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A ti mulher

por Jorge Soares, em 30.03.13

recomeça

 

Imagem minha do Momentos e Olhares

 

Recomeça…


Se puderes,
Sem angústia e sem pressa.
E os passos que deres,
Nesse caminho duro
Do futuro,
Dá-os em liberdade.
Enquanto não alcances
Não descanses.
De nenhum fruto queiras só metade.

E, nunca saciado,
Vai colhendo
Ilusões sucessivas no pomar
E vendo
Acordado,
O logro da aventura.
És homem, não te esqueças!
Só é tua a loucura
Onde, com lucidez, te reconheças.

Miguel Torga, Diário XIII 

 

Troia, Novembro de 2012

Jorge Soares

publicado às 17:25

Outro Natal

por Jorge Soares, em 25.12.12

Outro natal

Imagem minha do Momentos e Olhares

 

 

Outro natal,
Outra comprida noite
De consoada Fria,

Vazia,
Bonita só de ser imaginada.
Que fique dela, ao menos,
Mais um poema breve
Recitado Pela neve
A cair, ao de leve,
No telhado.
Miguel Torga
Portalegre
Dezembro de 2011
Jorge Soares

publicado às 18:48

E os passos que deres ....

por Jorge Soares, em 25.08.12

E os passos que deres ....

 

Imagem minha do Momentos e Olhares

 

Recomeçar

 

Recomeça....
Se puderes
Sem angústia
E sem pressa.
E os passos que deres,
Nesse caminho duro
Do futuro
Dá-os em liberdade.
Enquanto não alcances
Não descanses.
De nenhum fruto queiras só metade.

E, nunca saciado,
Vai colhendo ilusões sucessivas no pomar.
Sempre a sonhar e vendo
O logro da aventura.
És homem, não te esqueças!
Só é tua a loucura
Onde, com lucidez, te reconheças...

 

Miguel Torga

 

 

Os meus passos sobre a areia molhada

Praia do Carvalhal, Grândola, Setúbal, Outubro de 2011

Jorge Soares

publicado às 17:54

O tempo

por Jorge Soares, em 16.08.10

Relógio de sol

 

Imagem minha do Momentos e olhares

 

Tempo — definição da angústia. 
Pudesse ao menos eu agrilhoar-te 
Ao coração pulsátil dum poema! 
Era o devir eterno em harmonia. 
Mas foges das vogais, como a frescura 
Da tinta com que escrevo. 
Fica apenas a tua negra sombra: 
— O passado, 
Amargura maior, fotografada. 

Tempo... 
E não haver nada, 
Ninguém, 
Uma alma penada 
Que estrangule a ampulheta duma vez! 

Que realize o crime e a perfeição 
De cortar aquele fio movediço 
De areia 
Que nenhum tecelão 
É capaz de tecer na sua teia! 

Miguel Torga, in 'Cântico do Homem'

 

 

Relógio de Sol em Setúbal

Abril de 2010

Jorge Soares

publicado às 20:49

Conto:O Pastor Gabriel

por Jorge Soares, em 09.01.10

Ovelha 

Imagem minha do Momentos e olhares

 

Nunca houve em toda a montanha pastor como o Gabriel.

 

- Merecias outras ovelhas, homem! - disse-lhe um dia o Prior, desanimado da anarquia dos seus paroquianos, quando viu o rebanho do rapaz atravessar a estrema dum centeio sem tirar uma dentada.

 

- Deus me livre! já me vejo maluco com estas...

 

Mentira. O padre tinha razão. Era uma pena ver tanta autoridade, tanta vocação, tanto jeito natural, ao serviço de animais. Nem se pode fazer ideia! O carneiro mais teimoso, mais lorpa, mais churro, chegava às mãos do Gabriel e mudava de condição. Só não ficava a falar.

 

- Que fazes tu ao gado, criatura? Parece que o enfeitiças!

 

- Nada. Dou-lhe monte, como a outra gente. Sorria. E lá continuava a educar os malatos com gestos e palavras que ninguém sabia fazer nem dizer. Nunca batia numa rés. O castigo era um simples olhar reprovativo, um assobio impaciente, uma interjeição mal humorada. Mas bastava. Ao fim de algum tempo, cada cabeça como que porfiava em não desagradar ao dono, em viver sintonizada com aquele governo sem cajado. E dava gosto ver a disciplina com que o rebanho deixava o redil e atravessava o povo.

 

- Não há dúvida! Nem o mestre na escola! Continuava a rir-se por dentro. Espantavam-se com pouco. Com a pequenina amostra do muito que estava por detrás...

 

Na verdade, toda aquela disciplina tinha um fim, e era muito mais apertada do que parecia. Como os pastos no verão escasseavam, só havia uma solução: aceivar os nabais de noite, pela calada. Ora, para Áfricas dessas, o Gabriel necessitava de gado mudo e lesto, cegamente obediente ao comando. Por isso, sem dizer porquê nem por que não, exigia sistematicamente dos patrões que vendessem os carneiros mancos ou rebeldes, e ninguém ouvia o balido de nenhum.

 

- O teu gado não berra?

 

- Pergunta-lhe. É o berras! Ou não se chamasse ele Gabriel e não capitaneasse um bando de salteadores.

 

No meio da escuridão, abria a porta do curral e punha-se a andar. O rebanho atrás, como um cão rafeiro. À entrada da melhor sementeira, parava, perscrutava os horizontes e arrombava o tapume. Depois, em silêncio., deixava entrar os famintos e esperava que cada boca se fartasse em silêncio.

 

Se por acaso ouvia vozes ou passos de gente que se aproximava, subia acima da parede, descalçava os socos, batia com um no outro e largava a fugir com quantas pernas tinha. Não era preciso mais: quando chegava ao redil, já o rebanho lá estava.

 

- Não, tu hás-de ter qualquer segredo, qualquer mistério... - insinuava o Languna, a sondar.

 

- Palavra de honra que não. E realmente não tinha. A coisa vinha-lhe espontaneamente, duma maneira directa, rápida, infalível, de entender e de se fazer entender por todos os seres vivos. Via um coelho na cama, falava-lhe e punha-lhe a mão em cima. Acalmava um cão açulado-a sorrir-lhe.

