamos sido selecionados desde cedo pela natureza como corpos fortes e saudáveis para gerar e cuidar de filhos, enquanto imaginávamos que nos selecionávamos mutuamente em razão do mero gosto e afeições? Ou seja, se tratava de uma simples tentativa de perpetuação da espécie? Não sei dizer, nunca soube.

          Alice dizia que queria ter filhos e eu imaginava na mesma hora o rosto das crianças, seus choros, suas brincadeiras, suas descobertas do mundo. O mundo era uma coisa enorme que precisava ser explorada e descoberta. Mas e depois? Sempre me senti frustrado com essa pergunta. É que no mais das vezes não há nada depois. Passei anos trabalhando ininterruptamente, fazendo contatos, explorando o network, bancando o boa pinta, almoçando na casa de campo de grande sócios da empresa, passando feriadões nas mansões em ilhas deles, fingindo ter algo em comum com suas vidas rasas, interpretando um papel. Tudo isso para ter o que tive. E depois?

        Depois veio aquela ideia de Alice de termos um filho. Eva também tinha. Sinto muita pena de Eva até hoje. É que ela me veio com a ideia de filhos antes de saber que era incapaz disso. Estéril. Onde entra Schopenhauer aí? Afinal, uma mulher estéril não está na natureza? Não obedece suas leis? Não modifica o que pode com a sua existência? Eva não ouvia o crescei e multiplicai, seu corpo não atendia a nenhum intento divino e, não obstante, Eva era uma deusa. Não sei até que ponto posso dizer isso, mas explorei o corpo de Eva como uma metrópole a suas colônias, até que ela ficou seca. No final havia restado apenas uma mulher incapaz de ter filhos, e aquilo não era agradável.

    

 

 

Mario Filipe Cavalcanti

 

Retirado de Samizdat

 

publicado às 21:13

Conto - cinco minutos

por Jorge Soares, em 12.07.14

Conto, cinco minutos

 

OS OLHOS. SIM, OS OLHOS FORAM a primeira coisa que eu tinha visto. Estava um pouco afobada naquele dia. Dia de feira e eu nunca gostei de dias de feira. Quando era menorzinha e mainha fazia aquela questão de que a seguisse ao supermercado, ficava fula. Batia o pé, não queria nem gostava, mas mainha sempre foi daquele seu jeito irredutível, quase déspota russa – feliz somente por ser esclarecida, mas sem qualquer vontade de condescendência. Pensando bem por esses lados, acho que virei uma réplica de mainha.

 

          Mas o fato é que nunca gostei dos dias de feira. Ultimamente, já adulta, tinha três empregadas em casa, mas agora com a carga de direitos que elas têm não dá mais pra mantê-las todas e ainda atualizar meu closet.  Resolvi eu mesma fazer esse trabalho que nunca considerei digno de mim.

 

          No entanto, o grande problema que tive não foi o de realizar essa tarefa comesinha. O grande trabalho que tive, e nem imagino como, foi ter descoberto essa face minha que nunca pensei que estivesse tão latente em mim. Essa face minha que agora penso e nem imaginava que um dia poderia pensar – coisas assim.

 

          Tinha abaixado a alça do carrinho de compras pra não ter que segurá-lo no elevador. Estava esbaforida somente com a ideia de ter de sair de casa para aquilo e não ter sequer uma filha para obrigar a me seguir para dar-me ao menos alguma decente companhia. E pensando isso vi as portas do elevador se abrirem ao chegar à garagem. Inclinei-me para puxar a alça do carrinho e quando tornei a olhar foi que vi os olhos.

 

          Os olhos dele como os olhos de lince. Abertos e delgados, puxados e melados com um mel, um mel tão cor de mel que nunca dantes eu vira em vida, sem falar que lá em casa tudo é verde ou azul e isso tem um tempo que perde a graça. Aqueles olhos entraram e me deram bom dia. Não sei como respondi. Estava um tanto paralisada pelo encanto que tinham. Mas estava consciente. Sim, estava! Recompus-me e respondi de volta educadamente.

