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Porque: "A vida é feita de pequenos nadas" -Sergio Godinho - e "Viver é uma das coisas mais difíceis do mundo, a maioria das pessoas limita-se a existir!"
Por um instante, eu me lembro de mim. Grávida, sem companheiro, sem apoio nenhum. A barriga aumentando junto com as dúvidas. Se vai nascer normal; se vai ser mulher, para sofrer que nem todas as fêmeas das minhas raízes; se o dinheiro, que já não dá, vai conseguir se multiplicar na divisão por dois. Os complexos crescendo junto com o feto. A celulite exposta, as estrias brancas, os seios imensos e doloridos dos primeiros meses, a bunda caída do final. E a certeza humilhante de não ter com quem falar sobre o primeiro chute, sobre as cólicas, sobre a vontade aumentada de fazer sexo, sobre a dor nas pernas obrigando a reduzir os saltos. Ninguém a quem mostrar as camisinhas de pagão, a chupeta branca, as calças, as fraldas, os cueiros, a banheira de plástico. Quase tudo comprado aos pares ou pouco mais, para caber no orçamento. Nem pai nem mãe a quem pedir colo, conselho. Ambos mortos. A única irmã morando em Dunquerque. Tão distante quanto antes de Dunquerque. Nenhum namorado, nenhum amor. Só um reprodutor apressado. Trinta e cinco anos e uma vida na barriga. Trinta e cinco anos, uma vida na barriga e outra carregada no próprio lombo. O medo de um aborto, de um parto prematuro, da perda, clichê da humanidade. E as pessoas cobrando esse aborto, chamando de decisão irresponsável levar adiante, dizendo que é fardo. Que fardo? Alguém de quem cuidar nas noites esvaziadas de tudo. Alguém para fazer barulho no silêncio insuportável. Alguém com todas as possibilidades ainda intocadas. Sem ranço, fracasso, impotência, angústia, desistência, solidão, desespero. Que fardo?
Agora, este esbarrão. Olhos que se engalfinham com os meus. Um pedido de desculpas tão intenso que extrapola o fato banal. Um rosto que copia o passado. A barriga imensa, os tornozelos inchados, o nariz alargado. A angústia estourando como ressaca nos olhos. Dúvidas iguais. O medo de ter que ser tudo, de querer ser tudo. Sozinha. Eu sei. Reconheço a mim mesma quando me encontro. Tenho vontade de abraçar essa história nossa. De dizer a ela que a incerteza rasga o afeto; de dizer que dói para sempre seguir sendo o eu e o nós; de dizer que, ainda assim, vale a pena. Mas o momento passa e eu recuo. A vida fará melhor do que eu. A vida não recua.
Ilustração: ShawlinMohd
Cinthia Kriemler
Gertrudes Patrício costuma dizer: enviuvei de dois maridos. Mas ela sabe que, com bênção da igreja, assim mesmo casados, foi apenas com Juvenal, o pai da mais nova.
A aranha, aquela aranha, era tão única: não parava de fazer teias! Fazia-as de todos os tamanhos e formas. Havia, contudo, um senão: ela fazia-as, mas não lhes dava utilidade. O bicho repaginava o mundo. Contudo, sempre inacabava as suas obras. Ao fio e ao cabo, ela já amealhava uma porção de teias que só ganhavam senso no rebrilho das manhãs.
E dia e noite: dos seus palpos primavam obras, com belezas de cacimbo gotejando, rendas e rendilhados. Tudo sem nem finalidade. Todo bom aracnídeo sabe que a teia cumpre as fatias funções: lençol de núpcias, armadilha de caçador. Todos sabem, menos a nossa aranhinha, em suas distraiçoeiras funções.
Para a mãe-aranha aquilo não passava de mau senso. Para quê tanto labor se depois não se dava a indevida aplicação? Mas a jovem aranhiça não fazia ouvidos. E alfaiatava, alfinetava, cegava os nós. Tecia e retecia o fio, entrelaçava e reentrelaçava mais e mais teia. Sem nunca fazer morada em nenhuma. Recusava a utilitária vocação da sua espécie.