 

Mas esta comunhão instintiva com a natureza dos bichos não tentava o Gabriel alargá-la à natureza dos homens. Desses arredava-se discretamente., sem querer passar, nas relações com eles, do plano amorfo da neutralidade. Alugava o suor. Enjeitado, sem vintém, servia este e aquele. A indústria de Ferrede era comprar gado magro, engordá-lo e vendê-lo. Portanto, quem tinha dinheiro tinha o poder, e não valia a pena discutir. Que lhe interessava a ele perder tempo com palavreado ou mendigar intimidades que sabia impossíveis de antemão? O que os donos de cada rebanho queriam já o sabia: era que lho entoirisse de qualquer maneira. Recebia, pois, o farnel pela manhã, e ala que se faz tarde. Cada qual para o que nasce.

 

No verão em que fez vinte e dois anos, não pôde, contudo, ficar indiferente a um apelo que, muito embora fosse de cordeira no cio, vinha duma criatura cristã, com quem, de resto, acabou por casar.

 

Foi assim: como a serra inteira ardia na fornalha do Agosto, certo dia, no pino do sol, resolveu assestar o gado na loja. Servia então o Silvano, o maior proprietário da terra. E enquanto o rebanho, sonolento, ruminava, estendeu-se também no catre, igualmente sonolento e a ruminar. Era a hora do jantar, e lá em cima os patrões comiam e bebiam à tripa-forra. Ele, coitado, teria uma malga de caldo no fim do banquete, e viva o velho!

 

Nisto, sente passos pela escada abaixo, abre-se a porta, e a filha da casa, bonitota, mas de pêlo na venta, que nunca dera conta que o olhasse como homem e nunca lhe consentira que a olhasse como mulher, aparece de cântara na mão, ao vinho.

 

Em silêncio e sem se mexer, deixou-a passar para a adega, que era ao fundo, numa loja contígua Mas apenas sentiu desandar a torneira da pipa e a espuma do tinto a ferver dentro do barro lhe fez cócegas na garganta, pediu humildemente:

 

- Minha ama, dê-me uma pinga! - Dou. Anda cá bebê-la... Ergueu-se num pronto, saltou por cima do gado, entrou no armazém, recebeu a pichorra, levou-a à boca e começou a consolar a alma. De repente, sem mais nem para quê, a moça, calada, dá-lhe um empurrão à vasilha com a ponta do dedo. De respiração afogada e ainda engasgado, a tossir, relanceou-a toda. Ao machio, a senhora morgada!

 

E nada mais simples: pousou a caneca e dobrou a rapariga sobre uma facha de palha.

 

 

Miguel Torga, Novos Contos da Montanha

 

Retirado de Contos de Aula

publicado às 22:23

 

Miguel Torga, a Paga

Imagem da internet

 

De Miguel Torga, Contos da Montanha

 

A Paga

As falas doces com que o Arlindo levava a água ao seu moinho não lhas ensinara o pai, não, que era um santo. Mas vá lá fiar-se a gente em sanguinidades! Famílias boas, sãs, dão às vezes cada filho que até se fica maluco. Ali estava, à vista de todos, a demonstração. Sem maus exemplos em casa, nado e criado numa terra limpa como Vale de Mendiz, e Deus nos defendesse de semelhante boldrego! Rapariga em que pusesse o sentido, pronto. Tanto fazia saltar como correr: tinha que ser dele. E então não se contentava com qualquer! Só lhe apetecia o melhor.

Mesmo no povo, desgraçou a Arminda, uma cachopa tão dada, tão bonita, que cortava o coração vê-la depois, desprezada de toda a gente e comidinha dos males que lhe pegou. Em Guiães foi a filha do Bernardino, pelos modos a coisinha mais jeitosa que lá havia. Em Abaças, escolheu a Olímpia, uns dezanove anos que nem uma princesa.

Mas nenhuma como a Matilde, o ai Jesus de Litém. Descobriu-a na festa de S. Domingos, e já não a largou. O Rodrigo, o melhor amigo dele, bem o avisou: - Olha que ali, tudo o que não seja nó de altar...

Não quis saber. Rapou do harmónio e abriu-o numa gargalhada.

- Borga, rapaziada! Haja alegria!

O poviléu, que não quer senão pândega, claro, a rodeá-lo, embasbacado.

Ora, isto de mulheres é o que se sabe. A tola, só por ver um fadista daqueles a derreter-se por ela, já pensava que tinha ali o rei de Portugal! A tia, a do Rito, no caminho, ainda lhe perguntou se não sabia que menino ele era. Sabia, e que ninguém se afligisse por via dela. E logo no Domingo seguinte, à tarde, toda desenganada a dar-lhe treta na fonte.

Moveu-se o povo. Tivesse tento na bola!

O mundo nunca parira rês de tão má qualidade. Ou já se não lembrava do que acontecera às outras?

Nada. Não ouvia ninguém. O que lá ia, lá ia. Águas passadas não tocavam moinho.

O rapaz assentara, falava-lhe com todo o respeito, e, tão certo como dois e dois serem quatro, recebia-a.

O manhosão, por sua vez, que também não, havia dúvidas nenhumas a tal respeito. Mal arranjasse a vida, casamento.

O mais mau é que ninguém lhe via arranjar essa tal vida. O Alfredo, o moleiro, a pedido de Litém, sondou a coisa em Vale de Mendiz, e voltou desanimado. Arraiais, tocatas, danças, e nada de onde se visse sair propósito de coisa séria. E como o namoro ia de vento em popa – um entusiasmo, uma loucura -, Litém, pela boca do prior, chamou a rapariga à pedra.

Pensasse no que andava a fazer. Fugisse das tentações. Desse uma cabeçada, e depois se queixasse. Tivesse vergonha na cara e tratasse de pôr os olhos num rapazinho da terra, honrado e trabalhador.

Mas a Matilde andava viradinha do miolo. Jurava sobre as falas do Arlindo como sobre os Evangelhos. Assim tivesse tão certa a salvação como ele nunca tentara pôr-lhe um dedo e só lhe falava em bem.

Com semelhante conversa, Litém resolveu aguardar. Não há como dar tempo ao tempo e deixar cada qual aprender à sua custa.