 

          Mas o tempo que passou entre respondê-lo e recompor-me foi o suficiente para a porta do elevador fechar e sentirmos o solavanco da máquina subindo lentamente. Fiquei contrariadíssima com aquilo e não sei como expressei, mas ele notou e perguntou se eu tinha perdido o andar. A voz aveludada. Sim, não sei fazer comparação mais racional. A voz dele era tão aveludada que me deu calafrios. Assim que ouvi a voz penetrando lentamente no mais profundo dos meus ouvidos internos, olhei para ele, mais precisamente para sua boca e o desenho desta era tão sensível e tão angelical que a vista de vê-lo falando tomou-me.

 

          Não sei por que, mas ao vê-lo falar, sua boca mexer e sua voz soar, ao mesmo tempo em que seus olhos se apertavam e suas mãos gesticulavam, eu parei no tempo. Senti no corpo todo um arrepio seguido de um desejo crescente, um desejo que me tomava toda num crescendo frenético. Meu Deus, eu não precisava daquilo. Eu não precisava de nada daquilo. Adulta, empresária, esposa, e ali no elevador como uma adolescente se sentindo atraída por um moleque de seus lá dezessete anos? Mas o tempo tem momentos fulcrais, como pontos cegos de sua existência. Nesses momentos a gente não pensa, sente. Eu sentia um universo de hormônios trepidarem em meu organismo vivo. Eu estava viva, era ali muito mais que uma máquina amorfa.

 

          Ele, com aquela voz poderosa, perguntou-me de novo se estava me sentindo bem. Acho que perguntou aquilo três vezes enquanto estava absorta em meu ensandecido momento de epifania. Respondi que sim, desajeitadamente como uma menina que somente agora chega à puberdade sem saber como, mas não sei o que tinha na minha voz. Minha voz estava sensual. Eu estava sensual. Louca varrida de vontade. Ele disse que desceria somente na cobertura e lá eram vinte e cinco andares e o elevador que, malgrado novo, apresentava problemas, subia lentamente ainda o décimo. Não sei se era o elevador que ia lento ou se era o tempo que havia congelado. Não sei dizer.

 

          Mas não consegui mais vê-lo. E soltei a alça do carrinho numa atitude suspensa, com a boca entreaberta, como que à espera. Ele já tinha exercitado dessas coisas com suas colegas, certamente. Agora, não sei se para sua cabeça infantil eu seria um troféu a ser mostrado aos amigos, um troféu que causasse inveja, mas na hora eu só havia pensado que... Não havia. Ele me tomou de assalto com um abraço de braços apertados trazendo pra junto de mim o corpo e eu senti... Senti-o todo, com as roupas e tudo. Estava rijo como o meu desejo.

 

          O elevador trepidava a aproximação do vigésimo andar e ele já percorria os montes dos meus seios com a firmeza de suas mãos de lavoura – não sei como adquirira aquele atributo de mão que só os campais adquirem, mas na hora era de nada que eu sabia, e apenas sentia o arrepio de uma mão percorrendo a minha pele. O mundo era uma mão que percorre a pele. Mais nada. A sedução de uma mão que percorre a pele. E foi aí que minha mente pediu o seu quarto. Minha pele pediu o seu quarto. Ele encostou a boca em meu ouvido e pediu-me no seu quarto. A voz dele toda aveludada e sensual, soando baixinho num sussurro quente que arrepiava os pequenos pelos de minha orelha, num quente sussurro como a brisa do mar... Eu queria. Eu iria. Mas... Eu queria? Eu iria? Como poderia? Olhei de relance e o carrinho de compras no chão do elevador lembrou-me a casa, o marido e a fome. O mundo é a fome que a gente mata de variadas formas. Mas aquela fome não poderia eu matar.