– Não faço teias por instinto.
– Então, faz porquê?
– Faço por arte.
Benzia-se a mãe, rezava o pai. Mas nem com preces. A filha saiu pelo mundo em ofício de infinita teceloa. E em cantos e recantos deixava a sua marca, o engenho da sua seda. os pais, após concertação, a mandaram chamar. A mãe:
– Minha filha, quando é que acentas as patas na parede?
E o pai:
– Já eu me vejo em palpos de mim…
Em choro múltiplo, a mãe limpou as lágrimas dos muitos olhos enquanto disse:
– Estamos recebendo queixas do aranhal.
– O que é que dizem, mãe?
– Dizem que isso só pode ser doença apanhada de outras criaturas.
Até que se decidiram: a jovem aranha tinha que ser reconduzida aos seus mandos genéticos. Aquele devaneio seria causado por falta de namorado. A moça seria até virgem, não tendo nunca digerido um machito. E organizaram um amoroso encontro.
– Vai ver que custa menos que engolir mosca – disse a mãe.
E aconteceu. Contudo, ao invés de devorar o singelo namorador, a aranha namorou e ficou enamorada. Os dois deram-se os apêndices e dançaram ao som de uma brisa que fazia vibrar a teia. Ou seria a teia que fabricava a brisa?
A aranhiça levou o namorado a visitar sua coleção de teias, ele que escolhesse uma, ficaria prova de seu amor.
A família desiludida consultou o Deus dos bichos, para reclamar da fabricação daquele espécime. Uma aranha assim, com mania de gente? Na sua alta teia, o Deus dos bichos quis saber o que poderia fazer. Pediram que ela transitasse para humana. E assim sucedeu: num golpe divino, a aranha foi convertida em pessoa. Qaundo ela, já transfigurada., se apresentou no mundo dos humanos logo lhe exigiram a imediata identificação. Quem era, o que fazia?
– Faço arte.
– Arte?
E os humanos se entreolharam, intrigados. Desconheciam o que fosse arte. Em que consistia? Até que um, mais-velho, se lembrou. Que houvera um tempo, em tempos de que já se perdera memória, em que alguns se ocupavam de tais improdutivos afazeres. Felizmente, isso tinha acabado, e os poucos que teimavam em criar esses pouco rentáveis produtos – chamados de obras de arte – tinham sido geneticamente transmutados em bichos. Não se lembrava bem em que bichos. Aranhas, ao que parece.
Mia Couto
No livro “O Fio das Missangas”
Retirado de Revista Pazes
Retirado de Samizdat
-O que é que se festeja no dia internacional da Mulher?
-Há muitos anos umas mulheres morreram queimadas numa greve nos Estados Unidos
A conversa foi cá em casa e envolveu duas das três mulheres que cá moram, não consegui evitar intervir e esclarecer:
-Não é nada disso, o dia Internacional da mulher foi instituído para chamar a atenção para a enorme desigualdade de géneros que existia a meio da década de 70 do século passado.
Na realidade ninguém tem a certeza que tenha acontecido mesmo nos Estados Unidos uma greve em que centenas de mulheres terminaram por morrer queimadas dentro da fábrica em que trabalhavam, mas por incrível que pareça, há muito mais gente a associar o dia 8 de Março a este facto que ao verdadeiro motivo da sua instituição.
O dia internacional da mulher está no calendário porque durante muito tempo o papel da mulher na sociedade era menosprezado pelo homem, durante séculos a mulher estava condenada a ter um papel secundário que a remetia para a cozinha e os fundos da casa. Durante a revolução industrial a mulher foi incorporada na mão de obra activa nas grandes fábricas, mas quase sempre em condições insalubres com jornadas de trabalho intermináveis e salários de miséria.