E viu-se o resultado. Um dia à noite, a Matilde prega-se em casa da Lúcia, põe-se a chorar, a chorar, e acaba por declarar tudo: o ladrão tinha-lho feito. Tantas loas lhe cantara, tantas juras, tantas promessas, que caíra como uma papalva.

Mas com quem o Arlindo se foi meter! Com os de Litém, gente capaz de limpar uma nódoa com as lágrimas de Cristo! Fiava-se talvez em o pai da rapariga ter idade e os dois irmãos, o Cândido e o A]bino, estarem no Rio. Ora oitenta anos em Litém. não tolhem um homem, e o mar já não é o que era dantes!

O justo, no desejo de compor aquilo, ainda o procurou, a saber que destino queria dar à filha. Meteu os pés pelas mãos, que não podia casar agora, que as vidas estavam muito más, e mais aldrabices. Olha lá que o velho lhe dissesse nada! Calou-se muito calado, virou-lhe as costas, e, nesse mesmo dia, carta para o Brasil.

Entretanto, a nova fora-se espalhando pelas redondezas. E ao cabo de algum tempo o nome da Matilde simbolizava apenas a façanha mais atrevida e gloriosa do farçola de Vale de Mendiz.

- Não as deita em cesto roto! Isso é que ele pode ter a certeza! - garantiu o Brás, que sempre acreditara numa justiça imanente. 

- Tantas há-de fazer...

- Já fez... - respondeu-lhe o Rodrigo, que, embora amigo e companheiro do Arlindo, não engolia aquela de se ter enganado. - Com os de Litém ninguém brinca...

Em Março, quando Vale de Mendiz se cobriu de camélias e mimosas, o Alfredo, à frente do macho carregado de sacas, deu a grande notícia: os filhos do Justo tinham chegado do Brasil.

- Os dois? - perguntaram todos. - Os dois de uma vez ?!

- Olarila! -Então o Arlindo que se acautele. Mas nada parecia bulir naquele princípio de primavera. A Matilde há muito que calara as lamúrias; o pai, a todos que lhe falavam no caso, respondia secamente que a filha dele não era melhor do que as demais; e os irmãos encheram a irmã de prendas, tratavam-na como uma rainha, e nem por sombras falavam no sucedido.

- A mim até a alma se me apertava com tal sossego - dizia de vez em quando o Rodrigo.

- Os de Litém engolirem uma pastilha assim!

- Que pastilha?! Eu quis, a rapariga quis, quem tem lá nada com isso?

Farroncas. No fundo, também ele, Arlindo, andava de coração como a noite. Bem sabia que não se vem de repente do Brasil sem uma razão qualquer, e que se quisessem resolver o caso a bem já o teriam procurado.

Entrou Abril, passou Maio, principiou Junho, e o mesmo fado corrido.

- Estou varado! - desabafava o Rodrigo.

- Palavra que estou varado!

Mas em Agosto, no dia de S. Domingos, quando o Arlindo estava nas suas sete quintas - Ó Arlindo, toca lá isto, Ó Arlindo, toca lá aquilo! -, chega-se o Rodrigo ao pé dele e segreda-lhe:

- Os Justos de Litém, estão aí. O pai e os filhos...

Os dedos do meliante até se pregaram às teclas da sanfona.

- E ela?

- Ela veio cá o ano passado, e bem lhe chegou...

Já tinha saldo a procissão e quem rodeava a estúrdia enchia os ouvidos de som para o regresso a casa. E, como a música esmoreceu, foram debandando e descendo a serra. Agora a festa era para os que tivessem contas velhas a ajustar.

Começou então no adro um drama surdo, só interior. Os dois companheiros do Arlindo, o Rodrigo e o Gaspar, embora estroinas também, não estavam dispostos a arriscar um cabelo naquele sarilho.

- Quem as faz que as desfaça - dizia o Rodrigo, sempre que lhe falavam no caso.

E o Arlindo, à medida que a roda ia diminuindo, tinha a estranha sensação de que todos fugiam dele e o deixavam sozinho no mundo. Na ânsia de os reter, mudava de música. Pior. A instabilidade das melodias pegava-se à assistência.

Os Justos, sentados no fundo da escadaria, como a impedir-lhe a retirada, não mexiam um dedo. E a rarefacção do povo era ainda mais opressiva.

Começava a cair a noite dos lados de Constantim. As últimas vendeiras tinham partido já. A pipa de vinho, que o Pé-Tolo tivera à sombra do sobreiro, descia o monte vazia, aos solavancos no carro.

Ao fim de duas horas de suores frios, durante as quais o Arlindo puxara pelo harmónio como um galeriano, os Justos ergueram-se e deixaram a passagem livre.

- Bem, vamos andando... - disse o Arlindo, exausto. - Os homens não querem nada...

- Parece que não...

Meteram-se os três a caminho, aliviados duma carga que pesava a vida do Arlindo. Só no fundo do monte, quando o Rodrigo olhou para trás, é que viu que os Justos vinham em cima deles, calados.

- Isto dá grande desgraça, eu seja cego - avisou o Gaspar, transido. - E, se fosse por outra coisa, tinhas-me aqui. Assim, não. Lá te avém...

Iam já nas inatas do Infantado, quando os perseguidores cortaram por um atalho e se chegaram.

- Queremos uma palavrinha em particular aqui ao senhor Arlindo...

O Rodrigo, numa irresistível solidariedade humana que se tem com qualquer condenado no momento da expiação, ainda arranjou coragem para refilar:

- Três para dizerem uma palavra a um homem só?!

Mas, sem mais rodeios, um dos Justos deitou as mãos às abas do casaco do Arlindo, enquanto os outros dois, de pistola na mão, insistiam numa palavrinha muito em particular àquele cavalheiro.

O Rodrigo e o Gaspar, à vista de tais argumentos, foram andando.

E no dia seguinte, de manhã, o Arlindo entrou em Vale de Mendiz numa manta, capado.

 
Retirado de Contos de Aula

publicado às 21:12

Madalena

por Jorge Soares, em 17.10.09

Madalena

Imagem da internet

 

Queimava. Um sol amarelo, denso, caía a pino sobre a nudez agreste da Serra Negra. As urzes torciam-se à beira do caminho, estorricadas. Parecia que o saibro duro do chão lançava baforadas de lume.