 

          Vigésimo quinto. As portas se abriram e ele me puxou, mas eu hesitei, larguei suas mãos e apertei rapidamente no botão de fechar as portas. Não, não iria evitar com isso a traição. Eu já havia traído o meu marido no elevador do prédio, sordidamente, como uma putinha barata. Mas o que eu queria evitar era o pior. Era a cama daquele estranho dos andares de cima, de quem eu conhecia apenas os olhos, o corpo, a força, a boca, a língua, a virilidade, a traição de meu marido. Não podia ir... A última coisa que vi, enquanto as portas fechavam, era a imagem que se podia fazer de seu membro marcando a calça, ele estava louco de desejo. Mas eu? Quem eu era? Eu era uma loucura repleta de desejo, do mais vil, do mais sórdido, do mais mordaz. Eu sentia na pele a excitação dos poros e...

 

          – Querida?!

          – Hã?! Quê?

          – Faz cinco minutos que estou aqui falando com você e você aí divagando como uma louca! O que houve?

          – Hã?! Ah! Nada, Augusto, absolutamente.

          – Então?

          – Então o quê?

          – Responda a pergunta.

          – Que pergunta?

          – A pergunta da porcaria da revista! Você não me chamou aqui pra matar hora fazendo esse jogo besta de casais?

          – Ah, Augusto! Meu Deus! É mesmo, me perdoe amor. Por favor! Enfim, faça a pergunta de novo que essa quem tem de responder sou eu porque se não me engano é sobre você, né?

          – “Qual parte de seu marido você mais acha atrativa e encantadora?”, está assim descrita a pergunta.

          – Os olhos. Sim, os olhos foram a primeira coisa que eu vi.

 

Mario Filipe Cavalcanti

 

Retirado de Samizdat

publicado às 21:07

Conto - Olhares Paralelos

por Jorge Soares, em 14.06.14

Olhares Paralelos

EU SABIA QUE ELE PRECISAVA.

 

Na verdade, a necessidade que tínhamos não tinha nome, mas era nossa – não somente dele. Da parte dele talvez isso fosse um simples fato, só que da minha não. Foi ele quem me veio primeira vez falar da namorada, daquele problema que tiveram. Po r que ele achava que eu poderia ser o seu conselheiro, o seu guru? Acaso eu tenho lá cara de compadre Quelemém? Na verdade ninguém do compadre Quelemém soube a cara, mas dele o que sei apenas é a certeza, que hoje faço, de que “o diabo vige no homem”, nada mais.

 

E daí ele me veio. Não é que eu não queria que viesse, mas é que há muito tempo eu estava sem precisar daquilo tudo, a viver num rio de marasmo que desgostava, mas depois de tudo aquilo até passei a de alguma forma apreciar. No entanto, logo que chegou fiz a inferência um pouco falsa de que era algo que de algum modo precisava, daí ele ficou. Na vida tem coisas que nos vem. Há coisas que me vieram e eu não sei nem explicar porque as aceitei tão de bom grado como se fosse um grego recebendo um mendigo com a falsidade da espera de Hermes. E foi assim que ele me veio. E fui assim que eu de algum modo também se me fui a ele.

 

Estávamos naquele piquenique de família de final de semana. A mãe dele, dona Etelvina, parceira de décadas a fio de observatório da vida alheia com minha mãe. Não obstante, nunca havíamos nos visto, senão naquele dia em que descemos juntos do ônibus cheio suspirando, e caminhamos meio paralelamente até atravessarmos a mesma rua e entrarmos em portas paralelas. Olhamos um pro outro de relance com um olhar que de certo modo compreendia que alguma coisa em nossa vida um dia seria paralela. Mas o olhar que trocamos foi bem mais que paralelo e tenho a fraca, mas real impressão de que nosso olhar cansado de todo um dia de estudos longe de casa, e do suor, e do calor do Recife, e da umidade excessiva do ar, e de toda aquela loucura duma cidade que cresce como um adolescente sem a orientação de um adulto e fica assim desordenada, era um pouco do olhar do cão sem dono e vira-lata que vaga por aí meio que pedindo com a vista. Naquele dia entrei em casa com duas certezas que não eram certas, mas eram de algum modo certeiras em mim: finalmente eu conhecera o filho da vizinha e o olhar dele me pedia algo.