Hoje em dia a mulher tem um papel muito mais activo na nossa sociedade, mas falta ainda um longo caminho por percorrer para uma igualdade plena de direitos e sobretudo para uma efectiva protecção das mulheres contra a violência doméstica e de género...
Que o dia das mulheres seja todos os dias e não uma vez por ano....
Jorge Soares
Imagem de aqui
Dizem que há imagens que valem por mil palavras, bom, hoje vi um vídeo que vale por todas as palavras do mundo.
Confesso, eu fui dos que achou a nova lei contra o assédio um enorme exagero, até falei sobre o assunto... duas vezes (aqui) no último post alguns comentários de senhoras deixaram-me a pensar:
"Certamente não será o ponto de vista de adolescentes e jovens mulheres que, como eu, andaram anos de transportes públicos e ouviram sussurrar ao ouvido ordinarices do pior.
Faça um exercício, coloque-se na posição de quem ouve coisas como "mandava-te três sem tirar" ou da sua filha, se a tiver e depois volte a escrever"
Ou este:
"A visão masculina sobre os piropos é muito engraçada, porque nunca se viram violados na sua essência. Começamos a ouvir piropos com 12 anos, e não venham dizer que as meninas se vestem como mulheres e se põem a jeito. Lembro me de ser menina, de ainda gostar de brincar com bonecas e evitar passar perto de obras, oficinas, esplanadas de cafés, porque sabia que iria ouvir algum piropo, que com 12 anos apenas servia para me ofender, melindrar, envergonhar. Hoje com 33 anos continuo a não gostar de ouvir um piropo apenas porque os homens acham graça. Sou gira, gostos de me vestir bem, não sou provocante, mas nada disso vos dá o direito de invadirem o meu direito, ou será que afinal temos a mentalidade da Arábia Saudita em que as mulheres tem de usar burka para não atiçar as mentes masculinas. Vamos evoluir um pouco, porque um dia vão ouvir esses mesmos piropos ditos às vossas filhas, irmãs, namoradas e aí cuidado que afinal já não tem piada. Tenham vergonha."
Sou o suficientemente humilde para reconhecer que estava errado, já não tenho idade para ter a visão tonta e quase adolescente sobre este assunto que estava a mostrar, se seguirmos o conselho da senhora que me deixou o primeiro comentário e nos colocarmos no lugar das mulheres, se calhar ficamos com uma visão diferente sobre o assunto.
Imagino que para a maioria dos homens não será fácil colocar-se do outro lado.... bom, o seguinte vídeo ajuda, meus senhores, imaginem que era com vocês e pensem como reagiriam.
Um trabalho brilhante e sobretudo, esclarecedor!
Nunca é tarde para aprendermos e revermos os nosso conceitos.. .e sim, a senhora do segundo comentário tem razão, devíamos ter vergonha.. eu tenho!,
Jorge Soares
Não sabias ainda o que ia suceder.
Não podias prever.
Preparavas um caldo de osso de borrego com nabiça e tinhas ouvido a porta de entrada e, já nem davas por isso, tinha-se-te descompassado o modo de sorver o ar que respiravas.
O corpo dele ficou a ocupar a porta que da cozinha levava à salinha de entrada que servia também de sala de jantar e sala de ver televisão, e que era onde deitavas a mais velhinha que, quando tinham alugado o T1, nem tinham pensado em fazer família, que a bem dizer nem tu nem ele nunca tinham pensado coisa nenhuma, apaixonados, doidos de quererem o corpo um do outro, e casaram poucos meses depois da noite em que se tinham visto pela primeira vez e tu nunca tinhas ouvido dizer dele, e havia tantos outros no grupo de colegas de trabalho e amigos, mas ou seria o destino a comandar-te ou terá sido o modo de ele te ter olhado, ou terás sido tu insinuante e ele nem mais te deixou, que assim to repetiria: “essas mamas redondas deram comigo em doido”; e tu embevecida do seu porte atlético, do cabelo já a ficar grisalho nas fontes apesar de tão jovem; ou terá sido o modo como te colocou a mão no ombro a pedir, soprando-te desasossegos em cada sílaba, a boca bem chegada ao lóbulo da tua orelha esquerda: “passas-me esse copo, por favor”. Ficaram nesse transe de estar apaixonados, ainda, e ainda mais, depois de terem passado juntos o início desse dia e o dia inteiro que era um dia de trabalho e ele terá dito: ”que se lixe” e disseste também tu, ou nenhum disse, ficaram sem sequer dar acordo do nascer do sol nem do cair da noite, tu e ele a rebolar desejos no tugúrio que era o quarto onde ele vivia emigrante de uma outra zona do país a fazer um serviço para a empresa onde era soldador.