Madalena arrastava-se a custo pelo íngreme carreiro cavado no granito, a tropeçar nos seixos britados por chancas e ferraduras milenárias. De vez em quando parava e, através dum postigo aberto na muralha das penedias, olhava o vale ao fundo, já muito longe, onde o corpo lhe pedira para ficar, à sombra de um castanheiro. O corpo. Porque a vontade fizera-a atravessar ligeira a frescura tentadora da veiga e meter-se animosa pela encosta acima. Tudo estava em chegar a Ordonho a tempo da sua hora. Por isso, era preciso reagir contra a própria natureza e andar para diante, custasse o que custasse.

 

Galgada a custo a última rampa, Madalena encarou com terror a imensidade da montanha descarnada e hostil. Cada fragão de estremecer! Blocos desmedidos, redondos, maciços, acavalitados uns nos outros, num equilíbrio quase irreal, ou então dispersos, solitários, parados e silenciosos pelo planalto além.

Começara a sentir as dores de madrugada, vagas, distantes, quase gostosas. E, a esse primeiro aviso, resolvera partir. Já agora, por mais um pouco, era levar a cabo aquele timbre. Sabê-lo, até ali, só ela e Deus. Nem o maroto que lhe fizera o serviço desconfiava. Sempre fora senhora do seu nariz. Dera o tropeção, é certo, mas em seguida conseguira esconder a nódoa dos olhos do mundo - a nódoa maior que pode sujar uma mulher. E nem mesmo ele suspeitava sequer do que se passava. Dias depois da desfeita, quando se lhe chegou com olhinhos de carneiro, a querer repetir a façanha, pô-lo a andar, sem de longe ou de perto tocar em tal assunto.

- Escusas de teimar: pega ou larga de vez. Se te não presto para uma coisa, também te não presto para outra... Resolve. Cães no rasto é que não quero!...

Fez-se desentendido. Lá casamento, isso não era com ele. Tinha a mãe, tinha as sortes, tinha a vida encalacrada.

- Pois então...

E virou-lhe as costas. Servir-lhe apenas de estrumeira, consentir que se utilizasse dela como de uma reca, não. É verdade que a disfrutara por inteiro naquela maldita tarde... Paciência. O que é, comera por uma vez. Danado, ainda rosnou. A engolir as palavras, deu a entender, numa cava, que sim e mais que também. De pouco lhe valeu. Ela cortara de tal maneira o mal pela raiz, que ninguém acreditou nas alarvadas. Graças a essa firmeza, estava quase a chegar ao fim do fadário na consideração de toda a gente. Bastava agora ter coragem e ânimo nas pernas. Não. Nem Roalde, nem o badana se haviam de rir. Dera com o nariz no sedeiro, realmente. Na primeira quem quer cai... Mas tomara a peito manter-se pura daí em diante, e fizera vingar a sua. Nove meses como nove novenas! Preferia morrer, a ficar nas bocas do mundo. Com o correr do tempo, vira-se e desejara-se para manter o disfarce. Os últimos dias, então, pareceram-lhe anos. Felizmente, até esses vencera sem se denunciar. Fechou-se em casa, com a desculpa de andar adoentada, e aguardou que chegasse o momento de largar. E, vinha o sol a nascer, este mesmo sol que agora lhe estonava a carne, metera pés a caminho.

Nem viva alma, ao sair da aldeia! Roalde em peso mourejava nos lameiros e nas cortinhas da Tenaria. O Agosto corria criador. E cada qual gastava-se nos bens, a regar os milhões, as hortas e os batatais. Em Roalde, graças a Deus, aguinha - era dar ao talhadoiro...

Água!... Se ao menos tivesse um golinho dela naquele instante! Bastava-lhe molhar a boca... já mal a sentia, de tão seca... Era um buraco encortiçado, por onde o ar passava em labaredas. Quase que lhe apetecia ferrar os dentes no toco dum carvalhiço, a ver se a humedecia.

Chegada ao meio do planalto, as penedias metiam medo. Espaçadas e desconformes, pareciam almas penadas. Uma giesta miudinha, negra, torrada do calor, cobria de tristeza rasteira o descampado. Debaixo dos pés, o cascalho soltava risadas escarninhas.

Estalava de secura. Ao tormento do cansaço e à crueldade das guinadas traiçoeiras que a anavalhavam quando menos esperava, juntara-se uma sede funda, grossa, que a reduzia inteira a uma fornalha de lume. Mas já o seu avô almocreve dizia:

- Na Serra Negra, quem se quiser refrescar, tem de beber o suor...

Simplesmente, o avô era homem e corria o mundo escanchado num macho, com a borracha de vinho no alforge. E ela, Madalena, não passava de uma pobre mulher, que ia ali naquele ermo excomungado, trespassadinha, já sem forças para mais, com o maldito do filho dentro da barriga aos coices. E tudo por causa das falinhas doces do Armindo, daquelas falinhas mansas, repenicadas, que a levaram à desgraça! Ah, magusto, magusto do S. Martinho! Caras lhe estavam as quatro castanhas assadas que aceitara na cardenha da Tapada. O malandro até jeropiga tinha ali à mão! E ela, a tola, comera, bebera e, por fim, rolara na palha aos berros. Mas de nada lhe valera. De todo o jeito, era sempre sobre o seu corpo o corpo rijo do estafermo, tenso, quente, angustiado. E cedera. Um minuto de fraqueza, ou de piedade concedida a tamanho desespero, e ao acordar - perdera o melhor. Mas pronto. Estava feito, estava feito. Levantou-se, sacudiu a saia, e não tugiu nem mugiu. Fez de conta que nada acontecera. Só que daí por diante passou a desviar-se das ocasiões, embora sempre à espera. Calada como um testamento, aguardou que o rapaz viesse falar-lhe a sério. Lá com palavrinhas de amor, não! Batesse a outra porta. E queria os banhos na igreja e o casamento em Janeiro. Sem lhe dizer, é claro, que ficara naquele estado...

Mas o cão só pensava na carniça. Quando voltou, trazia apenas o vício assanhado. E mostrou-lhe o caminho.

- Para isso, vai às da Vila...