 

Naquela “excursão”, como meu pai fazia questão de anunciar, fomos meio que apertados como gado de corte nelore uns em cima dos outros e coube a nós dois ficarmos apertados pela tia Adalgiza que com sua gordura de anos a fio firmada no doce, ocupava dois lugares inteiros. Desculpa te apertar. Ele me disse. Sem problemas, cara. Eu respondi. Tia Adalgiza... – baixei a voz – tem certo medo de morrer de fome. Rimos. E foi aquilo, tínhamos sido amigos a vida toda e não nos dávamos conta. Por vezes descobrimos num amigo recém-achado, esse mistério místico do universo, de sentir nele alguém que já se conhecia há décadas – décadas que nunca foram.

 

 

 

 

Mario Filipe Cavalcanti

 

Retirado de Samizdat

publicado às 21:08

Conto - O namorado de vivi

por Jorge Soares, em 08.02.14

 

–– ORA, MAS VIVI era praticamente da família! E não me venha com essa história

de que “todo mundo diz isso!”. Vivi era, sim, praticamente da família! 

 

        Lembro-me ainda do dia em que fomos para Lagoa de Itaenga, onde fica a fazenda de vovô e naquele dia ensolarado, debaixo da cachoeira friíssima, conheci a Vivi... Eu tinha escorregado, sabe?, era uma criança, ainda, uma menina de meus lá oito anos, dos quais os oito tinham transcorrido em Recife. A única coisa que eu sabia da vida aventureira de criança era o que me diziam os parques da Jaqueira e o Sítio da Trindade!

 

Não, não mesmo, nunca frequentei o Parque Treze de Maio... Mainha e painho não deixavam, diziam que lá só tinham crianças pobrezinhas e gente se esfregando, uma pouca vergonha! Enfim, tudo o que eu sabia de uma vida aventureira se encontrava naqueles parques que acabo de lhe dizer; Ademais disso, vivia nos Shopping Centers, dentro dos cinemas e Game Stations... Essa era toda minha vida de criança no Recife.

 

Quando encontrei a Vivi na cachoeira lá em Lagoa de Itaenga eu estava numa situação inusitada, ao menos para mim naquela época, sabe? Calma, vou dizer. Aliás, já disse, eu tinha escorregado e me relei todinha nas pedras da cachoeira, se não fosse a Vivi... Ah, meu Deus, Vivi era praticamente da família!

 

Tudo bem, vou contar, ela ali, estava na cachoeira, me olhando de rabo de olho, era que eu, menina da cidade grande, queria não junto de mim os matutos da roça, mas veja, não me leve tão a mal, isso era o que me tinham incutido mainha e painho, eles, grandes médicos, me diziam que as perebas dos ricos e a dos pobres eram diferentes, veja só! Eu só podia crer como verdade... Além do mais, minha própria avó me dizia que quando rico morre, morre diferente de pobre. Confesso que morremos sim, diferentes, nós no luxo, eles na penúria, sofrendo sofrimento horrível... Caixão e vela preta!

 

Não que eu queira dizer que vamos para lugares diferentes..., sim, eu conheço a tal parábola do rico e do pobre... Mas não era pra menos, sendo Jesus filho de carpinteiro, achas mesmo que ele ia colocar o pobre no inferno e o rico no seio de Abraão? Ah, meu filho se toque!

 

Você não acha que estamos fugindo muito do foco? Tenho amigas que vivem me dizendo que gosto tanto de digressões que barro aquele meu velho ex-professor de Ciência Política e Teoria Geral do Estado!

