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Conto:Farrusco

por Jorge Soares, em 26.09.09

 Melro

Imagem minha do Momentos e olhares

 

Dentro da poça do Lenteiro, há rãs. Naquela água coberta de agriões e de juncos moram centenas delas. Mas à volta, na sebe de marmeleiros, silva-macha e alecrim, vive Farrusco, o melro. Sabe-se isso desde que, em certo entardecer de Agosto, a Clara perguntou ao cuco que se pousara num pinheiro em frente: 

- Cuco do Minho, cuco da Beira: quantos anos me dás de solteira? 

A rapariga era toda ela de se comer. E o cuco, maroto, olhou de lá, viu, e respondeu: 

- Cucu... Cucu... Cucu... 

Três anos! A moça ficou varada. O Rodrigo acabava a tropa de aí a dias, e prometera levá-la à igreja logo a seguir. Que significava, pois, semelhante demora? Aflita, chegou-se à Isaura, a alcoviteira, mouca como um soco, que a seu lado sachava milho, e gritou-lhe aos ouvidos, desesperada: 

- Ora vê?! Que lhe dizia eu? A Isaura nem queria acreditar. 

- Ouvirias mal!... 

- Olhe lá que não ouvisse! Contei-os bem. 

E foi então que Farrusco soltou a sua primeira gargalhada. Coisa bonita! Uma cascata de semicolcheias escaroladas, como se alguém rasgasse um pano cru, rijo e comprido, no silêncio da tarde serena, que o desânimo de Clara enchera subitamente de melancolia. Nada mais do que isso. Mas o bastante para mudar o sinal do desencanto. A força virgem daquele riso chamou a vida à consciência dos seus direitos. De parada, a natureza animou-se. Uma aragem muito branda e muito fresca atravessou o espaço. Tudo quanto era mundo vegetal ondulou levemente. A própria terra, sonolenta do calor do dia, acordou. £ de aí a segundos começou a maior sinfonia que se ouviu no Lenteiro. 

Chamadas por aquela volatina, as rãs subiram à tona de água e puseram-se a dar força sonora às tímidas vozes ocultas e anónimas que se erguiam do limbo. Às rãs, juntaram-se logo, pressurosos, os ralos, as cegarregas, os grilos, e quanta arraia miúda tinha fala. A esta, a passarada. Até que não ficou bicho sensível e solidário alheio ao Tantum Ergo pagão. Um coro imenso, cósmico e fraterno, que enchia o mundo de confiança. 

Clara, arrastada pela onda de harmonia, apelou da sentença: 

- Cuco do Minho, cuco da Beira: quantos anos me dás de solteira? 

O que foste fazer! O malandro do pitoniso, se há pouco fora cruel, desta vez requintou. 

- Cucu... Cucu... Cucu... Cucu... 

Parecia uma ladainha! A lengalenga não parava mais. Ou de propósito, ou porque o mundo, naquele instante, era um orfeão aberto, o ladrão dava mais anos de solteira à rapariga do que estrelas tem o céu. 

Desapontada, a cachopa regressou às ervas daninhas do lameiro. E, num amuo justificado, deixou correr as horas. A seu lado, comprometida, a Isaura, que tinha garantido o noivado a curto prazo, falava, falava, sem conseguir adoçar-lhe no espírito o fel da desilusão. E quando a noite se aproximou disposta a selar com negrura aquela tristeza humana, foi preciso que Farrusco, novamente solidário com os direitos da moça, saltasse da espessura da sebe para o cimo de um estacão, e fizesse ressoar pelo céu parado e quente uma segunda gargalhada. Discordância de tal maneira fresca, sadia, prometedora, que a rapariga ganhou ânimo. Pôs os olhos em si, na força criadora das margaridas abonadas, no ar de coisa sã que toda ela ressumava, e sorriu. Depois, confiante, juntou a sua alegria à alegria do melro. Soltou então também uma risada cristalina, que partiu da verdura do milhão, passou pelas penas luzidias de Farrusco, e foi bater como um castigo no ouvido desafinado do cuco. Um segundo a natureza esteve suspensa daquela gargalhada. A vida homenageava a vida. Depois continuou tudo a cantar. 

- O estafermo do cuco, tia Isaura! Até um melro se riu!... 

- Riem-se de tudo, esses diabos... 

Mas o lusco-fusco começava a empoeirar o céu, e Farrusco ia fechando docemente os olhos, deitado na cama dura. A vida que lhe ensinara a mãe, simples, honesta, espartana, não lhe consentia luxos de noitadas. Pela manhã, ainda o sol vinha lá para Galegos, já ele tinha de estar de perna à vela, pronto para comer a bicharada da veiga, e rir de novo, se alguma tola de Vilar de Celas se fiasse outra vez no aldrabão do cuco. 

 

Miguel Torga, Os Bichos

 
Retirado de Contos de Aula

publicado às 21:35


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