Tratou de enfaixar o ventre sob o saiote de lã, e foi vivendo. À noite, na cama, é que em vez de passar contas passava lágrimas... Como vivia só, ninguém, felizmente, dava fé das suas mágoas. E os meses iam correndo. Até que ao amanhecer daquele dia... Mas Roalde não havia de ter o gosto de lhe ouvir os gritos. Nem Roalde, nem o tinhoso do senhor Armindo. Não lhes dava essa glória. E ali se arrastava, quase morta, por ermos amaldiçoados, para que tudo continuasse entre ela e Deus. Meteria agora no segredo a Ludovina, a sua amiga de Ordonho, porque de todo não poderia governar-se sozinha em semelhante aflição. Em casa dela teria o filho. E depois... Depois... Ah, mas a sede cortava-lhe o tempo ao meio! O futuro para um lado, vago, distante, irreal; o presente para o outro, urgente, positivo. Água! Tivesse ela à mão a fonte da Tenaria, um olho marinho que fartava os lameiros e ficava na mesma, água a jorros com que matar a sede da boca, do peito, da barriga, do corpo inteiro, e tudo seria simples...

Mas água, só a que lhe inundou de repente as partes, e lhe escorria pelas coxas abaixo, quente, viscosa, pesada...

Estremeceu. Poderia ainda continuar? Poderia ainda arrastar-se, cheia de febre, extenuada, em ferida, pela serra a cabo? E as dores cada vez mais apertadas, que a varavam de lado a lado, a princípio rastejantes, quase voluptuosas, e depois piores que facadas? Não, não podia continuar. Agora só atirar-se ao chão e, como no dia de S. Martinho, rolar sobre a terra em brasa, negra, saibrosa, eriçada de tocos carbonizados, sem palha centeia a quebrar a dureza das arestas, e sem o desavergonhado do Armindo a cantar-lhe loas ao ouvido...

Aguilhoado de todos os lados, o corpo começou a torcer-se, aflito. E daí a pouco arqueava-se retesado, erguido nos calcanhares e nos cotovelos, a estalar de desespero. Dentro dele, através dele, um outro corpo estranho queria romper caminho. E, por mais que cedesse e alargasse, o inimigo mantinha-se insatisfeito, a reclamar maior espaço, a exigir as portas abertas de par em par. Sem a piedade dos intervalos de há pouco, as dores pareciam cadelas a mordê-la. De cada guinada vencida, nasciam outras guinadas, como rebentos por uma castinceira acima. E toda ela era um uivo de bicho crucificado.

Alheia a tamanha angústia, a serra dormia a sesta, impassível. Indiferente ao tempo, que parara ou deslizava sem lhe tocar a pele empedernida, fechara-se num egoísmo desumano. E quando Madalena, ao cabo de uma eternidade cega e raivosa, conseguiu finalmente sair do tronco de tortura, nada mudara. Os fragões sonhavam ainda.

Suava em bica. Escorria das fontes à sola dos pés. O sol já não estava a pino. Ia caindo, agonizante, para os lados do Marão. A última dor morrera há um segundo, ou há horas, ou há semanas? Não sabia. Sabia, sim, que o sofrimento se apagara de vez e a deixara, como deixa o cortiço o enxame que parte.

Nem um som, nem a presença duma aragem a quebrar a solidão que a cercava. Apenas num céu em fim de incêndio um mormaço cerrado.

Abriu de todo os olhos turvos. Entre as pernas, numa poça de sangue, estava caído e morto o filho. Carne sem vida, vermelha e suja. O segredo dela e de Deus!...

Exausta, deixou-se ficar prostrada, a saborear o alívio. As cancelas escancaradas fechavam-se lentamente... Por fim, cansou-se da própria imobilidade. Ergueu-se, então. E permaneceu assim alguns segundos a ouvir o silêncio, como a ver se lá do longe vinha resposta aos gritos desesperados que lançara. Nada! O mundo emudecera.

Com fetos verdes limpou-se. Depois deixou cair aquele pano sujo no charco onde o filho dormia. O pé, sem ela querer, foi escavando e arrastando terra... Aos poucos, o seu segredo ia ficando sepultado... O pé tentava deslocar agora uma laje que estava ao lado. Era pesada de mais. E as mãos ajudaram... O sol, cada vez mais baixo, lançava os últimos avisos da sua luz. E os olhos de Madalena viram claro. Eram horas de regressar. Eram horas de voltar à aldeia e matar aquela sede sem fim na fonte fresca da Tenaria.

 

Miguel Torga, Os Bichos

Retirado de Contos de aula

publicado às 21:54

Conto:Farrusco

por Jorge Soares, em 26.09.09

 Melro

Imagem minha do Momentos e olhares

 

Dentro da poça do Lenteiro, há rãs. Naquela água coberta de agriões e de juncos moram centenas delas. Mas à volta, na sebe de marmeleiros, silva-macha e alecrim, vive Farrusco, o melro. Sabe-se isso desde que, em certo entardecer de Agosto, a Clara perguntou ao cuco que se pousara num pinheiro em frente: 

- Cuco do Minho, cuco da Beira: quantos anos me dás de solteira? 

A rapariga era toda ela de se comer. E o cuco, maroto, olhou de lá, viu, e respondeu: 

- Cucu... Cucu... Cucu... 

Três anos! A moça ficou varada. O Rodrigo acabava a tropa de aí a dias, e prometera levá-la à igreja logo a seguir. Que significava, pois, semelhante demora? Aflita, chegou-se à Isaura, a alcoviteira, mouca como um soco, que a seu lado sachava milho, e gritou-lhe aos ouvidos, desesperada: 

- Ora vê?! Que lhe dizia eu? A Isaura nem queria acreditar. 

- Ouvirias mal!... 

- Olhe lá que não ouvisse! Contei-os bem. 

E foi então que Farrusco soltou a sua primeira gargalhada. Coisa bonita! Uma cascata de semicolcheias escaroladas, como se alguém rasgasse um pano cru, rijo e comprido, no silêncio da tarde serena, que o desânimo de Clara enchera subitamente de melancolia. Nada mais do que isso. Mas o bastante para mudar o sinal do desencanto. A força virgem daquele riso chamou a vida à consciência dos seus direitos. De parada, a natureza animou-se. Uma aragem muito branda e muito fresca atravessou o espaço. Tudo quanto era mundo vegetal ondulou levemente. A própria terra, sonolenta do calor do dia, acordou. £ de aí a segundos começou a maior sinfonia que se ouviu no Lenteiro. 