 

O fato é que Vivi veio nova ainda aqui pra casa, todo mundo tinha gostado do que ela tinha feito –– pulou na cachoeira e foi nadando no fito de me socorrer lá em baixo... Pie só, eu estava sendo puxada pelas águas da cachoeira, e mais em baixo tinha outra... Seria mortal. Vivi me salvou.

 

Em troca disso, painho considerou dar-lhe um prêmio: uma oportunidade de viver na capital do Estado. Veja bem, você não acha inusitado, algo bom por demais da conta, para uma pessoa tão pobre e desajustada na vida? Os pais de Vivi cortavam cana, trabalho braçal insuportável naquela usina duns tais Campellos... Sabes qual seria sua maior herdade? Cortar cana como os pais e irmãos...

 

Lembrando disso eu até sinto que painho deve de estar agora no céu ao lado da Virgem ouvindo essa história que estou lhe contando e se arrepiando todo... Deus que lhe ilumine a alma! A caridade que fizemos, ninguém faz hoje em dia... Vivemos tempos de mentes secas, duma seca pior que a do sertão.

 

Daí, Vivi cresceu comigo, estudou numa escola daqui mesmo da capital. Como? Particular? Não, não, mainha colocou ela numa escola pública boa. Isso bastava, não? Considerando que ela não iria sequer estudar em Lagoa de Itaenga!

 

O que ela virou? Ora, claro que Vivi era nossa empregada! Ela foi por nós empregada para poder ter o dinheiro dela, para poder usar como bem lhe apetecesse, para poder ser alguém, entende? Ah, mas se eu ganhava mesada era porque era filha, se Vivi ganhava o dinheiro dela, era porque era trabalhadeira, e isso a ninguém repugna!

 

E daí, com a morte de painho, que Deus o tenha em firmes tronos, mainha já estava bastante velha e eu já casada e morando na mesma casa nossa no Poço das Panelas. Vivi, grande, tornou-se minha ajudante sem igual. Uma ajudante número um, sem falar que ganhou lá uns aumentos salariais... 

 

       Claro que foi por conta do plano real! Mas foram aumentos! Não diga que não foram, que importa o aumento das coisas, Vivi morava comigo, comia do meu pão, bebia do meu vinho, quer dizer, vinho mesmo ela num bebia não, não tinha costume, mas bebia da minha água, nunca precisou de comprar uma bolacha sequer, como disse, era praticamente da família!

 

       Meus filhos nasceram, e tanto eu quanto o Adalberto ficamos felizes da vida, nossa vida seria ainda melhor, e Vivi, ora, Vivi era a única pessoa em quem nós confiávamos para cuidar deles, para gerir seu carinho e cuidado... Vivi foi nossa babá.

 

       Mas veja só como o tempo passou! Estou eu agora com meus quarenta anos e minha filha mais velha com vinte! Vivi? Acho que deve ter minha idade, sempre foi maiorzinha, sabe?, nunca perguntei nem nada! Carteira de trabalho? Ora, já não falei que era quase da família?! Você assinaria a carteira da sua mãe? E não obstante ela sempre trabalhou pra você!

 

       Mas o problema veio quando Vivi arrumou aquele namorado! Quem já se viu, uma mulher de sues quarenta anos arrumando namorado, e foi numa folga que eu dei a ela para ela brincar o São João, ah meu Deus como eu me arrependo disso! Arrumou um traste de um namorado pelos lugares aí em que foi e, o que é pior... Engravidou! Sim, querido, isso mesmo, EN-GRA-VI-DOU!

 

       O que eu poderia fazer, meu Deus!, criar o filho de Vivi? Mas é claro que não! Já criei a própria Vivi, junto com minha mãe, ela era praticamente da família, tinha quarto, tinha cama, mesa e banho, tinha tudo, família e carinho, e jogou tudo por cima da janela como se fosse nada.