E depois passaram a encontrar-se, a viver juntos quase sempre, até ao dia em que disseram um ao outro: “e se juntássemos os haveres que não temos?” e a rirem alto para o ar quente dum final de Maio. E tu terás olhado as casas que assomavam na outra margem a esconderem o bairro em que tinhas vivido até seres a namorada dele: tu a querer esquecer, a querer lembrar apenas que agora serias tu a comandar a tua vida.
Casaram sem cerimónia nem padrinhos nem convidados: “apenas eu e tu” tinhas dito, e em casa participaste que não voltavas num bilhete que deixaste na sala, e nenhum deles, mãe e padrasto, terá acreditado, tanto que nunca te procuraram, nem quando deixaste uma mensagem em que dizias: nasceu uma menina, nem quando escreveste num SMS: nasceu outra menina.
Fátima Santos
Retirado de Sanizdat
Imagem de aqui
A minha filha mais velha levou-me com ela ao cinema, está-se a tornar um hábito, porque antes deste tinha ido ver o Star Wars com o meu filho... ok, ela tem melhores gostos para escolher filmes.
Carol é um filme com poucas personagens, com pouca história e com pouca acção, poderíamos dizer que é um filme simples com uma história muito complicada.... mas não deve ser nada disso porque está nomeado para o Óscar em nada menos que seis categorias... não há filmes simples com seis nomeações para o Óscar... ou será que há?
Algures a meio do século passado Carol conhece Therese por mero acaso. Carol é uma mulher de classe alta e de meia idade que está prestes a divorciar-se. Therese é uma jovem de classe baixa que trabalha na secção de brinquedos num grande armazém, gosta de fotografia e procura um sentido para a vida.
Não é a primeira vez que Carol se relaciona com uma mulher, Thereze vai pouco a pouco ao longo do filme descobrindo que o amor não tem que ser entre um homem e uma mulher e que também pode ser entre dois homens ou duas mulheres....
E a história é isto, pelo caminho ficam o namorado de Tereze e a família de Carol, não sem alguns dramas e sofrimento pelo meio.
A trama baseada num livro de Patricia Highsmith desenrola-se algures nos conservadores meados do século XX americanos. A meio do filme dei por mim a pensar que se tivessem escrito a mesma história num contexto actual nada seria muito diferente... em algumas coisas o mundo não mudou assim tanto nos últimos 50 ou 60 anos... O amor entre duas pessoas é e continuará a ser o amor, todos ... bom, uma grande parte de nós, gostaria que o preconceito não continuasse a ser o preconceito, infelizmente isso demora a acontecer.
Cate Blanchett é Carol, Rooney Mara é Thereze, ambas são lindas e estão nomeadas para o Óscar como actriz principal e secundária, respectivamente.... não vi os outros filmes nomeados, mas por mim já ganharam as duas, as actuações são soberbas. As outras nomeações são: Melhor fotografia, Melhor Guarda roupa, Melhor banda sonora original e Melhor guião adaptado.
Não liguem àquela parte de ser um filme simples, não deixem de ir ver, aposto que não dão o tempo por perdido.
Já combinei com a minha filha, na primeira oportunidade vamos comprar o livro.
Jorge Soares