Chamadas por aquela volatina, as rãs subiram à tona de água e puseram-se a dar força sonora às tímidas vozes ocultas e anónimas que se erguiam do limbo. Às rãs, juntaram-se logo, pressurosos, os ralos, as cegarregas, os grilos, e quanta arraia miúda tinha fala. A esta, a passarada. Até que não ficou bicho sensível e solidário alheio ao Tantum Ergo pagão. Um coro imenso, cósmico e fraterno, que enchia o mundo de confiança. 

Clara, arrastada pela onda de harmonia, apelou da sentença: 

- Cuco do Minho, cuco da Beira: quantos anos me dás de solteira? 

O que foste fazer! O malandro do pitoniso, se há pouco fora cruel, desta vez requintou. 

- Cucu... Cucu... Cucu... Cucu... 

Parecia uma ladainha! A lengalenga não parava mais. Ou de propósito, ou porque o mundo, naquele instante, era um orfeão aberto, o ladrão dava mais anos de solteira à rapariga do que estrelas tem o céu. 

Desapontada, a cachopa regressou às ervas daninhas do lameiro. E, num amuo justificado, deixou correr as horas. A seu lado, comprometida, a Isaura, que tinha garantido o noivado a curto prazo, falava, falava, sem conseguir adoçar-lhe no espírito o fel da desilusão. E quando a noite se aproximou disposta a selar com negrura aquela tristeza humana, foi preciso que Farrusco, novamente solidário com os direitos da moça, saltasse da espessura da sebe para o cimo de um estacão, e fizesse ressoar pelo céu parado e quente uma segunda gargalhada. Discordância de tal maneira fresca, sadia, prometedora, que a rapariga ganhou ânimo. Pôs os olhos em si, na força criadora das margaridas abonadas, no ar de coisa sã que toda ela ressumava, e sorriu. Depois, confiante, juntou a sua alegria à alegria do melro. Soltou então também uma risada cristalina, que partiu da verdura do milhão, passou pelas penas luzidias de Farrusco, e foi bater como um castigo no ouvido desafinado do cuco. Um segundo a natureza esteve suspensa daquela gargalhada. A vida homenageava a vida. Depois continuou tudo a cantar. 

- O estafermo do cuco, tia Isaura! Até um melro se riu!... 

- Riem-se de tudo, esses diabos... 

Mas o lusco-fusco começava a empoeirar o céu, e Farrusco ia fechando docemente os olhos, deitado na cama dura. A vida que lhe ensinara a mãe, simples, honesta, espartana, não lhe consentia luxos de noitadas. Pela manhã, ainda o sol vinha lá para Galegos, já ele tinha de estar de perna à vela, pronto para comer a bicharada da veiga, e rir de novo, se alguma tola de Vilar de Celas se fiasse outra vez no aldrabão do cuco. 

 

Miguel Torga, Os Bichos

 
Retirado de Contos de Aula

publicado às 21:35

Adoptar em Portugal..e o sonho vai morrendo

 

Ando há uns tempos a adiar o meu post mensal sobre a nossa espera, durante o verão a nossa esperança por um rápido desenrolar do nosso processo foi crescendo, as noticias eram animadoras.... até ao fim do verão... O verão passou, e nós esperamos. Esta semana a P. ligou para a segurança social de Setúbal, há um ano as perspectivas eram dois anos de espera, agora passou para três.. seria um balde de água fria... não fosse nós já estarmos habituados a este tipo de coisas.

 

Há pouco estava a ler este texto da Susana no blog  nós adoptamos e fiquei a pensar, em como se matam os sonhos. Porque a verdade é que à medida que o tempo vai passando, o sonho vai morrendo... os sonhos não morrem????!!!!... mas pouco a pouco vamos deixando de acreditar.... vamos tendo menos capacidade para sonhar.

 

O caso da Susana é muito especifico, ela quer uma criança até um ano, e todos sabemos que há muito poucas crianças com essas características, mas nós queremos uma criança até à idade escolar, sem descriminação de raça e deixamos claro que poderíamos aceitar uma criança com alguns problemas de saúde....

 

Entretanto a raiva vai crescendo dentro de mim cada vez que sei de mais um caso de alguém que se inscreveu depois de nós e recebeu uma criança com as características que colocamos.... é uma raiva que vai crescendo devagarinho... é claro que todos estes casos são em Lisboa, mas será justo que as pessoas de Lisboa passem à frente de todo o resto do país?

 

Não me vou estender... só deixo aqui um comentário da mesma Susana

 

"Mais uma vez, ontem vi na SIC no novo programa da Fátima Lopes 2 mulheres que adoptaram crianças uma com 19 mêses e outra com 15 dias. Como é possivel adoptar uma criança com 15 dias? Então não nos dizem que até a criança ter o processo resolvido leva cerca de um ano? A Srª que adoptou a criança de 19 mêses esteve 4 anos à espera, a outra não sei porque não ouvi a reportagem desde o inicio. Ao ver estes testemunhos ainda me sinto mais revoltada e desmotivada."

 

Não há maneira absolutamente nenhuma de que alguém receba pela via legal, uma criança de 14 dias..... será que não há quem investigue estas coisas?

 

 

Porque 

não vens agora, que te quero 

E adias esta urgencia? 

Prometes-me o futuro e eu desespero 

O futuro é o disfarce da impotência.... 

 

Hoje, aqui, já, neste momento, 

Ou nunca mais. 

A sombra do alento é o desalento 

O desejo o imite dos mortais.

 

Miguel Torga

 

Jorge Soares

publicado às 21:45

Mariana

por Jorge Soares, em 28.06.09

 Mariana

 

- Meu rico filho! Dava-o agora assim de mão beijada! Não que ele custou-me a parir e a criar!...

 

Julho, era por toda a parte a mesma verdura a ondular e a mesma esperança a sorrir. A terra bebia o sol e a humidade, espremia-se depois quanto podia, e atulhava o mundo de folhas, de flores e de frutos.