 

       Espaço? Mas é claro que minha casa tem espaço, mas a questão não é espaço, meu caro, é de espaço que vem o dinheiro que se gasta com comida, médico, consultas, escola, educação, moral e bons costumes e outras coisas mais que criança precisa? E veja, Vivi não era um bebê, tinha lá seus oito, nove anos, como eu, quando veio... Além do mais, na minha casa mando eu e meu marido, mas quando Adalberto cisma com alguma coisa, só posso fazer meu papel de boa diplomata. Adalberto disse categórico: “Não quero saber de menino chorando por aqui. Meus filhos já criei, essa daí que crie os dela”!

 

       Ora, não recrimine o Adalberto por dizer “essa daí” de Vivi, é que, os homens são mais estourados, não sabe? E ele, como quase um pai que foi pra Vivi, não podia ficar calado... Não, não, Vivi não foi minha madrinha de casamento, pra seu governo tenho grandes amigas, como poderia chamar Vivi?

 

        Falamos pra ela sobre esse problema e ela mesma resolveu voltar pra Lagoa de Itaenga, pra criar o filho lá. Disse ela, dis-se-E-la, que o tal namorado ia ajudar, quero ver como, só pode ser cortando cana!

 

        Não temo ter demitido Vivi, ou melhor, que conste que ela mesma é quem se despediu, só dói aqui no peito, sabe? Vivi era praticamente da família!

 

        Minha filha? Que tem minha filha? Sim, sim, minha filha está grávida do namorado... Mas veja, ele é estudante de direito da Universidade Federal, os pais são advogados e procuradores, tem escritório próprio, etc., boas relações na alta sociedade recifense, o rapaz faz despachos com desembargadores federais e estaduais..., não é a mesma coisa! Minha filha está bem assistida, e fez o que era certo, não foi com um desses quaisquer que ficam dançando forró por aí...

 

        Entenda, a mulher precisa mesmo de quem lhe dê de tudo. Homem sem dinheiro num pode ter mulher. Só tem mulher quem pode.

 

        Além do mais, já disse mil vezes, parece que você ainda não entendeu!, Vivi era pra-ti-ca-men-te, da família... Nunca disse que ela e-ra da família.

 

Mario Filipe Cavalcanti

publicado às 21:18

Conto - Voo

por Jorge Soares, em 14.12.13
Voo
Imagem de aqui
A escola circense tinha sido um bom lugar... Por um instante seus devaneios conseguiram encontrar um norte, um porto, um atracamento qualquer, qualquer lugar naquele mar de vastidão e loucura mental em que estava absorto naqueles dias. As escolas geralmente são, concluiu em seguida, não pelo que aprendemos nelas, tudo muito maçante, mas pelos amigos que conhecemos e por experiências como a Maria.
Maria... Maria era um ensandecimento que ele tinha. Mulher, em todo o aspecto forte e poderoso do termo, palavra que, parece, hipnotiza. A mulher mais determinada que um dia já conheceu, cheia de si, cheia de um declarado feminismo que lhe deixava ainda mais atraente... Uma trapezista!
Engraçado como esse nome dito assim deixava a mãe dela transloucada! Nunca aceitara a profissão da filha. Trapezista... Eles já tinham rido tanto disso num pretérito mais que perfeito que tiveram..., lembrava. Na verdade, tinham sido apenas amigos – para Maria, uma felicidade só, para ele, angústia. Era esse o seu pretérito mais que perfeito: imperfeito. Mas, pensando por outro lado, ao menos eram alguma coisa um do outro...
Os saltos de Maria eram tão perfeitos e calculados que se os organizadores de olimpíadas deixassem de ser pretensiosos e reconhecessem nas coisas de circo além de arte, esporte espetáculo, fariam isso só para satisfazer um intuito pré-concebido de premiar com os louros de Maratona a diva trapezista. Maria era. O que estava fora dela não era. O que não estava em Maria não estava no mundo. O mundo só é belo quando a nossos olhos ganha cor. Maria era a cor dos olhos dele.
As lembranças dela sempre eram determinantes, encorajantes, fortes, era uma amazona, seu signo?, se isso existisse, deveria ser o mesmo de Palas Atena, a diferença entre ambas era a lança e as armaduras; a lança de Maria, na realidade sua arma de guerra, era o trapézio, suas armaduras: as carnes duras do corpo.
Houve um momento quase fatal para ele, quando Maria, após um dia de exercícios e enquanto conversavam no quarto dela, dormiu. O corpo de atleta grega, espartana muito mais firme e rija que qualquer marmanjo da Hélade, refletindo os últimos raios amarelados do sol, o pequeno short que usava, todo florido (que contradição!, que bela complementação!), a blusinha quase transparente, os seios brancos e os mamilos rosados, de aço erguido, desafiando, desafetados de qualquer mansidão e pudor... Ele quando deu por si, já estava quase por cima dela. Maria, por debaixo, acordava de seu sono subitamente, num movimento involuntário de proteção, dando-lhe um soco! 
Não mais tentou.
Eram amigos. Amizade é amor na igualdade, amor desafetado da posse e do sexo, dizem. Quando cravada na desigualdade dos sexos, das mentes e dos corpos, nada mais seria que um embuste de Eros..., uma armadilha. Ele caíra. Ela, firme e forte era Maria, isto é, ela mesma, a trapezista mais determinada e dura que já conheceu.
Por algum instante, naquela época, chegara até mesmo a duvidar do gosto de Maria, do desejo dela, de sua opção sexual, ri vagamente ao se lembrar disso. Pensou que Safo, na ilha de Lesbos, também devia ter sido muito bela e determinada... E esse era um pensamento que lhe consumia, que lhe engolia por dentro, que lhe queimava como um ácido sulfúrico cinzento, pastoso e destruidor... 
Maria era um vulcão que crepitava dentro dele com larvas tão quentes quanto infernais. Naquela fase, ele estava em plena erupção. E aquele inferno era-lhe o céu.
A natureza parece que é má. Todos os seus hormônios desejavam Maria, todos os seus tremores internos, parece que ela tinha sido escolhida para a manutenção de sua existência, para a perpetuação de seus genes, de seu corpo, de seu ser, perto dela ele se esquecia de que um dia não mais seria. Ele simplesmente era, sem o quando, por quê, onde, pra onde, sem as idiotices da vida. E Maria? Maria era a indiferença travestida em amizade.
Suas dúvidas sobre Maria persistiram até que foram trabalhar naquele circo recém-chegado, chamado Grande Circo Brasileiro. Um nome pomposo bolado por um proprietário cheio de ego. Maria tinha sido contratada tão logo chegara. Na fila ainda, em pé, tinha chamado os olhares de seu Bernardo Brasileiro, o dono. Ele, sentado em sua cadeira, na frente de um birô velho e jocoso, levantou a vista e em vez de dizer “próximo!”, disse “você!” e apontou pra Maria. Ela, sem medo nenhum, furou uma fila de dez pessoas injustiçadas e sentou-se majestosa em sua frente.