 

Mariana, com o filho ao colo de cabeça a reluzir, ia andando e monologando.

 

- Não me faltava mais nada! Tenham-nos. Façam por eles, ora o canudo!

 

No Caleirão, mesmo à beira do caminho, o Júlio Pessanha regava.

 

- Deus o ajude! - Vem com Deus... A enxada nas mãos do trabalhador deu o golpe, e a terra fofa, como uma mulher sôfrega de amor, bebeu de um trago a levada que a beijou. - Aonde é a ida? perguntou o Júlio, da leira, enquanto a nascente ia acalmando a embelga.

 

- Justes - respondeu Mariana, sem convicção. - Justes ou Gache, conforme.

 

Parara e olhava enlevada o rego de água a correr. Esteve assim algum tempo, enquanto o Júlio a olhava a ela por sua vez, abrasado de calor.

 

- São horas...

 

- Tens tempo, mulher!... Espera um migalho, que te acompanho até aí acima...

 

- O que você quer bem sei eu...

 

- E então... Mariana riu-se, meteu o bico do peito na boca do filho e esperou.

 

- São só mais três talhadoiros - prometeu o Júlio, apressado no desejo.

 

- Ande lá... Calma, sentou-se então numa anteira, com a mão direita a alisar docemente a penugem da criança. Depois, quando o Júlio acabou, ergueu-se e foi caminhando a seu lado, na paz simples de quem ia por bom caminho. Nas minas, pôs a criança à sombra de um carvalho, sobre o chaile, e deitou-se um pouco adiante entre as giestas, onde o Júlio a esperava já...

 

- Adeus - disse no fim, sem olhar o homem. - Então adeus...

 

Pelo caminho fora, na tarde quente, o seu corpo tinha agora uma frescura de terra molhada.

 

O filho, farto, dormia-lhe no colo. E Mariana, feliz, continuou o monólogo interrompido.

 

- Há cada uma! Dar-lhe o menino! Não faltava mais nada! Umas a tê-los e outras a gozá-los... A gente vê coisas!...

 

Na veiga de Justes, com olmos à beira do caminho, o corpo e as palavras que dizia perderam-se na sombra da ramagem espessa. E só três anos decorridos é que passou novamente por ali, agora acompanhada de duas crianças, uma menina de peito, e um pequeno, descalço e ruço, que ia levando pela mão.

 

- Deus o ajude! - Vem com Deus... Era o Joaquim Fortunato, no lameiro, a arralar milhão. Nos braços rijos do cavador, o molho de verdura túmida era como um corpo de mulher a tentá-lo.

 

- Até onde é a ida? - Pedralva - respondeu Mariana ao calhar. - Ou Jurjais. É conforme...

 

A pequenita, a babar-se, dormia. O rapazinho, extenuado, aninhou-se na relva do caminho.

 

- Tu sentas-te? - ralhou Mariana, carinhosamente.

 

- Tou canchado... - Deixa descansar o rapaz - disse de lá o Joaquim Fortunado. - Ele merendou?

 

O pequeno acenou com a cabeça a dizer que não, e o mondador pousou a braçada de relva e foi-lhe buscar pão e queijo.

 

- Também queres? - perguntou depois a Mariana.

 

- Se faz favor...

 

- Mas hás-de então vir cá... Tinha o farnel ao fundo da leira, à sombra de um freixo que cobria a poça, com a cabaça de vinho metida na água a refrescar. Mariana deitou a filha adormecida no chaile, ao pé do irmão, e saltou a parede.

 

- Volto já. Não me demoro. Foi, comeu, e em seguida o mesmo calor que já duas vezes a inundara apareceu-lhe no sangue a uma palavra do Joaquim.

 

- Com esta não contava eu... - começou ele, a olhá-la e a passar a mão pelo cachaço.

 

Ela riu-se. E pouco tardou que não sentisse extinto o lume que principiava a queimá-la também.

 

- Vamos lá embora, meus filhos. A pequenita olhou-a com os olhos azuis do Júlio Pessanha, sem ver nada. O rapaz é que reparou que a mãe tinha terra nas costas.

 

- Adeus.

 

- Até qualquer dia...

 

O Joaquim Fortunato, ficou com o gosto na boca daquele momento inesperado e saboroso. Por isso despediu-se reticente e, sempre que podia, vinha até à veiga na esperança dever outra vez passar o corpo aberto e generoso de Mariana.

 

Mas o milho amadureceu, chegou o inverno, a terra cobriu-se novamente de verdura, e nada de a mulher aparecer.

 

Andava longe, por termos de Vessadios, e foi em plena serra dos Corvos que uma manhã o Lopo deu por ela a atravessar o rebanho.

 

- Deus o ajudei - Vem com Deus... Trazia agora três filhos, um casal a pé, e nos braços um terroso cachopinho, a cara do Joaquim Fortunato por uma pena.

 

Era Março e fazia ainda frio. No monte orvalhado, que o pálido sol da manhã ia enxugando devagar., brilhavam teias de aranha,, estendidas, a corar sobre os tojos. O pastor acendera uma fogueira. E o fumo das carquejas molhadas subia ao céu lentamente., lasso e voluptuoso.

 

- Aqueçam-se. Chegaram-se todos às lambras.

 

- Ensarilhadas na lã, plácidas, as ovelhas pastavam. O laboreiro, deitado ao pé do borralho, dormitava. Uma contida paz cobria tudo.

 

- Não te fazia agora por estes sítios - começou o Lopo, a enrolar um cigarro forte.

 

Mariana sentiu outra vez o sangue a ferver-lhe pelas veias fora. A fogueira precisava de lenha.

 

- E se nós fôssemos a uma meda de rama, que há ali adiante, buscar um braçado dela?

 

Mariana calou-se. O lume, por dentro, continuava a queimá-la.

 

- Põe aí o pequeno - ordenou ele. Ela obedeceu. E, logo adiante, num valado, sobre gabelas secas de mato, o seu corpo serenou.

 

- Vamos, meus filhos - disse pouco depois, antes mesmo de deixar cair sobre os tições apagados a caruma que trazia. - Vamos, meus filhos.

 

Os dois maiores ergueram-se, e o pequenino ficou a olhá-la do chão, inquieto, sôfrego de colo e de peito.