Contratada. Palavra bonita quando se precisa de dinheiro. Levantar-se e ir-se embora? Não, ela olhou para seu Bernardo com o carinho que um gato nos olha quando tem fome e pediu que também contratasse o melhor amigo dela. O velho proprietário olhou, calculou com os olhos, as pestanas trêmulas, deu um mixoxo e assentiu com a cabeça. Maria conseguia tudo o que queria, desde sempre, graças a ela é que ele também estava devidamente contratado e trabalhando naquele tal Circo Brasileiro.
Feliz? Não, não, o pobre estava era afetado com aquelas palavras terríveis: “melhor amigo”...
E agora o instante terrível! Nunca esquecia com rigor de detalhes o momento em que adentraram primeira vez a lona do Grande Circo Brasileiro... Seu rosto transfigurava-se no instante exato em que sua memória vaidosa o guiava para essa parte da história sua. Na transfiguração, nenhum rosto judaico-bíblico, mas Mefistófeles, ele próprio, rogando promessas faustas. Ficava cabisbaixo. Pensar que...
No momento exato em que entraram pela lona do circo, saía Marcos, o equilibrista. Maria e Marcos toparam-se um no outro. Não lembra se ela bateu a cabeça, se tinha tomado algum remédio com efeitos colaterais gravosos, se as pílulas anticoncepcionais que tomava desde o dia em que tinha transado com o rapaz que foi concertar o telefone na casa dela tinham lhe feito mal, ou mesmo se algum mal olhado tinha sido jogado nela, mas o fato é que Maria o surpreendeu, o desiludiu, repentinamente, sem mais nem menos, como num sopro de vento, levantando poeira, e folhas secas de árvores, num redemoinho, e o diabo no meio...
O diabo é a cara que temos quando desgostamos das coisas. Deus?, é um clamor.
Mas ainda que clamasse, não haveria retorno ao eco de sua voz. Ela estava apaixonada. Perdida. Perdidamente. Doidamente. Severamente. Transloucada. O cupido encontrou-se com ela e as chamas que brotaram de sua seta eram maiores que as de Santa Tereza em êxtase!
Mas o que era aquilo? Tinham apenas se chocado, se topado, e já era suficiente? Ele que há tanto tempo a acompanhava, era o baú de seus segredos, o amigo, o irmão, o melhor amigo... A pessoa mais indicada para receber em cheio os dotes de seu amor, e ela, dura e impassível. Senhora de si, de sua vida, de seus sentimentos, de suas paixões mais secretas, determinada, feminista... Ora, esquecera-se de seu feminismo? Porque estava, então, tão vitimada com aquele homem que não lhe dava qualquer bola? Pensava. Poderia dar-lhe o braço, um dedo, qualquer coisa baixa que demonstrasse indiferença, mas não. Ante ao amor a gente é... Não é.
Marcos era também determinado, impassível, senhor de si, de seus sentimentos e de suas paixões. Nada na beleza de Maria, na essência de Maria, nas curvas de Maria, na existência de Maria, no firme modo como saltava no trapézio, de sua firmeza, nada em absoluto afetara sequer de longe o ímpeto de Marcos. E Maria, não obstante, só falava dele, só notava ele, só queria ele, só pensava nele... 
Lembrou-se que teve um momento em que ela chegou com uma história de que tinha sonhado com ele, e naquele instante já não aguentou mais! Levantou-se, virou-lhe as costas e saiu. Maria era um colibri no trapézio, leve e firme, mas um colibri que voara para outros braços. Os seus há tanto abertos, esperando, ansiosos, enquanto dizia para si “vem, colibri”, mas ora!, o mundo dá voltas e numa dessas voltas a gente cai. Mas o que o deixava ainda mais preocupado era o fato de que os braços que a recebiam não estavam abertos. Ele a amava, pensava em seu bem-estar, se não seria com ele, ao menos que fosse com o outro, mas o outro...
Foi aí que aquilo... Ri amargamente até hoje quando se lembra disso. Assim, de supetão! Inesperadamente, de repente, num susto do qual até hoje não se recuperou, empalidece sempre que lembra: Marcos estava apaixonado também, repentinamente, imensuravelmente, intensamente, de supetão, depois de um rápido choque, na entrada da lona do circo..., só que por ele.
Poema homônimo de Edweine Loureiro: 
"Voo 
Diz o trapezista:
vem, colibri.Não te deixo cair... 
Mas, para seu terror,
a trapezista voou
rumo ao equilibrista,
que a abandonou".

Mario Filipe Cavalcanti

 

Retirado de Samizdat

publicado às 17:44


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