 

- O rapaz já podia começar a servir... Eu, com a idade dele, guardava cabras... Queres tu deixá-lo comigo? - propôs o Lopo.

 

- Deixá-lo?! Pelo caminho fora a palavra soava-lhe como um zumbido atroz nos ouvidos escandalizados.

 

- Deixá-lo! Há cada uma! Ia agora deixar-lhe o menino!

 

Nas matas do Vale-Fundeiro o protesto tinha o tamanho e o vigor dos castanheiros sem idade que ali cresciam. E só ao chegarem à veiga de Constantim é que aquela revolta se atenuou, desvanecida pouco a pouco pela verdura sedativa dos lameiros.

 

- Isto é que é terra! - não se conteve o pequeno mais velho, com o instinto campónio do Custódio, o pai, a brilhar-lhe nos olhos.

 

- É como as outras, que mais tem? - respondeu Mariana, sem atingir a fundura do grito.

 

- Olhe lá que não seja! Mariana não podia entender a voz ancestral que irrompia da natureza virginal do filho. A terra parecia-lhe una, indivisível, nivelada na mesma serenidade e no mesmo destino de criar. Aqui, ali, acolá., cerros ou descampados, várzeas ou costeiras, eram sítios iguais, que calcorreava sem distinguir a qualidade do barro que se lhe agarrava aos pés. Compreendia tudo, menos o afeiçoamento da perdiz ao monte nativo. Todos os horizontes lhe acenavam da mesma maneira. Em qualquer mata miúda paria naturalmente e atrás de qualquer parede recebia a seiva de uma nova vida. Não. Nem entendia o rapaz a gabar os lameiros de Constantim, nem a sensualidade do Jeremias Manso a querer fazer dela um simples instrumento de prazer.

 

- Outra vez... - pedia ele, ao vê-la erguer-se, honesta e pura como uma leiva semeada.

 

Nem sequer respondeu. Saiu do centeio, pôs-se a frente da ninhada, e retomou o caminho da sua aventura.

 

Só em Ordonho, abrandou a marcha.

 

- Quantos são ao todo? - perguntou o Paul, que já não via bem, quando o rancho lhe passou à porta.

 

- Sete - respondeu o cunhado. - Valha-nos Deus! Que desgraça! As raparigas estão mulheres feitas e a mãe a dar-lhes um exemplo daqueles...

 

Mas já Mariana ia longe, alheia ao zelo do velho sátiro. Pedia: se davam, davam; se não davam, deixava os filhos matar a fome nos soutos, nos pomares ou nas vinhas, e a quem tentava, de uma maneira ou doutra, dividir a perfeita unidade que formava com a prole, respondia a rugir como uma leoa ferida.

 

- Criada?! Ia-lhe agora dar a menina para criada! A gente vê cada uma! De lhe comprar um farrapo para se vestir, não se lembrou a senhora. Criada! Que conveniência!... A servir ponha as filhas, se não lhes tem amor... Agora as minhas, está bem livre!

 

Ia já nas matas do Bouço e a indignação continuava ainda.

 

- Criada! A palavra, dita por intenção da sua Zulmira, parecia-lhe um insulto sem perdão.

 

- Fala à gente!... Mariana nem o olhar se dignou concentrar no rosto desejoso do Lopo. O seu ventre estava já fecundado pelo Guilherme da Póvoa, e o Lopo, como os outros, passada a hora, não significava nada, nada, na sua lembrança. A pureza com que se entregava tocava-os de uma força criadora e irresponsável que os imaterializava como deuses distantes. A terra humilde era ela. Eles actuavam apenas como o vento, que traz a semente, e passa. Mas todos teimavam em permanecer ligados ao doce sabor de um minuto, e queriam-na segunda vez.

 

- Nos montes de Vessadios, não te lembras?

 

- Vossemecê está maluco! Eu conheço-o lá!

 

O Lopo não queria acreditar no que ouvia. E por orgulho ofendido, frouxo aceno do sangue e mágoa de solitário, teve um gesto:

 

- Conheças ou não conheças, já pariste de mim. Por isso, quero o pequeno.

 

- Que pequeno?! perguntou Mariana, assombrada.

 

- Aquele. O chegado à de vestido às riscas. - O meu Jorge?! O homem é doidinho! Os filhos são meus, muito meus! Atreva-se a pôr-lhes a mão, se quer ver...

 

O pastor tinha-se aproximado, num desejo irresoluto de tirar da touceira a vergôntea que lhe pertencia. Não o empurrava nenhum impulso profundo. Era uma reacção de momento, sem calor verdadeiro. E como Mariana parecia uma cabra das dele, pronta a marrar às cegas contra o cão que lhe farejasse a cria, deteve os passos que dera sem convicção.

 

- Bem, está bem... Mais perde... - disse então, a justificar a debilidade do seu apego ao andrajoso ser a que tinha ajudado a dar vida. - És parva...

 

Mariana sorriu. E seguida do rebanho inteiro, lá partiu para Valongueiras, à esmola de sábado em casa do Sr. Vitorino.

 

- Essa mulher continua na mesma vida? - perguntou na sala a Marília, que acabara de chegar do colégio com um selo branco na virgindade. _ Pois continua...

 

- Pouca vergonha maior!

 

- Que se lhe há-de fazer?

 

- Tirar-lhe as crianças e metê-las num asilo.

 

- Deixa-te de asilos! - reprovou o Sr. Vitorino, que tivera uma meninice aperreada.

 

- Então chamar à ordem os responsáveis!

 

- Vai-lhe lá falar nisso!...

 

- E é que vou mesmo! Ergueu-se cheia de zelo, e foi direita como uma heroína ao encontro do lodaçal.

 

Rodeada do bando, Mariana comia em Paz na cozinha o caldo caridoso.

 

- Estás boa?

 

- Muito agradecida. Cá vou andando...

 

- Olha lá, os pais dos pequenos não tomam conta deles ?

 

Mariana sorriu, cheia de uma inocência que a outra não entendia. E respondeu, na sua pureza:

 

- Saiba a menina que não têm pai... São só meus.

 

 

 

Miguel Torga, Novos Contos da Montanha

 

Retirado de Contos de aula

publicado às 02:00


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